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1. Marco teórico

1.4 Categorias subjacentes

Para finalizar esse marco teórico é necessário explicitar o sentido estrito de algumas categorias utilizadas ao longo deste trabalho, que já vem sendo utilizados em trabalhos anteriores 88;89, sem, no entanto, terem sido devidamente definidas. São elas: grupo; segmento, que dizem à classificação do conjunto de indivíduos que compõem o recorte; condição e situação de vida, que se relacionam às circunstâncias na qual se dá o cotidiano das entrevistadas; e raça, etnia e cor.

Em relação à classificação de diferentes conjuntos de indivíduos é preciso esclarecer sobre as categorias indivíduo, grupo, segmento e população que aparecem em momentos distintos nesta tese. Esse conjunto procura transmitir a idéia de um processo englobante, que caminha da unidade para a parte e desta para todo, respondendo às especificidades do particular para responder ao geral.

Se, a primeira e a última dessas categorias estão suficientemente definidas por todas as áreas afins à análise bioética, cumpre especificar as particularidades das categorias grupo e segmento. No que tange à primeira, considerou-se que a classificação grupo subtende uma ou mais características identitárias comuns entre os indivíduos classificados como pertencendo a um grupo, reconhecidas pelos integrantes desse mesmo grupo 90. Tais

características podem englobar, por exemplo, a territorialidade, quando as pessoas reconhecem uma identidade partilhada entre todos que vivem em determinada área, ou um traço étnico ou cultural específico, que identifique e estabeleça a noção de pertencimento comum. Como poder-se-á conferir na

Discussão, embora se possam perceber inúmeros pontos em comum entre a

vida das entrevistadas, não existe qualquer elemento agregador entre elas, que confira a noção de identidade e pertencimento a todas. Por outro lado, a similitude nas características de sua existência, homogeneidade nos aspectos relativos a suas necessidades, ao seu perfil etário, econômico e sociocultural permite classificá-las como um segmento do conjunto maior: a população. Tal classificação remete à demografia e distancia-se do sentido clássico de segmento, proposto por Durkheim, já em A divisão do trabalho social. 65.

Em relação à condição e situação de vida cumpre especificar as diferenças consideradas no âmbito das definições propostas nesta tese. Por

condição de vida devem-se considerar as características estruturais mais

estáveis que condicionam a vida das entrevistadas. Nesse sentido, essa categoria classifica o coletivo, pois diz respeito ao locus e à forma como o

dispositivos de poder 91 que lhe são facultados dispor e utilizar para relacionar- se com os demais segmentos da mesma sociedade. Já situação de vida diz respeito à conjuntura social, a características mais mutáveis, relacionadas à conjunção de fatores econômicos, políticos e sociais que condicionam aspectos específicos da vida social de indivíduos, grupos segmentos ou populações. Essa definição pode englobar ainda circunstâncias específicas, de cunho individual ou coletivo, que podem alterar o espectro das opções de escolha, delineado pela condição de vida.

Faz-se necessário, ainda, explicar o porque da adoção da classificação cor ao invés de raça ou etnia proposta inicialmente no projeto, escolha que guarda estreita relação com as categorias já definidas acima. Em relação à classificação raça, já está mais do que comprovado que essa não é nem uma categoria biológica 92;93 nem um conceito que pertença à esfera cultural. Como esse conceito tem profundas implicações ideológicas, políticas, econômicas e sociais tendo sido utilizado para justificar o preconceito, a discriminação e a dominação, muitos antropólogos consideram que sua utilização deveria ser abolida. Etnia, por sua vez, vem classificada na Antropologia como um conceito multiaspectual, pois pode se referir a aspectos que se relacionam diretamente ao local de origem, englobando ainda “características somáticas (aparência física), lingüísticas e culturais” 94. Esses diferentes aspectos, a partir dos quais se pode definir etnia, prestam-se melhor a caracterizar grupos (com maior ou menor grau de identidade partilhada), circunstância que não corresponde à vida atual das entrevistadas, que, podem ser melhor caracterizadas como um

segmento do todo social. Optei assim por usar “quesito cor”, conforme classifica o IBGE.

É importante esclarecer o porque do termo racismo surgir diversas vezes ao longo do texto, especialmente quando se leva em conta as considerações acima, ou seja, que a cor das entrevistadas não foi definida como raça. Orientou essa escolha a idéia de que as pessoas negras sofrem a discriminação em relação a sua cor de duas maneiras que se reforçam mutuamente: como decorrência do preconceito com em relação à alteridade, que sintetiza o perigo da diferença e, também, como conseqüência do mito da democracia racial, que busca tornar opaca a desigualdade nas condições e situação de vida entre negros e brancos. Por influência desses dois fatores, as pessoas negras sofrem as conseqüências do racismo quando vêem negadas suas oportunidades de acesso aos bens e serviços que caracterizam a qualidade de vida e, por outro lado, vivem em um contexto que no nível retórico nega essa segregação e naturaliza a assimetria social por ela imposta. Essa dupla forma de discriminação transfere para o indivíduo a responsabilidade pela desigualdade, fazendo com que introjete a discriminação, que é interpretada como inferioridade.

Como conseqüência, a pessoa negra discriminada é levada a considerar que a realidade nefasta na qual vive decorre de sua própria incapacidade e não, que provêm dos padrões iníquos da sociedade, a qual cria obstáculos quase intransponíveis a seu acesso às condições elementares da cidadania. É justamente a existência de tal dispositivo na conformação da discriminação por

cor, que amplia e aprofunda suas características, o que levou a considerar nesta tese essa forma de segregação e exclusão como racismo.

A utilização dessa classificação também se reporta ao Movimento Negro que define que ser negro não é uma característica somática, mas “é, essencialmente, um posicionamento político, onde se assume a identidade racial negra” 94. Assim, também por reconhecer a validade do objetivo político

do Movimento Negro ao apontar, identificar e nomear a discriminação por cor pelo termo racismo foi decidido neste texto também adotá-lo.

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