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Causo Pedagógico: Mulheres que tornam possível a inserção das camadas populares no Mundo do Trabalho

As mulheres da EJA no Mundo do Trabalho

4.1 Causo Pedagógico: Mulheres que tornam possível a inserção das camadas populares no Mundo do Trabalho

Desde que iniciei minha carreira profissional, como professora da Edu- cação de Jovens e Adultos, sempre defendi dois pontos de vista que me custam muito caro: a) a igualdade de direitos entre homens e mulheres no mundo do trabalho. Afinal de contas, como pode haver remuneração dife- renciada entre duas pessoas que exercem a mesma atividade?; b) os tra- balhadores das camadas populares são responsáveis pelo funcionamento das cidades. São eles que acordam cedo para trabalhar no transporte pú-

blico, nas padarias, na limpeza da cidade, na construção civil, na vigilância dos shoppings centers, nos serviços gerais, nas prestações de serviços. Não me recordo de nenhuma senhora que tenha divergido do meu primeiro ponto de vista. As mulheres da EJA sabem da importância delas no mundo do trabalho. No entanto, percebi, nos últimos anos, que meu lugar de fala era bastante distinto do delas. A despeito do sexismo que impera em nossa sociedade patriarcal, encontrava-me em uma posição de vantagem em re- lação às mulheres em processo de alfabetização, que ocupavam, via de re- gra, posições subalternas na divisão social de trabalho. Nas turmas em que lecionei, havia, entre outras profissionais, mulheres que trabalhavam em sa- lões de beleza (manicures, pedicures, cabeleireiras), empregadas domés- ticas, diaristas, vendedoras ambulantes e mulheres que cuidavam do lar. Estas últimas se apresentavam, não raro, como alguém que não trabalhava. Sobre o meu segundo ponto de vista, os homens da Educação de Jovens e Adultos sempre concordaram comigo que o dia nasce da periferia para centro. Os sujeitos periféricos vivem o dia de grande duração. Enquanto parte da cidade permanece dormindo, homens e mulheres já iniciaram seu dia para prestar seus serviços na capital mineira.

Como disse anteriormente, sigo firme em defesa da igualdade de gênero no mundo e da necessidade de se dar visibilidade aos trabalhos dos su- jeitos periféricos. Todavia, notei que o trabalho de um grupo de mulheres permanece ocultado e desprestigiado entre as próprias camadas popula- res. Refiro-me às donas de casas, aquelas mulheres que se dedicam aos afazeres domésticos e aos cuidados do marido e dos filhos.

Conquanto reconhecesse a importância dessas mulheres, posso dizer, com segurança, que passei a dimensionar o valor desse grupo social so- mente quando conheci, no início do ano letivo de 2020, a história de Joana, uma mulher negra, de aproximadamente 60 anos.

Em nosso primeiro encontro, solicitei que cada integrante da turma de al- fabetização se apresentasse, destacando as razões pelas quais decidi- ram (re)iniciar seu processo de escolarização na Educação de Jovens e Adultos. Depois de ouvir relatos importantes sobre a inserção da mulher no mundo do trabalho, fui surpreendida com o depoimento de Joana, uma dona de casa que trouxe à tona questões que, até aquele momento, eu ainda não havia refletido com mais vagar.

Como milhares de mulheres que nasceram em meados do século XX, Joa- na abandonou os estudos para cuidar dos irmãos mais novos, quando ainda possuía apenas oito anos de idade. Ela tornou-se, desde cedo, su-

porte para que adultos pudessem trabalhar de forma remunerada. Assim, em uma época em que não havia Escolas de Educação Infantil, os pais de Joana puderam se ausentar de casa para vender suas forças de trabalho, porque podiam contar com o trabalho de uma criança que cuidava da casa e dos irmãos menores.

Proveniente de uma família sem muitos recursos financeiros, Joana nos disse que enfrentou muitas dificuldades na infância, mas sempre teve a es- perança de um dia poder estudar novamente. Além dos irmãos, ela relata que, a pedido de sua mãe, também cuidou da filha de uma vizinha.

Ainda bastante jovem, Joana se casou com Sebastião. Embora tenha co- meçado a trabalhar muito cedo em atividades árduas e braçais, ele nunca valorizou os trabalhos domésticos, porque contou com o suporte da irmã, que cuidava dos afazeres de casa. Dessa forma, Sebastião nunca preci- sou se desdobrar em uma jornada dupla de trabalho para realizar suas refeições diárias e ter a sua disposição roupas lavadas e passadas.

Joana, acostumada a cuidar dos outros desde pequena, não estranhou sua condição de esposa. De certa forma, já havia naturalizado a divisão sexual do trabalho imposta pelo patriarcado, aceitando os papéis sociais de homens e mulheres como algo inquestionável. Assim, Joana continua- va sua rotina exaustiva de limpar a casa, lavar roupas e preparar refeições, para que seu marido pudesse trabalhar e sustentar a família. Suas obriga- ções não se restringiam ao cuidado da casa. Joana enfatiza que teve que se desdobrar para assegurar que seus filhos tivessem os cuidados neces- sários para se desenvolverem como seres humanos.

Tendo que cuidar do marido, dos filhos e da casa, Joana sabia que seu sonho de aprender a ler e a escrever havia se tornado, de certa forma, algo do passado, um projeto irrealizável. Não obstante, sentia-se satisfeita em dar conta de seu papel de dona de casa, de cumprir sua missão quase divina no processo de estruturação da família. Ela tinha consciência, no entanto, que seu trabalho não era valorizado pelos seus familiares, nem pela sociedade, pois nunca tivera reconhecimento de sua importância nas práticas sociais. Isso era notado especialmente quando ouvia do marido, filhos e vizinhos que ela era uma mulher que não trabalhava.

Quando os filhos se casaram, Joana chegou, entretanto, à conclusão que deveria pensar mais em si, que retornar à escola poderia ser uma opor- tunidade para realizar um desejo adormecido há muito tempo. Aprender a ler e a escrever era um jeito de se sentir viva, de adquirir autonomia em uma sociedade grafocêntrica. Afinal, ela sempre quis ler receitas, jornais e principalmente a Bíblia.

Contudo, para surpresa de Joana, Sebastião, seu companheiro de anos de convivência, não gostou nada da ideia:

– Você tem que ficar em casa para fazer o jantar e preparar minha marmita

para o dia seguinte, pois eu chego tarde e muito cansado. E, além do mais, você está querendo sair de casa à noite para arranjar namorado, disse o

marido, com uma voz firme e com o humor bastante alterado.

Pela primeira vez, Joana desconsiderou, por completo, o ponto de vista do marido, porque compreendeu que havia chegado o momento de realizar um projeto pessoal. Em primeiro lugar, porque se tratava de um direito a ela negado desde a infância. Em segundo lugar, porque havia, com seu trabalho no lar, contribuído para que filhos concluíssem a Educação Básica e o marido permanecesse firme em seu trabalho na construção civil, sem terem que se preocupar com os afazeres domésticos.

Cumpre sublinhar, no entanto, que o retorno à escola não significou redu- ção do trabalho doméstico. Pelo contrário, além de cuidar das tarefas de casa, Joana descobriu que precisava ampliar seus trabalhos de cuidadora, pois teria que ajudar sua filha Daniele, que acabara de se engravidar sem planejamento familiar. Sem condições de conciliar seu trabalho em caixa de supermercado e os cuidados de um recém-nascido, Daniele fez com que Joana se comprometesse a cuidar do bebê, para que conseguisse continuar vendendo sua força de trabalho.

O relato de Joana me fez pensar sobre as mulheres invisíveis que tornam possível a inserção das camadas populares no mundo do trabalho. Descri- tas pelos indicadores governamentais como pessoas alijadas dos setores economicamente ativos, tais mulheres, vistas como dispensáveis, são, na verdade, essenciais para o funcionamento do mercado de trabalho e para organização do núcleo familiar das camadas populares.

4.2. Teorização: O trabalho não remunerado e sua