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OBSERVATÓRIO PARLAMENTAR DA REVISÃO PERIÓDICA UNIVERSAL

6. SISTEMA PRISIONAL E COMBATE À TORTURA

6.2. CDHM debate prevenção à tortura

“A prevenção e erradicação da tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes não é uma mera declaração, uma opção política ou uma espécie de slogan humanista, mas sim uma obrigação internacional assumida livremente pelo Brasil ao ratificar a convenção contra a tortura”, afirmou Juan Pablo Vegas, membro do Subcomitê de Prevenção à Tortura das Nações Unidas.

Patrícia Oliveira, da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, destacou que é preciso entender o sistema prisional como parte da sociedade. “Aquelas pessoas estão privadas de liberdade, não estão privadas de direitos. Elas têm direito à convivência familiar, à água, à saúde, a um tratamento digno, como qualquer outra pes-soa”, reforçou Oliveira, sugerindo a criação de uma Frente Parlamentar de prevenção e combate à tortura.

“Nesses espaços a tortura é regra, é instrumento utilizado pelo Estado para controlar corpos negros e jovens, para adoecer homens e mulheres, para extinguir vidas. Não há prisão sem tortura”, afirmou a Irmã Petra Silvia Pfaller, Coordenadora Nacional da Pastoral Carcerária Nacional.

“Estamos falando de uma série de agressões físicas e psíquicas, violações constantes dos direitos das pessoas presas, a tortura é estrutural. E quando essas condições torturantes chegam no limite, ocorrem os massacres”, afirmou a co-ordenadora, citando os massacres nas unidades prisionais do Carandiru, em 1992, em Manaus e no Rio Grande do Norte, em 2017, e em Manaus e Altamira, em 2019. “Todos são encarados pelo Estado como exceção, uma fatalidade que aconteceu no sistema prisional, mas são resultado direto dessa máquina de moer corpos que é o cárcere”, disse.

Petra ainda ressaltou que durante a pandemia as unidades se fecharam para visita familiar, religiosa e de organi-zações que têm como função fiscalizar eventuais violações de direitos nas prisões, mas as portas ficaram abertas para a contaminação da Covid-19. “Pesquisa feita pela Pastoral em 2020 mostrou que as visitas às prisões estavam proibidas em praticamente todo o Brasil. Cerca de 98% das pessoas afirmaram que não podiam entrar nos presídios ou que não sabiam. Isso mostra que as secretarias e administrações penitenciárias da maioria dos estados não estão sendo transparentes”.

SAÚDE MENTAL E TORTURA

Andressa de França Alves Ferrari, da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA) e do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT), criticou a destinação de recursos públicos para hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas, por serem espaços para tratamentos desumanizantes e tortura.

“O combate à tortura deveria ser um compromisso do governo. O que temos percebido é que, desde 2017, houve uma retomada conservadora, intitulada de nova política de saúde mental. Essa política de nova não tem nada, ela é inadequada, ineficiente, incapaz de garantir a saúde mental das pessoas com sofrimento mental grave e persistente, ou com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas”, afirmou.

Andressa defendeu o fortalecimento do sistema de prevenção e combate à tortura, a suspensão do Decreto 9.831, o fechamento de todos os manicômios, hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas e o redirecionamento dos financiamentos para os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). “A democracia é antimanicomial, não é aceitável destinação de verba federal para tortura”.

MECANISMO NACIONAL DE PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA

José Ribamar, perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), apontou o desmonte do órgão e o descumprimento do Brasil da convenção ratificada de combate e prevenção à tortura.

“A pandemia foi mais um pretexto para o agravamento do crime de tortura”, destacou o perito, apontando que en-tre as inúmeras violações estão a incomunicabilidade do sistema prisional e socioeducativo, além da realização de audiências de custódia virtuais.

Sylvia Dias, representante no Brasil da Associação para a Prevenção da Tortura, apontou que o Decreto 9.831 esva-ziou o Mecanismo Nacional e cerceou a participação da sociedade civil no Comitê Nacional de Prevenção e Com-bate à Tortura. Dias destacou que esses órgãos foram criados pela Lei 1.2847, aprovada pelo Congresso Nacional, para dar cumprimento às obrigações da convenção da ONU contra a tortura.

Ela destacou que esse esvaziamento fere frontalmente obrigações assumidas pelo Estado brasileiro e que isso é ain-da mais grave neste momento de pandemia, por tornar ainain-da mais invisíveis as violências que estão acontecendo diariamente nas unidades penitenciárias. “O Mecanismo é o único órgão no país com atuação exclusiva, voltada para prevenção e enfrentamento à tortura nos espaços de privação de liberdade”.

“Órgãos internacionais de proteção aos direitos humanos, como o Subcomitê para Prevenção à Tortura, já se mani-festaram de forma contundente, instando o Estado a revogar o decreto, que é incompatível com os compromissos internacionais, assumidos pelo Estado brasileiro”, afirmou.

Dias destacou também que a Lei 1.2847 demanda engajamento das unidades federativas, com a criação de mecanismos e comitês de prevenção à tortura em todos os estados, a exemplo dos já criados no Rio de Janeiro, Pernambuco, Rondônia e Paraíba. A representante também apontou como avanço a aprovação em comissão do projeto de lei na Câmara Legislativa do Distrito Federal para criar um mecanismo de prevenção à tortura no DF.

Sylvia Dias fez ainda três sugestões: que os deputados e deputadas mobilizem as bases em seus estados para criar comissões e mecanismos estaduais de prevenção à tortura, a aprovação do PDL 389/2019, que já conta com rela-tório favorável da deputada Érika Kokay e susta os efeitos do Decreto 9.831, e a criação de uma frente parlamentar de prevenção do combate à tortura.

Belisário dos Santos, da Comissão Arns, lembrou que em 2015, no âmbito da ADPF 347, que argumentava que o sistema carcerário brasileiro configura violação contínua de direitos fundamentais e humanos, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o “estado de coisas inconstitucional”, devido ao quadro de violação massiva e persistente decorrente de falhas estruturais e de falência de políticas públicas.

Belisário lembrou ainda que os peritos do Mecanismo Nacional já haviam visitado 169 locais de privação de liber-dade e emitido 2.077 recomendações. “Quando se pensa que seria natural um incremento desse sistema de visitas e controle de tortura, vem a suspensão dos trabalhos pelo Decreto”.

“A quem interessa suprimir a denúncia da tortura?”, questionou Belisário.

“Esse Mecanismo Nacional não é do governo, é um mecanismo do Estado que serve à sociedade. Sua existência como mecanismo preventivo, com independência funcional, é fruto de uma convenção à qual o Brasil aderiu”, reforçou Belisário, que defendeu a revogação do decreto.

Ele citou ainda que o princípio do não retrocesso impede que sejam desconstituídas as conquistas em direitos so-ciais já alcançadas pelo cidadão e pela sociedade. “A proteção contra a tortura alcançada pela sucessão de normas a partir da Constituição e de convenções internacionais e da Lei 12.847 não pode retroceder”.

SITUAÇÃO DE MULHERES E POPULAÇÃO LGBT

Natália Damazio, do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, enfatizou que mulheres e pessoas LGBTI+ privadas de liberdade enfrentam, além de fome, falta de água, superlotação, falta de acesso à saúde, racismo e violências físicas, uma acumulação de violências específicas.

“A violência atinge níveis tão severos nessas populações, que as parcas vitórias no campo das políticas públicas carecem de efetividade na prática”, disse, citando a dificuldade de implementação do marco da primeira infância.

“Na prática, para mulheres grávidas cuja prisão é mantida, a realidade impõe ritos de violência obstétrica, como parto com algemas, presença de agentes homens durante o momento do parto, falta de acompanhante e desam-paro. Um caso emblemático aconteceu no Rio de Janeiro, no ano de 2015, em que uma presa teve filho em uma solitária mesmo pedindo socorro”, relatou.

Damazio destacou que a prática de separação forçada de mães e filhos atinge especialmente famílias negras, resultado de uma cultura extremamente racista. Outro aspecto abordado foi a violência sexual que ainda é parte do dia a dia do cárcere brasileiro, pela manutenção da revista vexatória. “Já foi apontado diversas vezes por ór-gãos internacionais que a revista vexatória é prática de violência sexual, perpetrada pelo Estado e é uma forma de tortura”, reforçou,

Para ela, é fundamental a presença exclusiva de agentes mulheres em unidades socioeducativas e prisionais femini-nas como forma de prevenção a atos de violência sexual. “Eu trago um caso bárbaro acontecido no Pará em 2007, no qual uma adolescente foi presa em uma unidade prisional masculina por 30 dias com 20 homens e sofreu um estupro coletivo”, narrou, reforçando que as marcas deixadas na adolescente são agravadas pelo silêncio e omissão em não prevenir que tragédias assim voltem a ocorrer.

“A Lei do Minuto Seguinte, que garante atenção integral a pessoas vitimadas por violência sexual, segue não sendo aplicada em casos de privação de liberdade”, citou, apontando caso de estupro coletivo vivenciado por mulher trans no Complexo Curado, em Pernambuco.

DOR DE FAMILIARES

Priscila Flores, da Agenda Nacional pelo Desencarceramento no Amazonas, argumentou que o encarceramento no Brasil é resultado direto do racismo, e mais uma forma de violação dos direitos humanos da população pobre e negra no país.

Flores defendeu uma agenda pelo desencarceramento que envolve, entre outras ações, a redução massiva da po-pulação prisional, desmilitarização das polícias e a proibição da privatização do sistema prisional, e significaria um abolicionismo penal.

“O sistema de justiça criminal é incapaz de produzir segurança pública e impedir conflitos sociais. Foi pensado para ser um instrumento de controle por meio da violência e do medo de pessoas pobres e negras, com o objetivo de manter o privilégio das elites e manter pobre aceitando pobreza, sob exigência da honestidade que esses mesmos brancos ricos não têm”, afirmou.

Priscila reforçou que as demandas apresentadas não são hipóteses de violências, violações ou tortura, mas sim ba-seadas em fatos. “Nossas denúncias são baba-seadas em fatos que vivemos, que são sempre ouvidos como exageros, mentiras e desespero de familiares, em sua grande maioria mulheres, que são criminalizadas em seus lugares de origem por serem defensoras de direitos humanos”.

USO ABUSIVO DA FORÇA E MILITARIZAÇÃO DAS UNIDADES PRISIONAIS E SOCIOEDUCATIVAS

“Tratamos aqui da erradicação de práticas que configuram crime contra a humanidade, mas que fazem parte das práticas coloniais e racistas que fundaram o Estado brasileiro e que estão entranhadas nas instituições e nas subjeti-vidades dos seus agentes”, apontou Monique Cruz, da Justiça Global.

Monique destacou que existe no Brasil um problema estrutural de uso abusivo da força e que preocupa o aprofun-damento da militarização de equipes de segurança e gestão das unidades socioeducativas, pois desqualificam a

política, além da falta de protocolos em conformidade com os padrões de direitos humanos e de monitoramento do uso de armamentos menos letais.

A representante da Justiça Global destacou que a organização atua em três casos que tramitam na Corte Interameri-cana: a unidade de internação socioeducativa do Espírito Santo, o complexo prisional do Curado, em Pernambuco, e o Complexo Prisional de Pedrinhas, no Maranhão.

“O spray de pimenta foi espalhado no chão pelos agentes que, na sequência, determinaram que os presos sem rou-pas se sentassem sobre o composto químico, que gera intensa ardência”, relatou, sobre uma situação em Pedrinhas.

TORTURA E DESUMANIZAÇÃO

A deputada Érika Kokay (PT/DF), autora do requerimento da audiência com os parlamentares Maria do Rosário (PT/

RS) e Helder Salomão (PT/ES), apontou que a tortura é institucionalizada no Brasil. “A tortura existe em vários locais deste país, existe nos presídios brasileiros e conta com o silêncio cúmplice da sociedade. É como se a tortura fosse permitida de acordo com quem ela atinge, ou seja, os direitos não são universais. Nenhum ser humano pode sofrer torturas, a legislação assegura isso, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a nossa própria Constituição. A tortura é um processo de desumanização”.

“A nossa lei de execuções penais retira o direito à liberdade, mas os outros direitos precisam ser assegurados. Nós temos o sistema prisional pautado na penalização, mas também na ressocialização”, destacou a parlamentar, afir-mando que a superlotação é uma forma de tortura institucional.

Kokay destacou que o Brasil prende muito, sendo o terceiro país em população carcerária no mundo, mas que os dados demonstram que o aumento de penas e de encarceramento não resultou na diminuição da violência. “O Mecanismo é um instrumento importante para sairmos do marco da barbárie”.

“O decreto é a exacerbação, é o abuso de um poder que não é conferido pelo que é pactuado, porque as leis são pactos que se criam na própria sociedade. Isso é princípio para fazer valer a independência dos próprios poderes”, completou a parlamentar do DF.

A audiência ainda contou com a participação do deputado Éder Mauro (PSD/PA).

6.3. Ministério Público e Defensoria do Distrito Federal recomendam uso criterioso de