Foto 57 – Celebração religiosa na Festa da Retomada, comunidade Ilha de São Pedro
Haesbaert (1999, p.172), por sua vez, ressalta que “toda identidade territorial é uma identidade social definida fundamentalmente através do território”. Essa apropriação do território é simbólica e material e constitui elemento de autenticidade do grupo.
Na configuração territorial do município, destaca-se ainda a figura singular do vaqueiro. O seu espaço de domínio abrange diversos territórios que ultrapassam a limitação do recorte espacial estudado. Trata-se da personalidade mais emblemática e mítica do Sertão, imortalizada na musicalidade regional de cantores como Luiz Gonzaga, Marinês, Flávio José, Dominguinhos, Clemilda, Vavá Machado e Marcolino, Kara Véia e Antônio Carlos Du Aracaju. Sua vida e seus feitos também são representados nos versos fictícios da literatura de cordel de Patativa do Assaré e tantos outros poetas anônimos do Sertão.
A lida na pecuária ou a “vida de gado”, como preferem chamar, fundamenta seu cotidiano, seu modo de vida. Câmara Cascudo (1999[1954]), em sua obra Dicionário do
Folclore Brasileiro, define-o como
Pastor do gado, guarda das vacas; cow-boy, rapaz da vaca, Vacher, pastor de bezerros, Rinderhirt, figura central do ciclo pastoril. Sua atividade determina-lhe o individualismo arrogante, autonomia moral, decisão nos atos e atitudes. É o clima ideal para o cantador de desafios, o cangaceiro afoito, o valente defensor da propriedade confiada à sua coragem solitária. (CASCUDO, 1999[1954], p.900).
O vaqueiro compreende um ator imprescindível na ocupação e formação sociocultural do Sertão nordestino. Na perspectiva de Diniz (1996), foi utilizando-se da quarteação – sistema de compensação de trabalho nos grandes estabelecimentos rurais –, que ele se transformou em pequeno criador de gado, processo que contribuiu para a constituição de uma estrutura fundiária com predomínio de pequenos e médios pecuaristas no Sertão de Sergipe.
No ano de 2013, atendendo a reivindicações dos vaqueiros é sancionada a Lei nº 12.870, que dispõe sobre o reconhecimento do exercício da sua atividade profissional. Em seu Art. 2º “considera-se vaqueiro o profissional apto a realizar práticas relacionadas ao trato, manejo e condução de espécies animais do tipo bovino, bubalino, equino, muar, caprino e ovino” (BRASIL, 2013). Além de reconhecer a categoria, o dispositivo contribui legalmente para a preservação das atividades e manifestações culturais desempenhadas por esse sujeito.
O fruto do seu trabalho é o pequeno rebanho de bovinos com predomínio das chamadas vacas parideiras, que lhe garante a obtenção diária do leite – produto com valoração de uso e troca – suficiente para a reprodução social da família. Apesar do valor atribuído aos bovinos, para o vaqueiro seu animal favorito é o cavalo. Nas regiões do Sertão, dominadas
pelo ciclo do gado, é o cavalo que o acompanha na rotina diária e é seu companheiro nas façanhas das pegas de boi no mato.
Enquanto conduzem o gado, os vaqueiros entoam os aboios, canto livre de improvisação e sem palavras, marcado por vogais. O aboio geralmente inicia e finaliza com uma incitação a boiada: ei boi, boi brabo, ei lá (CASCUDO, 1999[1954]). Os que são salientados como bons aboiadores também são exíguos nas toadas. Trata-se de canções breves e improvisadas de pequenos versos e refrãos, entremeadas com aboios. Essas cantigas retratam a lida com o gado, os feitos heroicos dos vaqueiros, as recordações dos amigos e os sentimentos pelas mulheres faceiras. A toada “O Acordar do Sertanejo” de Vavá Machado e Marcolino (Quadro 6), compositores de toadas e músicas no estilo forró de vaquejada, reportam entre versos e aboios, a vida, o trabalho e as façanhas do vaqueiro. Na lida com o gado, na improvisação das toadas e aboios, o vaqueiro legitima sua identidade.
Quadro 6 – Toada "O Acordar do Sertanejo"
Passa pra lá boi manso, ô boiada teimosa Oi! Ah!
Ôôôôôê...
O sertanejo se acorda antes de amanhecer o dia Começa soltando aboios com a voz branda e macia
Todo o gado sai berrando em destino a vacaria Aêêêêêa...
O vaqueiro se levanta, deixa seu rádio ligado Seu patrão fica dormindo, o sono mais desejado Quando as emissoras abrem não fica ninguém deitado
Aêêêêêa...
A filha do fazendeiro combina com a empregada Amanhã me acorde cedo, pra escorrer a coalhada Que os aboios desses vaqueiros me deixa emocionada
Aêêêêêa...
O fazendeiro se anima, chama o vaqueiro atenção Manda tratar dos cavalos, todo dia dar ração Manda avisar no programa, pra reservar inscrição
Aêêêêêa...
O aboio do vaqueiro é um grito muito estridente Que anima os fazendeiros com seus bonitos repentes E é os guerreiros brindados, que mata e morre e não sente
Aêêêêêa...
Quem não gostar de vaqueiro não é nordestino aprovado É gente sem formação ou que nada tem estudado Se esquece que seu sapato é feito do couro do gado
Aêêêêêa...
Peço desculpas amigos se a toada não prestou É uma pequena homenagem dedicada ao criador
De Vavá e Marcolino e de Jota locutor Aêêêêêa...
A toada terminou toda cheia de harmonia Zezé Arlindo e Vavá, um trio de garantia Chamados os Bridões de Ouro, correios da alegria
Aêêêêêa...
Ô boi manso... Segura no rabo do boi Aloísio Bicho mole desgraçado
(Vavá Machado e Marcolino)
Fonte: www.letras.com.br.
Org. GONÇALVES DA SILVA, J. N. 2016.
Também são singulares as vaquejadas, festas protagonizadas pelos vaqueiros que, montados em seus cavalos, adentram a caatinga para capturar o gado bravio. Sua proteção vem da fé em Deus e da indumentária de couro curtido (Foto 58): guarda-peito, gibão, perneiras, luvas, chapéu e sapatos de couro, que os protegem dos espinhos, trocos retorcidos e espécies de plantas urticantes. O cavalo também possui acessórios de couro como a sela,
utilizada como acento na montaria, e a cabeceira e o peitoral, que protege o animal do impacto com a vegetação.
Foto 58 – Indumentária do vaqueiro e principais acessórios do cavalo, Festa do