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CAPÍTULO 2 – CONCEITO DE INTERESSE PÚBLICO NO BRASIL

2.1. Conceitos de interesse público

2.1.4. Celso Antônio Bandeira de Mello

No pensamento de Celso Antônio Bandeira de Mello, as três principais ideias sobre o interesse público são: (i) defini-lo como o interesse de todo conjunto social; (ii) considera-lo como um axioma auto evidente; e (iii) classifica-lo entre primário e secundário. É inspirado na doutrina italiana de Renato Alessi319 e com convergências e divergências em relação à doutrina aristotélica-tomista, liberalismo e o utilitarismo.

Segundo Bandeira de Mello, o interesse público é o "interesse do todo", ou seja, do próprio "conjunto social", mas não se confunde com o somatório dos interesses

317De acordo com: RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Jussara Simões baseada na edição

americana revista pelo autor; revisão técnica e da tradução por Álvaro Vita – 3ª edição. Editora Martins Fontes, São Paulo: 2008, p. 31/33.

318De acordo com: RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Jussara Simões baseada na edição

americana revista pelo autor; revisão técnica e da tradução por Álvaro Vita – 3ª edição. Editora Martins Fontes, São Paulo: 2008, p. 38.

319SILVA, Shirley Souza da. O interesse público na jurisprudência do STJ: uma abordagem sobre a fixação

de conteúdos normativos pelo raciocínio judiciário. Dissertação do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF, Niterói: 2009, p. 14. Disponível em www.dominiopublico.gov.br Acesso em 01/02/2015.

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individuais320, tampouco lhe é necessariamente antagônico. Afinal, seria o "mais cabal

contrassenso que o bom para todos fosse o mal de cada um"321.

O interesse pessoal seria aquele de uma pessoa ou de um grupo de pessoas singularmente considerado, enquanto o interesse público é um interesse "igualmente

pessoal destas mesmas pessoas ou grupos", mas na qualidade de "partícipes de uma coletividade maior na qual estão inseridos, tal como nela estiveram os que os precederam e nela estarão os que virão a sucedê-los nas gerações futuras"322. Deste modo, não poderia ser identificado com o interesse da maioria do momento, pois abrigaria o depósito intertemporal herdado das gerações anteriores e que seria legado para as próximas, ocorrendo uma continuidade histórica.

O interesse público e sua supremacia sobre o privado seriam um axioma "reconhecível no moderno Direito Público", até mesmo como condição de sobrevivência do interesse privado323. Como exemplo, Bandeira de Mello cita o fato de que o indivíduo pode não desejar ter seu imóvel desapropriado, mas certamente não seria contrário ao instituto da desapropriação, uma vez que a construção de estradas, escolas e outros serviços públicos não poderia ficar à mercê da vontade dos proprietários em vender os imóveis324. Por isso, o interesse individual poderia ser contrariado, para não prejudicar o interesse pessoal do restante da sociedade.

Contudo, tal interesse público não estaria incorporado no Estado, que seria apenas o seu curador. Na verdade, princípios como a legalidade e a publicidade existiriam justamente para impedir que o interesse público fosse violado pelo próprio Estado, que poderia desejar pagar um salário indigno aos seus servidores ou cobrar impostos abusivos para se enriquecer ao custo do prejuízo da sociedade, ou ainda ocultar informações de interesse público sem autorização legal325.

Essa distinção entre Estado e interesse público é explicado pelos conceitos de interesse público primário e secundário. São conceitos que – apesar de todas as críticas

320MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. Editora Malheiros. 29ª edição

revista e atualizada. São Paulo, 2012, p. 59.

321MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. Editora Malheiros. 29ª edição

revista e atualizada. São Paulo, 2012, p. 60.

322MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. Editora Malheiros. 29ª edição

revista e atualizada. São Paulo, 2012, p. 60/61.

323MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. Editora Malheiros. 29ª edição

revista e atualizada. São Paulo, 2012, p. 70.

324MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. Editora Malheiros. 29ª edição

revista e atualizada. São Paulo, 2012, p. 61.

325MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. Editora Malheiros. 29ª edição

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que recebem – permanecem dominantes no pensamento do Superior Tribunal de Justiça, responsável por uniformizar a interpretação da legislação federal.

Os interesses primários seriam o interesse público propriamente dito, partilhados por todos os membros da sociedade, como a defesa da justiça, bem-estar social e segurança. Os interesses secundários seriam próprios da Administração Pública, como, por exemplo, o interesse do erário em maximizar a arrecadação e minimizar as despesas326.

Luís Roberto Barroso, atual ministro do STF, com base no raciocínio de Mello, interpreta que o Ministério Público seria a incorporação dos interesses públicos primários, enquanto a Advocacia Pública seria a incorporação dos interesses públicos secundários327. Contudo, os interesses da Administração Pública só poderiam ser perseguidos enquanto não contrariassem os interesses primários328.

No STJ é notória a adesão ao pensamento de Bandeira de Mello. Como exemplos desta filiação, podemos citar os precedentes: (i) Resp. 1.356.260/SC; (ii) AgRg. em Embargos de Declaração 1.174.124/SC; (iii) Resp. 1.148.463/MG; (iv) Resp. 1.049.156/CE e (vi) Mandado de Segurança 11.308/DF.

No Resp. 1.356.260/SC329 o Ministério Público do Estado de Santa Catarina questionava a contratação de empresa sem licitação por parte do governo e o ministro Humberto Martins citou expressamente Bandeira de Mello para justificar que o interesse secundário da Administração em economizar custos não poderia se sobrepor ao interesse primário de fazer cumprir a lei.

O AgRg. em Embargos de Divergência 1.174.124/SC330 e o Resp. 1.148.463/MG331 confirmam a interpretação de Luís Roberto Barroso sobre o papel do Ministério Público e da AGU. No primeiro, o STJ vedou a intervenção do Ministério Público em um caso que tratava do dever, ou não, da Administração indenizar a

326MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. Editora Malheiros. 29ª edição

revista e atualizada. São Paulo, 2012, p. 65/67.

327BARROSO, Luís Roberto. O Estado contemporâneo, os direitos fundamentais e a redefinição da

supremacia do interesse público. In: Sarmento, Daniel (Org.) Interesses públicos vs. Interesses privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2005

328MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. Editora Malheiros. 29ª edição

revista e atualizada. São Paulo, 2012, p. 65/67.

329Recurso especial nº 1.356.260/SC. 2ª Turma do STJ. Min. Rel. Humberto Martins. Julgado em

07/02/2013. Disponível em www.stj.jus.br . Acesso 10/02/2015

330Agravo regimental em embargos de divergência no recurso especial nº 1.174.124/SC. 1ª Sessão. Min.

Rel. Mauro Campbell Marques. Julgado em 26/03/2014. Disponível em www.stj.jus.br . Acesso 10/02/2014

331Recurso especial nº 1.148.463/MG. 2ª Turma do STJ. Min. Rel. Mauro Campbell Marques. Julgado em

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expropriação de uma terra que não se tinha certeza se era pública ou privada. Tratando- se o caso de mera indenização por parte do erário, o STJ entendeu se tratar de interesse secundário, portanto, vedou a intervenção do MP. O segundo caso também versava sobre pagamento pela Administração Pública, desta vez, por causa de contrato que não respeitou o formalismo necessário para sua celebração. Mais uma vez, interpretou-se ser esse o campo de atuação da AGU e não do MP, por ser mera obrigação de pagar da Administração.

O AgRg. no Resp. 1.049.156/CE332 é um caso em que seria possível a intervenção tanto do MP quanto da AGU. Trata-se de furto de livros de biblioteca de universidade pública. Neste caso, o STJ entendeu que havia tanto um interesse público primário (a coletividade que não teria acesso aos livros), quanto um interesse público secundário (a Administração que estava tendo prejuízo com o patrimônio roubado).

A doutrina de Bandeira de Mello foi também usada como referência para estabelecer o entendimento do STJ sobre a contratação de arbitragem pelo Poder Público no Mandado de Segurança 11.308/DF333. A própria existência da arbitragem depende da capacidade de dispor de direitos, e o interesse público seria indisponível. Neste sentido, o STJ entendeu que indisponíveis seriam os interesses públicos primários, não os interesses da Administração, que poderia contratar arbitragem, dispondo de seu próprio patrimônio, sem implicar em renúncia aos interesses primários. Luiz Fux, então Ministro do STJ e atualmente Ministro do STF, cita Dalmo Dallari para afirmar que:

"ao optar pela arbitragem, o contratante público não está transigindo com o interesse público, nem abrindo mão dos instrumentos de defesa de interesses públicos. Está, sim, escolhendo uma forma mais expedita, ou um meio mais hábil, para a defesa do interesse público. Assim como o juiz, no procedimento judicial, deve ser imparcial, também o árbitro deve decidir com imparcialidade. O interesse público não se confunde com o interesse da Administração ou da Fazenda Pública; o interesse público está na correta aplicação da lei e se confunde com a realização correta da Justiça".

É possível perceber aspectos da visão aristotélica-tomista em Bandeira de Mello, pois ele (i) considera a existência de um bem coletivo objetivo; (ii) defende o caráter

332Agravo regimental no recurso especial nº 1.049.156/CE. 6ª Turma do STJ. Min. Rel. Sebastião Reis

Júnior. Julgado em 18/12/2012. Disponível em www.stj.jus.br . Acesso 10/02/2015

333Mandado de Segurança 11.308/DF. 1ª Seção do STJ. Min. Rel. Luiz Fux. Julgado em 09/04/2008.

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intertemporal do interesse público; e (iii) situa o interesse público acima dos interesses de Estado ou dos particulares.

A defesa do bem coletivo objetivo se manifesta: (i) na admissão pelo autor da existência de um interesse pessoal de cada um na realização do interesse público enquanto "partícipes da Sociedade"; e (ii) quando o autor considera que o instituto da desapropriação é algo naturalmente bom para preservar o interesse público, apesar de ser possível questionar o modo como o instituto é empregado.

O caráter intertemporal do interesse público, na forma descrita por Bandeira de Mello, se assemelha a ideia aristotélica de uma sociedade que possui um projeto coletivo a ser realizado ao longo das gerações de cidadãos. Do mesmo modo, se assemelha a "Tradição" defendida pela Igreja Católica. Esta Tradição afirma que a Igreja é tanto "visível" quanto "invisível" e que as atuais decisões da Igreja visível não seriam válidas se não estivessem em comunhão com a Tradição presente na Igreja invisível, representada pelas gerações anteriores de cristãos e pelo próprio Deus, conforme teria se revelado na história334.

A ideia de um interesse público que se distingue do interesse estatal também aproxima o autor de Aristóteles e Tomás de Aquino, ao mesmo tempo que o afasta de Hegel. O Estado estaria a serviço do interesse público e seria por ele limitado. Tal interesse poderia estar até mesmo na defesa de um interesse particular e frustrar um interesse do governo335.

Apesar dessas semelhanças, Mello se destaca por apresentar uma versão mais flexível da tradição, ao defender que esta deve se submeter ao interesse público positivado na Constituição Federal e arcar com as alterações que forem nela feitas336. O conceito de bem comum original é uma concepção de verdade a ser alcançada, que estaria acima tanto

334"A comunhão eclesial é ao mesmo tempo invisível e visível. Na sua realidade invisível, é a comunhão de

cada homem com o Pai por Cristo no Espírito Santo, e com os outros homens que comparticipam na natureza divina, na paixão de Cristo, na mesma fé, no mesmo espírito. Na Igreja sobre a terra, entre esta comunhão invisível e a comunhão visível na doutrina dos Apóstolos, nos sacramentos e na ordem hierárquica, existe uma íntima relação" – RATZINGER, Joseph. Prefeito da Congregação para a doutrina da fé da Sé Apostólica. Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre alguns aspectos da Igreja entendida como

comunhão de 28 de Maio de 1992. Disponível em

http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_28051992_comm unionis-notio_po.html . Acesso em 31/03/2015

335MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. Editora Malheiros. 29ª edição

revista e atualizada. São Paulo, 2012, p. 66.

336MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. Editora Malheiros. 29ª edição

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dos interesses da maioria quanto da minoria. Mello considera o interesse público como partícipe do jogo político, a ser resolvido pelo positivismo da lei.

Não há na obra de Bandeira de Mello uma opção declarada pelo utilitarismo ou referências a essa corrente, mas seu pensamento também não seria de todo incompatível com algumas vertentes do utilitarismo. No exemplo por ele próprio fornecido sobre o instituto da desapropriação, não haveria empecilho para que fosse empregado o princípio de utilidade para justificar o prejuízo individual em prol do benefício coletivo, gerando a "maior felicidade" possível.

Além disso, Bandeira de Mello afirma que as pessoas já buscam naturalmente a justiça, bem-estar social e segurança. Jeremy Bentham, provavelmente, consideraria que os cidadãos almejam esses objetivos apenas como "meios" para alcançar o prazer e fugir da dor. A obra do administrativista carece de um endereçamento sobre os critérios para mensurar a aplicação do interesse público na prática.

Por ser influente no STJ e STF, a teoria de Bandeira de Mello é, por consequência, influente em todos os tribunais do país, fato reconhecido até por seus críticos.