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O cenário pré-cana: uma análise da reprodução familiar camponesa antes do

Antes de adentrar no universo da produção canavieira é necessário resgatar, contudo, o cenário pré-cana. O que os assentados produziam antes da entrada do Projeto Cana? Para quem eles vendiam essa produção? Qual era a situação das famílias frente aos financiamentos bancários? Estas questões servirão de base para compreendermos o cenário que possibilitou o ingresso da cana no assentamento.

Antes do Projeto Cana, os assentados produziam mandioca e principalmente grãos, tais como milho, soja, feijão e arroz. Segundo relatos dos moradores do Monte Alegre, a terra era “fraca” e a comercialização difícil:

A gente plantava grão, só grão, porque eu também era contra o plantio de cana. A gente plantava soja, milho, feijão, amendoim. No primeiro ano que a gente plantou amendoim aqui, não conseguimos tirar nem para o gasto, milho dava naquelas manchinhas onde a terra ficava mais estercada, mais cinza, então o resto era tudo cabeça de maritaca. A terra era fraquíssima mesmo. O que produziu melhor na época foi o arroz, porque ele não exige terra muito forte. Nos primeiros anos ele produziu até bem, depois foi caindo, caindo... 136

Vai plantar milho, você enche esse terreno, planta aduba, faz cobertura...o que você vai colher dá 3000 reais. Ai o que você gastou você não consegue o retorno. Milho aqui é besteira...você pode plantar para alimentar um porco, uma galinha. Mas mesmo que dê bastante, o milho, se eu for comprar hoje eu pago 30 reais o saco de milho, de 50 kg. O dia de nós colher 100, 200 sacos de milho, o cara vai te pagar 20..quer dizer, é uma exploração, e o governo não ajuda a gente nesse sentido.137

No começo era muito bom para arroz, milho, mandioca... mas depois foi enfraquecendo.. a terra precisa de muito trato, ... ai o meu marido tinha plantado muito arroz na época, não só ele, bastante gente...e Deus não mandou a chuva e morreu tudo... ai começamos a ficar desgostosos...138 Arroz não dá dinheiro, eu sei porque eu sou um dos maiores cultivadores de arroz e sei que não dá dinheiro. Ano passado eu plantei milho, quando você vai plantar o milho está 60 pau o saco, quando você colhe ele vai pra 10, 20, e a semente está lá cima lá no alto. E o adubo, e mão de obra, gladiação, quando você coloca no lápis não sobra nada pra você.139

Nós tocávamos lavoura de milho, feijão, soja, só dava assim pras despesas, pra vender pra pagar umas dividas, não dava não. Então mesmo que colhia

136 Entrevista realizada com Moisés, assentado do Monte Alegre 1, em outubro de 2011. 137 Entrevista realizada com Sr. Domingos, assentado do Monte Alegre 2, em outubro de 2011. 138 Entrevista realizada com Neusa, assentada do Monte Alegre 1, em outubro de 2011. 139 Entrevista realizada com Sr. Dorvalino, assentado do Monte Alegre 1, em outubro de 2011.

bastante, não tinha valor. O milho não tinha valor. Não tinha jeito de pagar as contas com lavoura de milho. Com soja a mesma coisa, não tinha condição. Tentei de tudo. Tentei mamona também e não deu nada. A empresa faliu e eu perdi tudo.140

De acordo com o Sr. Domingos, a vida era tão difícil, que muitos assentados solicitavam cestas básicas na prefeitura:

Nós viemos pra cá em 2002...No tempo que não tinha cana, o pessoal aqui vivia pedindo cesta básica para as prefeituras...141

A cada ciclo agrícola a reposição dos meios de trabalho é realizada por intermédio de empréstimos bancários - necessário em função das más condições financeiras dos camponeses do assentamento. A compra de insumos, e equipamentos necessários ao cultivo, isto é, mercadorias industrializadas, possui um valor superior à venda do produto camponês sob a forma de matéria-prima.

Nesse processo, como Tavares dos Santos (1978) esclarece em seu estudo sobre os colonos do vinho, há uma transferência de parte do valor incorporado no produto camponês para o capital industrial, em função dos preços que o camponês paga por aqueles bens, cujo retorno na hora da venda do produto fica aquém do investimento realizado. Inserido nesse contexto, parte da renda da terra camponesa é drenada também pelo capital financeiro através de juros cobrados pela aquisição de empréstimos. Ademais, o camponês geralmente se vê obrigado a vender sua produção a baixos preços.

Então é comum os camponeses disporem de rendimentos negativos, determinados pelo modo de produção capitalista e pelas exigências que a dominação deste impõe ao produtor simples de mercadoria. Logo, apesar do processo de trabalho camponês não ser especificamente capitalista ele é reproduzido pelo modo de produção capitalista, isto é, ele é necessário à reprodução ampliada do capital.

Na confluência desses fatores, os assentados dificilmente conseguem escapar do endividamento bancário, conforme as falas:

140 Entrevista realizada com Sr. Fagundes, assentado do Monte Alegre 2, em outubro de 2011. 141 Entrevista realizada com Sr. Domingos, assentado do Monte Alegre 2, em outubro de 2011.

A gente tentou plantando o milho, o arroz, o feijão, a mandioca industrial pra farinha, plantamos algodão, soja, mas tudo precisa de dinheiro e nada disso deu retorno para pagar as contas no banco. A gente pagava metade e ficava devendo a outra metade (o financiamento). E foi quando surgiu em 2004 a oportunidade de plantar a cana-de-açúcar. Aqui nós somos umas 480 famílias, e só tumas 30, 40 que não estão inadimplentes no banco. 142 Hoje ninguém planta arroz mais no assentamento, a gente planta e não consegue produzir. Ai foi aonde a gente optou pela cana. A gente plantava tudo financiado também. Ai chegava na hora a gente colhia e não conseguia cobrir as dívidas.143

Exemplos como o do Sr. Luiz Pereira e do Moisés se multiplicam no interior do assentamento. O endividamento junto às instituições financeiras passou a se tornar uma realidade dura e cada vez mais comum pela região – o que corroborou para o enfraquecimento das atividades agrícolas nessas áreas. Conforme expressa Neusa, a dívida com o banco a impediu de obter um novo financiamento e, sem um aparato financeiro é difícil produzir:

O meu ex-marido saiu daqui e ficou afundado em R$ 18.000. Como que um pobre que trabalha pra comer vai pagar R$ 18.000? Ainda bem que eles perdoaram e foram embora. Viram a situação e a conta ficou pra eles. Mas com a dívida no banco, você não consegue mais uma agulha fiado...você tá suja, você fica com as quatro paredes fechadas pra você. Num adianta, pra você mexer aqui você tem que ter dinheiro. Se não tem, deixa quieto. Eu, por exemplo, vendi tudo o que eu tinha.144

Então em meio a esse cenário de escassez de recursos, de imobilidade, eis que surge a proposta da cana, que passa a ser encarada como salvação: “nem sei se ia existir eu e neto aqui hoje não. Por que onde a gente ia tirar comida? Quando eu estava desanimada, saiu a história da cana, ai deu certo” 145.

Então se por um lado o capital cria os liames para a dependência do produtor via endividamento, ele também transforma essa fragilidade em novos mecanismos de acumulação de capital através da introdução de projetos de “integração” que subordinam ainda mais à produção no campo.

142 Entrevista realizada com Luiz Pereira, assentado do Monte Alegre 1, em outubro de 2011. 143 Entrevista realizada com Moisés, assentado do Monte Alegre 1, em outubro de 2011. 144 Entrevista realizada com Neusa, assentada do Monte Alegre 1, em outubro de 2011. 145 Idem, 2011.

A presença da cana passa a representar também um marco histórico no imaginário dos moradores do assentamento: o antes (a luta, o sofrimento) e o depois do cultivo (a conquista, o retorno):

“Eu fiquei acampado em Pradópolis. Eu trabalhava na usina São Martinho, eu cortava cana. (...) Foi sofrido demais aquela época e com muita luta nós conseguimos chegar até aqui porque naquele tempo nós não tinha condição, nós lutamos, dividiu as terras pra cada um, lote de 6 alqueires, daí plantamos lavoura. Sempre que plantávamos lavoura, não dava muito não. E ai chegou um momento... agora, há pouco tempo, que teve um plano ai do plantio de cana e melhorou pra todo mundo. Se não fosse a cana, o povo não agüentava ficar aqui”.146

Mais do que isso, as usinas passam a ser vistas como entidades generosas, acolhedoras, que, diferentemente das instituições bancárias, não selecionam seus “clientes/parceiros” pelas condições sócio-econômicas. Então, com ou sem dívidas, todos puderam se tornar “parceiros”, conforme fala de Moisés:

A cana surgiu em uma hora boa para nós, porque uns 80% estava com nome no Serasa e SPC e conseguiu plantar a cana. A usina não olhou para esse lado, ela entrou fez o investimento, foi descontando em três vezes, e o pessoal foi pagando as dívidas. A cana foi um ótimo negócio para nós no assentamento.147

Para Moisés, o contrato com as usinas possibilitou aos assentados uma nova oportunidade para produzir, ao mesmo tempo em que representou liberdade frente às amarras das instituições financeiras. Esta visão também é compartilhada pelo assentado Luiz Pereira:

A cana é diferente, você não depende de dinheiro de banco para sujar seu nome. Porque você faz um financiamento de investimento hoje, você planta: se da certo, ótimo, se não da, ai você não tem como pagar e fica a dívida pra trás. Já a cana, você tem toda a confiança porque a própria usina banca: ela desconta por exemplo em 3 anos todo o gasto que ela faz: o preparo do solo, a distribuição de calcário, o adubo, as mudas, e nós entramos com o plantio. Então antigamente, a gente plantava tudo financiado. Ai chegava na hora a gente colhia e não conseguia cobrir as dívidas. Ficávamos endividados, e foi aí aonde a cana deu certo, porque o pessoal não conseguia mais crédito porque estava com nome sujo, não

146 Entrevista realizada com Sr. Fagundes, assentado do Monte Alegre 2, em outubro de 2011. 147 Entrevista realizada com Moisés, assentado do Monte Alegre 1, em outubro de 2011.

conseguia um outro financiamento. Ficava pendente no Serasa e SPC, porque não pagou a conta. 148

Na fala de Luiz Pereira, a usina também é vista como uma entidade “parceira” que fornece os meios para o assentado produzir, uma vez que ela banca a produção. Ao financiar o plantio, que é descontado de cada assentado ao longo das safras subsequentes, o Projeto Cana dispensa a utilização de crédito rural o que culmina nessa visão positiva dos assentados frente às usinas. Já o Sr. Dorvalino reforça as vantagens da “parceria”:

A usina paga em parcelas: 50%, 30% e 20%. Então vai cobrando parcela, o que sobrar é seu, é limpo, porque a gente não paga imposto.149

Então para ele, além da usina parcelar as cobranças, ela ainda permite que o assentado fature uma boa parcela de forma integral, sem cobrar nada a mais por isso. Na verdade, tudo é descontado nos primeiros três anos de plantio, inclusive os impostos correspondentes. O fato de o cheque com o valor total da safra ser recebido anualmente, e os descontos serem efetuados no início do ciclo da cana, causa uma sensação de que o valor obtido foi excepcional, além do esperado. Isso não minimiza o fato de que em muitos casos o valor recebido tenha realmente surpreendido, mas reforça que o recebimento do montante de uma única vez transmite uma ilusão sobre o valor final pago.

A partir desses relatos é possível compreender com mais exatidão o que fez da cana um projeto de tamanha adesão, como será evidenciado a seguir. É preciso ressaltar, sobretudo, que mesmo no período em que o Projeto Cana vigorou, outros cultivos foram produzidos no assentamento.

Segundo dados obtidos junto ao ITESP, cujas informações foram extraídas de anotações de cadernetas de campo, referentes ao ano de 2009 sobre a produção agrícola no assentamento: além da cana, o milho ocupava lugar de destaque, seguido de mandioca, feijão, manga e alface. Outros alimentos também eram cultivados, mas em uma quantidade bem mais reduzida, são eles: abacaxi, abóbora, abobrinha, almeirão, arroz, banana, berinjela, beterraba, brócolis, café, cenoura,

148 Entrevista realizada com Luiz Pereira, assentado do Monte Alegre 1, em outubro de 2011. 149 Entrevista realizada com Sr. Dorvalino, assentado do Monte Alegre 1, em outubro de 2011.

caqui, cheiro verde, chicória, couve-flor, jiló, laranja, limão, mamão, pepino, pimenta, quiabo, repolho, rúcula, vagem.

Apesar da predominância absoluta, a cana tem dividido espaço com outros cultivos, isto é, ainda há uma diversificação na produção, mesmo que em escala reduzida. O que de fato foi possível notar ao visitar o assentamento é que enquanto alguns assentados trataram de investir em outros cultivos nos outros 50% do lote, outros não diversificaram e se focaram apenas na produção da cana, o que gerou também a presença de terrenos ociosos.

Mas há, por exemplo, os que produzem leite e frango ou hortaliças que lhes garante o autoconsumo e a renda através da venda direta e da participação em programas municipais. O dinheiro advindo dessa produção lhes garante a renda do dia-a-dia, enquanto o da cana garante uma renda anual para investimento nas demais atividades do lote. Essa heterogeneidade de situações evidencia a complexidade do processo de reprodução do campesinato, como veremos adiante – onde analisaremos o que de fato representou a presença da cana no assentamento Monte Alegre.

2.6 Balanço da produção canavieira no assentamento Monte Alegre: a