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Cenário DA sociabilidade contemporânea Regra e exceção não têm mais regras

D

esde crianças aprendemos que precisamos seguir regras para viver organizadamente em socie­ dade. No entanto, nos últimos tempos, as regras parecem ter-se tornado exceções e vice-versa. E o mau exemplo vem de quem deveria dar o bom exemplo.

A corrupção que sempre existiu nas estruturas governamentais expôs-se à luz desde o governo Collor. Ela está à nossa vista, e isso gera uma situação de libertinagem social que a psicanalista brasileira Maria Rita Kehl muito bem descreveu no artigo “A elite somos nós”, publicado no jornal Folha de S.Paulo de 15 de janeiro de 2005.

Disse ela que estava andando em uma calçada de Copacabana, no Rio de Janeiro, quando notou dois rapazes da periferia engraxando os sapatos de um turista. Ao terminar o serviço, taxa­ ram o preço em 50 reais. O turista achou muito e deu uma nota de 10 reais. O engraxate olhou bem para o freguês e arrancou da sua carteira uma nota de 50 reais. Assustado, o estrangeiro resolveu “cair fora”.

Maria Rita, que observava tudo, não conseguiu deixar de protestar: “Cara, você vai cobrar 50 reais para engraxar os sapatos do gringo?”

O engraxate simplesmente disse: “Se eu quiser, cobro cem, cobro mil, e a senhora não se meta com a gente”.

E o outro remendou:

“Vai buscar seu mensalão, madame, que este aqui é o nosso”. Com base nessa experiência, ela concluiu:

“Não é difícil compreender que a bandidagem escancarada entre representantes dos interesses públicos (os políticos) autoriza definitivamente a delinqüência no resto da sociedade. O termo mensalão já se tornou sinônimo de patifaria generalizada: [...] estamos todos à deriva. É a lei do salve-se quem puder

E, assim, o exemplo que “vem de cima” mostra ao povo que o melhor é “se dar bem”, ou, como dizia o comercial antigo de cigarros que deu origem à famosa Lei de Gerson, “é preciso levar vanta­ gem em tudo, certo?” Isso autoriza os indivíduos a fazer o que quiserem: “Se os poderosos fazem, por que eu não posso fazer também?”

Neste capítulo examinamos conceitos utilizados por diferentes autores na análise da relação entre o indivíduo e a sociedade: classe social (Marx), consciência coletiva e anomia (Durkheim), ação social (Weber), configuração (Elias), habitus (Bourdieu). Qual ou quais desses conceitos poderia(m) ajudar

na interpretação do comportamento descrito por Maria Rita Kehl?

PARA REFLETIR

Eu etiqueta

Em minha calça está grudado um nome que não é meu de batismo ou de cartório, um nome... estranho.

Meu blusão traz lembrete de bebida que jamais pus na boca, nesta vida. Em minha camiseta, a marca de cigarro que não fumo, até hoje não fumei. Minhas meias falam de produto que nunca experimentei

mas são comunicados a meus pés. Meu tênis é proclama colorido de alguma coisa não provada por este provador de longa idade.

Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, minha gravata e cinto e escova e pente, meu copo, minha xícara,

minha toalha de banho e sabonete, meu isso, meu aquilo,

desde a cabeça ao bico dos sapatos, são mensagens,

letras falantes, gritos visuais,

ordens de uso, abuso, reincidência, costume, hábito, premência, indispensabilidade,

e fazem de mim homem anúncio itinerante, escravo da matéria anunciada.

Estou, estou na moda.

É doce estar na moda, ainda que a moda seja negar minha identidade,

trocá-la por mil, açambarcando todas as marcas registradas, todos os logotipos do mercado. Com que inocência demito-me de ser eu que antes era e me sabia

tão diverso de outros, tão mim-mesmo, ser pensante, sentinte e solidário com outros seres diversos e conscientes de sua humana, invencível condição. Agora sou anúncio,

1. Ao ler esse poema de Drummond, você identifica alguma situação que enfrenta no seu cotidiano, em casa, na escola ou mesmo entre os amigos?

2. Ao comprar uma roupa de grife, isto é, que tem uma etiqueta, ou uma ca­ miseta que vem com a logomarca da empresa que a fabricou, você acha­ Andrade, Carlos Drummond de. O Corpo. 10. ed. Rio de Janeiro: Record, 1987. p. 85-7.

ora vulgar ora bizarro,

em língua nacional ou em qualquer língua (qualquer, principalmente).

E nisto me comprazo, tiro glória de minha anulação.

Não sou — vê lá — anúncio contratado. Eu é que mimosamente pago

para anunciar, para vender

em bares festas praias pérgulas piscinas, e bem à vista exibo esta etiqueta global no corpo que desiste

de ser veste e sandália de uma essência tão viva, independente,

que moda ou suborno algum a compromete. Onde terei jogado fora

meu gosto e capacidade de escolher, minhas idiossincrasias tão pessoais, tão minhas que no rosto se espelhavam, e cada gesto, cada olhar,

cada vinco da roupa resumia uma estética?

Hoje sou costurado, sou tecido, sou gravado de forma universal, saio da estamparia, não de casa, da vitrina me tiram, recolocam, objeto pulsante mas objeto

que se oferece como signo de outros objetos estáticos, tarifados.

Por me ostentar assim, tão orgulhoso de ser não eu, mas artigo industrial, peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título de homem. Meu nome novo é coisa.

Eu sou a coisa, coisamente.

ria estranho pagar para ser utilizado como um outdoor ambulante?

3. O poema realça a capacidade humana de pensar, agir e decidir sobre a própria vida como um valor fundamental. Entretan­ to, vivemos numa sociedade em que a imagem é uma das coisas mais importan­ tes e, por isso, a roupa e os objetos que usamos são algo que nos identifica como membros de determinado grupo ou classe social. Você acha que se despersonaliza, deixa de ser autêntico, quando escolhe produtos pela marca que ostentam?

PARA ORGANIZAR O CONHECIMENTO

O sociólogo Alberto Tosi Rodrigues (1965-2003), que foi professor da Universi­ dade Federal do Espírito Santo, infelizmente morreu muito jovem, sem poder concluir o que tinha projetado. Mas escreveu vários livros, e de um deles foi extraído o texto a seguir, que poderá ajudá-lo a ordenar as ideias sobre o que leu nesta unidade. Discuta com seus colegas as respostas que daria às perguntas feitas pelo autor.

O homem faz a sociedade ou