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Foi numa segunda-feira, dia 13 de maio de 2013, o terceiro encontro. Eu e Maria Marcionilia chegamos ao núcleo e logo começamos a organizar o espaço. Aos domingos, o espaço era ocupado por crianças que tinham aula de catecismo. As carteiras estavam enfileiradas, o chão estava sujo e a lousa repleta de versículos e orações. Enquanto limpávamos, Maria Marcionilia explicava a rotina das atividades da Igreja e a sua participação nas missas aos domingos.

Tudo pronto e, aos poucos, o grupo foi chegando para o terceiro encontro. Estava ansiosa; afinal, no encontro anterior, a sensação de conforto que tinha sentido em relação à aceitação da intervenção foi abalada, quando as educandas exigiram que não queriam que os registros escritos, como parte do material a ser entregue para mim, tivessem erros ortográficos.

A opção de deixá-las livres em relação à escrita sem que se preocupassem com erros ortógrafos seria uma forma de respeito. Pensei que era mais coerente, mas elas revidaram dizendo “não queremos passar vergonha”.

Embora tenha enfatizado desde o início da intervenção que não teria problema em relação às possíveis dificuldades e até erros ortográficos em relação aos registros escritos realizados durante as atividades, essa atitude das educandas nos mostrou que compreendiam o papel da língua e da escrita padrão e que isto as inseria dentro da norma correta de linguagem escrita e aceita socialmente, não só na escrita, mas e principalmente como mulheres que têm consciência dos valores sociais e culturais implícitos nesse contexto. De certo, porque já estavam cansadas de serem repreendidas e/ou excluídas por falta desses requisitos.

Comprometemo-nos a ajudá-las individualmente nas correções, em especial quando os registros escritos fossem para a pesquisa. Firmados os acordos necessários, iniciamos o terceiro encontro retomando a sessão do Teatro-Fórum, reconstruindo a história coletivamente

e transformando-a em uma pequena “cena”, criando nomes e “falas” para os personagens como nos moldes de um texto teatral, de forma a garantir a participação de todas. O grupo escolheu a própria Maria do Carmo para protagonizar e a Josefa Inácia como a “vilã”. As demais educandas representaram as filhas da protagonista. Antes da representação, fizemos um aquecimento com a adaptação de um jogo denominado por Boal como “A imagem múltipla do outro”, no qual cada um dos dois interlocutores, um por vez, esculpe as imagens que tem do outro e que lhe causam medo, ou amor, ou repulsa, ou o que seja. Improvisam com essas imagens, agindo segundo sua forma, segundo sua imagem. (BOAL, 2007, p. 283).

Para o desenvolvimento dessa atividade, organizamos o grupo em duplas, nas quais pudessem revezar os papéis de esculturas e escultores. Foram orientadas a experimentar “todas” as possibilidades corporais, respeitando-se os limites de cada uma, criando imagens/esculturas de acordo com as características possíveis das personagens. Orientamos também que, durante o exercício, pensassem em que posição se sentiam melhor, se como escultura ou como escultora. Durante o jogo, o grupo parecia muito à vontade e, embora estivessem diante de uma situação de aparente “desigualdade”, pareciam se divertir. Estas e outras observações nos permitiram pensar que as educandas estavam gostando da atividade. As risadas nervosas iniciais foram sendo substituídas por expressões como: “Eita! Como é bom fazer as coisas do jeito que a gente quer!”, “Você vai sentir frio pra ver se é bom”.

Seguindo esta atividade do jogo provocamos novamente o grupo a pensar sobre em que posição havia gostado mais de estar: “escultor” ou “escultura”. Em geral, elas disseram que gostavam mais de serem escultoras, por que a ação de poder manusear ou modelar o outro as deixavam em posição mais confortável e autônoma. Esta afirmação se confirma em alguns relatos das educandas: “Eu gosto de estar por cima”, “Prefiro mandar do que ser mandada” “É bom ter poder”, “Escultor tem voz ativa”, “Eita! Como é bom a gente fazer o que quer!”

Podemos afirmar, com certa segurança, que neste quesito a proposta de Boal encontra a pedagogia de Freire em relação às questões de identidade e de diferença. Aproveitamos a ocasião para provocar uma reflexão sobre suas condições existenciais de migrante. Então, perguntamos: Gosto de estar por cima? Como? Essa situação de migrante sem recursos e na dependência de parentes não torna vocês iguais?

Esta e outras questões provocavam risos, mas aos poucos elas foram percebendo que estavam repetindo as atitudes coercitivas que as submetera por tanto tempo. No início, nós, Neli e eu, depois elas também, percebemos a emergência de uma “consciência política e solidária” que, entretanto, vinha misturada com falas bastante autoritárias. Isto não nos preocupava. Tão logo faziam uma afirmação carregada de preconceito e autoritarismo elas

mesmas se corrigiam até chegar às falas que revelavam certa energia para a busca de autonomia, como se pode perceber no final da representação.

No diálogo que se seguiu, perguntamos quais seriam os modos ou os meios que o opressor usava para oprimi-las. Perguntamos o quê, nas relações entre elas e seus patrões ou em nossa sociedade, nos fazem sentir ora por cima ora por baixo?

O grupo destacou o analfabetismo, as desigualdades sociais, as mídias, os meios de comunicação, o desenvolvimento tecnológico, o desrespeito ao ser humano em geral. Este último item, de acordo com as educandas, é o mais assustador: “parece que a vida não vale mais nada”, fazendo menção à violência e à falta de segurança, em especial nos bairros mais periféricos.

Retomamos a proposta inicial da aula e o texto criado por elas para a encenação da história contada por Maria do Carmo. Abrimos espaço para a encenação prevista e elas se organizaram em relação ao espaço e aos adereços, mostrando desenvoltura e criatividade. Maria do Carmo pegou um guarda-chuva e um pano. As demais educandas que representavam os filhos posicionaram-se atrás dela. Josefa posicionou-se perto da porta, como forma de representar seu papel de vilã, o mais fiel possível.

A primeira representação aconteceu entre nervosismos e demonstravam nesta atitude sinais de medo e submissão nas tímidas risadas. Entre olhares de medo e algumas vezes de alegria por algo que as tocava.Na segunda e na terceira vez já estavam bem mais à vontade e seguras dos personagens. Elas mesmas pediram para representar mais vezes. Na terceira vez, avaliaram que foi boa a representação e assim foi encerrada a cena.

Pedimos que o grupo refletisse sobre os aspectos que lhes chamaram mais atenção durante a representação.

O grupo destacou que sentiram vontade de bater na personagem Josefa Inácia, a qual era a “opressora” da história, por que percebiam que as ações e posições da personagem eram extremamente arbitrárias diante dos fatos representados. Josefa Inácia falou: “Nossa, como é triste fazer alguém passar frio”, demonstrando insatisfação com as ações da personagem representada.

As educandas ainda destacaram que o mais triste era saber que essa situação ainda era uma realidade e essa constatação causava-lhes certo pesar.

Por fim, pedimos também que registrassem individualmente a sensação ou sentimentos que a situação representada lhes tinha causado, a partir da história de Maria do Carmo. Foram elas:

Maria do Carmo: Cícera Maria: Eduarda Santos: Josefa Inácia: Maria Marcionilia: Maria Oner: Severina Antonia:

Com base na educação progressista defendida por Freire, podemos inferir que nesse momento as educandas perceberam as contradições que permeiam as estruturas sociais, políticas e culturais, fato que as prepara para recriar uma nova possibilidade de intervenção que emerge a partir de sua realidade. Como evidencia o trecho da obra de Freire (1980, p. 43) em Educação como Prática da Liberdade:

A partir das relações do homem com a realidade, resultante de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é fazedor [...]

Dentro de uma proposta de alfabetização tão ampla como esta que defendemos, tornam-se indispensáveis experiências e vivências dos sujeitos, que trazem uma fundamentação e pressupostos para discussões e reflexões e que podem resultar na tomada de consciência crítica da realidade. Consciência que se constitui como instrumento de transformação do contexto no qual estão inseridas.