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CAPÍTULO 3 – LEGALIDADE E ILEGALIDADE DO ESTADO BRASILEIRO: UMA

3.1 CENA 2 – OS SUJEITOS-DOBRADIÇA

Os homicídios contra os adolescentes negros não começam a partir de uma única situação de vulnerabilidade social. Eles são resultados de um processo, que se inicia a partir de violações pelas quais a mãe daquele menino passou. É uma violência cíclica, a mãe geralmente já foi vítima de alguma violência, seja sexual, doméstica, ou vítima de racismo....

Em sua maioria, essas mulheres criam os filhos sozinhas, do jeito que dá, porque precisam sair pra trabalhar e não têm com quem e nem onde deixar os meninos. Os pais, quando não somem, não assumem, então, acabam criando mesmo sozinhas. Quase sempre são mulheres negras.

Geralmente, moram em bairros muito pobres: as pessoas vivem como que comprimidas, em espaços de miséria, sem área de lazer e sem equipamentos necessários, sejam de educação, saúde ou de assistência.

Percebo muito que as crianças e adolescentes daqui vivem meio ‘abandonados’, por mães que estão geralmente cuidando dos filhos dos outros... E acho que falta também um certo afeto entre mães e filhos... parece que alguma coisa se perdeu entre eles. Já vi casos de mãe levar menino pra delegacia e querer deixar por lá, porque o filho dá muito trabalho, já se envolveu com tanta coisa errada que a mãe não dá mais conta de aguentar. Falta afeto entre mães e filhos adolescentes, principalmente para os que ‘dão problemas’.

Há também muito adolescente de doze, treze anos, que sustenta a família, mantém a casa, apenas com furto. Essa é uma realidade muito dolorosa, porque você já sabe no que vai dar, não é?

Sobre a questão dos homicídios contra esses meninos, uma coisa é certa: mais ou menos uns 80% deles são casos sem solução, porque nem se investigam como deveria. Existe muito preconceito, por parte da polícia, em investigar ou responsabilizar quem cometeu homicídio contra adolescente, por causa dessa ideia geral de que menino pobre e preto é mesmo uma perda de tempo: ou vai morrer, ou vai ser preso.

Isso é muito irônico, porque muitos desses PMs saíram das mesmas comunidades que esses meninos vítimas de homicídio...poderiam ser ‘ex-futuros-meninos-mortos’. Parece que alimentam o preconceito com a ideia de apagar essa marca da raça, como se tivessem vergonha da sua origem preta e pobre. Não se permitem nunca se colocarem no lugar daqueles meninos.

Também percebo uma grande falta de pessoal, nas Polícias, e grande frustração daqueles que tentam fazer um bom trabalho, porque sem pessoal suficiente, é impossível. Também não há uma cultura de oferecimento de proteção às pessoas, pelo pessoal da Segurança Pública. Nem no Ministério Público, nem no Judiciário. Isso é muito grave, porque ter uma cultura de oferecer segurança não significa combater o crime. E geralmente, combater o crime para a maioria da Polícia Militar é prender ou exterminar jovem negro.

Aí, somado a isso, a corrupção policial também é muito presente. A gente percebe, nas comunidades mais pobres onde o tráfico comanda, uma grande frequência de trânsito da polícia militar, são quase sempre os mesmos que frequentam as comunidades, conhecem as pessoas, sabem quem são os traficantes... A impressão que fica é que se quisessem acabar com o tráfico, acabariam.

Quando acontece algum homicídio de adolescente negro em abordagem policial, eles sempre consideram isso como confronto, como auto de resistência. Quase nunca foi confronto. O olhar da PM é o mesmo da sociedade, é tudo senso comum: os meninos negros são bandidos, então podem morrer.

No caso desse Grupo de Extermínio, a história era sempre a mesma: nas ‘abordagens’ realizadas pelos ‘seguranças privados’, ou alguém era morto, ou era baleado. Mas quando as denúncias começaram a surgir, vieram com muita força e de muitos lados. O caso estourou na imprensa nacional e internacional. Todo mundo ficou sabendo, um grande escândalo, porque envolvia gente do alto escalão da Polícia Militar no comando de um grupo de extermínio, que fazia segurança privada e clandestina de uma rede comercial, em todo o estado.

Eram muitos policiais militares envolvidos, além de profissionais da área de segurança e vigilantes. Sua ação não estava apenas ligada à proteção do patrimônio. Se estivesse, eles não usariam de tanta crueldade com os adolescentes envolvidos: se fosse para agir certo, levariam para a delegacia e fim. Não matariam. Eu me recordo de duas situações, de dois meninos, que falam mais do que qualquer coisa, sobre a natureza desses crimes de extermínio. Quando nós estávamos investigando caso a caso, recebemos uma denúncia sobre um adolescente que se via ameaçado, em função de ter sobrevivido à ação do Policial X, que era o de alta patente, organizador do grupo de extermínio. À época da tentativa de assalto praticada por esse adolescente, Alberto, ele tinha apenas 12 anos e estava em companhia de um jovem, maior de idade. Foi baleado na coluna, pelo Policial X. Ou morria, ou ficava deficiente fisicamente. Por fim, a tetraplegia foi o resultado.

Quando eu encontrei o Alberto, a sensação foi um misto de tristeza, raiva e pavor, porque o menino, já com 18 anos, estava literalmente apodrecendo em uma espécie de maca.

A família, muito pobre, não tinha condição alguma de cuidar dele da forma que o quadro clínico exigia. Ele já não tinha nádegas, devido ao fato de estar constantemente deitado. Foi muito triste ver aquilo.

A família se sentia ameaçada em função de perceber a presença cotidiana de viaturas da polícia rondando a residência. Todos se traumatizaram. E mesmo que fosse só impressão, a gente estava investigando fatos muito sérios, e os depoimentos dos envolvidos realmente não traziam a eles nenhuma segurança. Então, Alberto foi encaminhado a um Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas.

Já no caso de Antônio, a crueldade também foi explícita: os PMs balearam a perna dele, pisaram, chutaram, saíram com ele num carro, rodaram a noite toda e só pela manhã o largaram num hospital. O fato é que quando recebeu socorro, a perna já estava gangrenada, nada a fazer que não amputá-la. Ele nunca se adaptou às próteses, tinha dores horríveis e deve ter até hoje.

Eu penso que o tempo acaba sendo também uma pena, porque a morosidade da Justiça é enorme! As primeiras audiências dos dois casos ocorreram em 2016, 10 anos depois do início do processo. Isso, por si só, já se transforma em tortura, porque os adolescentes e as famílias não têm um minuto de paz, têm medo de sofrer retaliação e ao mesmo tempo não acreditam na Justiça. Quando fomos tomar o depoimento desses meninos, eles não queriam falar. Diziam assim: ‘pra quê, falar sobre isso agora? Não vai dar em nada mesmo!’... Esse silencio é sinal de que no final, eles vencem. Assim como o fato de até hoje nenhum deles ter sido responsabilizado, por nenhum dos crimes cometidos.

Esse caso, como todos os outros que envolvem Grupos de Extermínio, só teve o início da investigação realizado muitos anos depois. Isso ajuda os acusados. No momento inicial, quando as entidades denunciaram as mortes e lesões corporais, as Delegacias deveriam ter instaurado séria investigação, isso até evitaria novos crimes. Mas as investigações formalizadas, com inquéritos abertos, em princípio, foram aquelas contra o patrimônio e não contra a pessoa. As vítimas eram indesejáveis, criminosos, então, não valiam nada.

É isso o que mais me revolta e frustra. De nada adiantou direcionar tanta energia, tanto tempo, ter me exposto tanto! É uma questão de justiça: não foi apenas um trabalho desenvolvido que não surtiu efeito... Era uma enorme vontade de querer reparar pelo menos isso, dentre tanta coisa errada! Mas todo o esforço se fez em nada! Não houve nenhum resultado por parte dos órgãos que efetivamente deveriam fazer alguma coisa!

Eu queria que eles (a Justiça) tivessem visto as cenas que eu vi! Visto aquele menino morrendo-vivo, sem esperança nenhuma, sem cuidado nenhum, só carregando dor. Se eles

tivessem sentido o que eu senti ali, talvez o andamento processual fosse mais rápido, talvez a responsabilização já tivesse acontecido.

Mas, como diz o Chico Buarque, a dor da gente não sai no jornal.