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CAPÍTULO 4 – A CHACINA DO CABULA

4.2 O QUILOMBO DO CABULA: RESISTÊNCIA AFRICANA

Região da Engomadeira. Um nome que traz consigo a imagem da mulher negra que trabalha engomando a roupa dos patrões, dos senhores e senhoras brancos que contratam seus serviços, enquanto seus filhos crescem pelas ruas da Vila Moisés, uma das localidades no interior do bairro Cabula, localizado no miolo de Salvador, como é também denominada, pelos moradores, a região central da península.

A história da região da Engomadeira, porém, é mais do que a imagem de exploração que remete à ideia da colonização dos corpos, da colonização da vida (FLOR DO NASCIMENTO, 2010). Ela é fortemente marcada pela resistência africana e do povo negro que ali se desenvolveu. É uma história de luta, emancipação e resistência negra. E é a partir da percepção emocional do espaço físico, dos laços de afeto e memória que se estabelecem na relação entre os sujeitos, o território no qual habitam e constroem sua própria história (BACHELARD, 1998) que se podem desemaranhar os significados de resistência e luta, na busca por um olhar micropolítico para com aquilo que sustenta o racismo, naquela região. Eis

o principal objetivo aqui em resgatar um pouco da história do Cabula para buscar compreender a importância da expressão do racismo também naquele território, tanto físico como simbólico. A palavra cabula advém do tronco linguístico Banto, kabula, originária da região africana que hoje contempla os países de Angola e Congo. O significado traz a ideia de algo secreto, escondido, misterioso, geralmente associado à prática de culto religioso africano, especificamente do Candomblé. O nome do bairro provavelmente surge a partir da presença de muitos quilombos que povoaram a região em sua ocupação original, principalmente de um em específico, o Quilombo do Cabula. Há registros de que muitos escravos refugiavam-se no local, que pode ser considerado o principal quilombo de resistência negra ao longo do período de escravidão na cidade de Salvador (FERNANDES, 2003).

Há também a menção de que cabula tenha relação com a língua Quicongo (ou Kikongo) e à ideia de território que afasta o mal. O nome Cabula também representa um ritmo de percussão, um toque utilizado pelos quilombolas como um chamamento para a batalha. É sabido, através da comunicação oral típica da transmissão de conhecimento africana, que os tambores de onde brotavam a Cabula eram tão poderosamente tocados que chegavam a ser ouvidos no comércio e centro histórico da cidade de Salvador, inundando a alma dos muitos e muitos negros ainda escravizados: simbolizavam esperança na luta (NUNES, 2015).

A influência africana das comunidades quilombolas na região do Cabula atual são principalmente observáveis pela permanência de Terreiros de Candomblé tradicionais e de imensa importância, dentre eles o Ilê Axé Opô Afonjá.

Um fato muito importante, nesse contexto de formação do bairro, é que o quilombo Cabula era considerado um dos que mais se tinha dificuldade de ser acessado pelas milícias coloniais, em função de localizar-se no interior de uma mata fechada e de um relevo muito íngreme, ideal para manter-se como esconderijo do povo negro em sua busca por libertação. Além disso, a inacessibilidade servia também de proteção à prática do Candomblé, muitas vezes criminalizada pelas mesmas milícias.

Importa resgatar a história do Cabula como forma de buscar as origens quilombolas do lugar, as histórias de homens e mulheres negras que deram vida àquela localidade, que continua sendo periférica e de resistência contra o projeto de Estado que mata, extorque, tortura, sequestra e humilha:

A história do Cabula, dos quilombolas que fundaram a região e moram hoje na periferia fora sempre resistindo às ignominias estruturais e raciais do Estado brasileiro: Foi assim em 1807 com a destruição do Quilombo do Cabula; foi assim na Operação Beiru em 1996, onde, em um mês, 52 jovens negros foram assassinados pela polícia. Exterminaram no bairro uma geração. Inocularam para sempre na alma

das mães e pais o sangue dos filhos nos olhos. Hoje é assim na Vila Moisés, na Estrada das Barreiras. É secular a voracidade sanguínea e sistêmica dos cães mandibulares. É secular as impetrações dos governantes na Bahia, estruturando a cada época um novo extermínio (NUNES, 2015, p. 2).

É possível inferir uma relação territorial histórica entre a opressão e a resistência, no território do Cabula. Tanto que alguns autores trabalham com a perspectiva da construção de uma identidade de afirmação afrocultural tão intensa que não se descarta a ideia da existência de um quilombo urbano na atualidade (MOTA; FREITAS, 2014)

A destruição do Quilombo do Cabula deu-se em 1807, a partir de ordens do Governador e Capitão-General da Bahia, o Conde da Ponte, que ordenou ao Capitão-Mor das Entradas e Assaltos do Termo da Cidade de Salvador, Severino da Silva Lessa, a convocação da tropa de linha para o enfrentamento e destruição do local. Cerca de 78 negros, dentre escravos e libertos, foram vencidos pela polícia e oficiais do mato, com alguma resistência, porém nada comparável à força de seus algozes. É a primeira notícia de extermínio do povo negro naquela região (PEDREIRA, 1973).

A região de sítios e chácaras abrigou por muitos anos o plantio da laranja conhecida como laranja-bahia, o que a partir de 1940 teve seu declínio. Um tipo bem típico de trabalho que acolheu durante muito tempo a mão-de-obra escrava em Salvador (REGO, 1968). O bairro, com o passar dos anos, foi se transformando, de uma área essencialmente rural para uma localidade na qual a intervenção do Estado foi se construindo também arquitetonicamente, através da organização das construções e dos espaços de convivência. Há, na região, a presença de condomínios de apartamentos de classe média alta, casas que podem ser consideradas mais populares e a comunidade, também conhecida como favela, na qual reside a parcela mais pobre e vulnerável, desde à ausência de saneamento básico, à ação da Polícia Militar.