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CAPÍTULO 3 – LEGALIDADE E ILEGALIDADE DO ESTADO BRASILEIRO: UMA

3.2 NA DOBRA DO DIREITO

Em um estado da região nordeste do Brasil,16 em meados do ano de 2002, uma série de denúncias foram feitas, por parte de Organizações de Defesa dos Direitos Humanos e de Crianças e Adolescentes, acerca da prática de contratação de policiais militares para exercício da função de seguranças, por parte de uma empresa local.

As denúncias tinham como foco não só a prestação ilegal do serviço de segurança privada, como também a prática de tortura e homicídio de adolescentes e jovens negros, que em alguma medida envolveram-se em tentativas de furto ou roubo junto à dita empresa. Culminaram em instauração de inquérito aberto na Polícia Federal. A partir da interceptação de ligações telefônicas de um dos envolvidos na organização do esquema de segurança clandestina, foi possível colher provas necessárias aos procedimentos jurídicos específicos e o Delegado da PF responsável pela investigação representou pela prisão preventiva contra os envolvidos que foram identificados. Porém, o juiz federal responsável inicialmente pelo caso declinou da competência e assim os autos processuais foram remetidos à Justiça Estadual.

O primeiro ponto a ser levantado como imprescindível para o estudo desse caso é que as ligações que foram interceptadas partiam do número telefônico de um militar de alta patente, que exercia naquele momento, atividade no Comando da Polícia Militar daquele estado.

A complexidade do caso foi tanta, visto inúmeros crimes envolvidos, que a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República recebeu a denúncia para apuração e acompanhamento do caso, via Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, daquele estado, em 2010. Uma Subcomissão foi formada a partir de representantes dos seguintes órgãos:

a) Ministério Público Federal; b) Ministério Público Estadual;

c) Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) daquele estado;

16Como o processo ainda está em andamento e, além disso, há um envolvimento de representantes do Estado com

poderes específicos de corporação policial, foi decidido omitir nomes e situações que possam remeter à identidade dos envolvidos no caso. Porém, a veracidade das informações pode ser comprovada junto à pesquisa sobre o caso, junto aos arquivos da SDH/CDDPH.

d) Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do estado; e) Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça;

f) Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa daquele Estado; g) Defensoria Pública Estadual;

h) Organização de Defesa dos Direitos Humanos; i) Centro de Defesa da Criança e do Adolescente; j) Comissão Brasileira de Justiça e Paz;

k) Central Única das Favelas daquele estado.

Além de complexo, o caso envolvia a presença de um número muito grande de práticas ilegais e criminosas, o que determinou a necessidade de diversas organizações e instituições no desenvolvimento dos trabalhos da Comissão: havia a forte suspeita da ação de um ou mais Grupos de Extermínio naquele estado.

As atividades de investigação e averiguação de informações da dita Comissão iniciaram- se com o acompanhamento dos trabalhos anteriores de uma Assembleia Legislativa, que havia iniciado anteriormente o desenvolvimento de CPI sobre o tema da ação de Grupos de Extermínio na região. Após o contato com esse material, novas denúncias surgiram e outras informações sobre homicídios que apresentavam semelhança com o modus operandi dos Grupos de Extermínio foram incluídos nas análises.

A partir das investigações frente ao caso, foram identificadas 05 vítimas adultas e 19 vítimas adolescentes, todas negras. Os autores de tais homicídios eram indivíduos que tinham ligação com o Estado ou que estavam ligados a serviços de segurança, tais como: quatro policias militares na ativa (sendo um de alta patente, um de patente intermediária e dois deles de baixa patente). Dentre os civis, foram identificados: um empresário de grande expressividade naquele estado e fora dele; um chefe da segurança daquela empresa; um funcionário da área de segurança da mesma empresa; três empresários do setor de segurança privada e um vigilante.

Todos os indivíduos citados como envolvidos nos crimes de homicídios e de lesão corporal recorreram da decisão de pronúncia. Os crimes elencados cujo envolvimento explicitava a participação de policiais militares foram: desocupação irregular de terrenos, quebra ilegal de sigilo telefônico e bancário, prática de segurança privada, homicídio e tentativa de homicídio. Houve intensa investigação por parte da Corregedoria Geral dos Órgãos de Segurança Pública daquele estado, que comprovou o envolvimento de todos os militares envolvidos, cujo grupo era encabeçado pelo policial de alta patente.

O relatório final da sindicância sugeriu diversas providências a serem tomadas pelas Polícias Militar e Civil, tendo sido orientado à primeira a instauração de Conselho de

Justificação17 em face do policial militar de alta patente, considerado o líder do grupo sob comento, para que fosse avaliada sua permanência ou exclusão dos quadros daquela instituição. Sobre a ação dos demais policiais envolvidos foi sugerida a instauração de um Conselho de Disciplina,18 que supostamente tenham sido recrutados pela liderança para a execução de práticas criminosas. Até o momento nenhuma responsabilização foi determinada e todos eles ainda exercem suas funções militares, sem cumprimento de nenhuma penalidade.

No que tange aos crimes perpetrados contra os adolescentes, a forma de tratar a questão foi a seguinte: a Corregedoria identificou a presença de crimes contra adolescentes que praticavam assaltos em filiais das empresas que eram alvo da segurança clandestina, em função de denúncias diversas, oriundos de entidades de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes. Então, foi sugerida a instauração de inquérito criminal para apuração dessas práticas, o que não se concretizou devido à certa ausência de interesse por parte dos delegados que inicialmente recebiam os adolescentes. O que aconteceu, na prática, foi que os adolescentes eram apreendidos, levados à Delegacia da Criança e do Adolescente e nenhuma providência tomada, apesar de apresentarem sinais de agressões físicas. Com isso, é possível identificar a tolerância do aparelho policial para com a violência perpetrada contra as vítimas, pobres e negras.

Sobre os casos desses adolescentes, foi constatado que apenas três deles possuíam inquérito aberto e os outros 16 não possuíam nenhum instrumento legal que pudesse servir na de construção de recurso jurídico frente a tais arbitrariedades.

17Art. 1º O Conselho de Justificação é destinado a julgar, através de processo especial, da incapacidade do oficial

das Forças Armadas - militar de carreira - para permanecer na ativa, criando-lhe, ao mesmo tempo, condições para se justificar. Parágrafo único. O Conselho de Justificação pode, também, ser aplicado ao oficial da reserva remunerada ou reformado, presumivelmente incapaz de permanecer na situação de inatividade em que se encontra.Art. 2º É submetido a Conselho de Justificação, a pedido ou "ex officio" o oficial das forças armadas: I – acusado oficialmente ou por qualquer meio lícito de comunicação social de ter: a) procedido incorretamente no desempenho do cargo; b) tido conduta irregular; ou c) praticado ato que afete a honra pessoal, o pundonor militar ou o decoro da classe.

(LEI No 5.836, 5 de Dezembro de 1972, Casa Civil – Subchefia de Assuntos Jurídicos. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/L5836.htm)

18Art. 1º O Conselho de Disciplina é destinado a julgar da incapacidade do Guarda-Marinha, do Aspirante-a-

Oficial e das demais praças das Forças Armadas com estabilidade assegurada, para permanecerem na ativa, criando-lhes, ao mesmo tempo, condições para se defenderem. Parágrafo único. O Conselho de Disciplina pode, também, ser aplicado ao Guarda-Marinha, ao Aspirante-a-Oficial e às demais praças das Forças Armadas, reformados ou na reserva remunerada, presumivelmente incapazes de permanecerem na situação de inatividade em que se encontram.

(Decreto nº 71.500, de 5 Dezembro de 1972, Casa Civil – Subchefia de Assuntos Jurídicos. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d71500.htm)

O caso sob discussão demonstra a ausência de integração entre as unidades policiais e a falta de um trabalho de inteligência que pudesse identificar e investigar “a ocorrência de tantos assaltos a uma mesma rede comercial e que deixava sempre a mesma marca: ou alguém morria ou era baleado” (CDDPH, 2005).

Frente à omissão da Polícia Militar daquele estado, cumpre ressaltar que a ausência de um direcionamento do seu serviço de inteligência para a investigação da prática de segurança clandestina, privada e criminosa, por parte de seus próprios agentes, demanda a ideia de um protecionismo corporativo grave, frente aos crimes perpetrados.

O relatório final da Subcomissão encaminhou:

 Representação ao Procurador-Geral da República (PGR) para a proposição do Incidente de Deslocamento de Competência em relação às condutas criminosas que não foram objeto de ação penal. O pedido posteriormente foi negado.  Monitoramento das ações penais já ajuizadas para que se assegurasse seu trâmite

célere.

 Atualização e sistematização dos dados de posse daquele Conselho acerca de fatos veiculados pela mídia referente a grupo de extermínio comandado pelo policial militar X, para representação à PGR para que analisasse a possibilidade de intervenção federal naquele estado;

 Requisição ao Ministro da Justiça para que informasse acerca do estágio atual da sindicância no âmbito da Polícia Federal sobre a atuação de empresas de segurança privada clandestina comandadas por policiais militares com atuação naquele estado, conforme recomendação anterior do CDDPH (CDDPH, 2005, p.7).