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Capítulo 2 Processos envolvidos na causa da pendularidade

2.2 Deslocamentos Pendulares e Estrutura Urbana

2.2.2 Centralização e Suburbanização

Por sua vez, o processo de periferização geográfica de parcela da população de classe alta também possui importante papel para se compreender as causas dos deslocamentos pendulares. Enquanto uma tendência que vem se consolidando em diferentes aglomerados urbanos brasileiros nas últimas décadas, o abandono do centro pela classe rica42 se constitui enquanto um processo de reestruturação do espaço intra- urbano na medida em que altera o padrão da distribuição da estrutura social pelo território. Sobre esse processo, nos interessa particularmente como a relocalização de parcela da população rica para as áreas distantes dos centros urbanos tem impacto sobre o padrão de deslocamentos pendulares.

Apesar desse processo de suburbanização das classes altas, juntamente com aquele processo de periferização, descrito anteriormente, estarem incluídos numa tendência mais ampla de desconcentração populacional nos principais aglomerados urbanos, é fundamental reconhecer que esses processos são distintos. A partir da realidade urbana brasileira, uma primeira distinção entre esses dois processos é de ordem cronológica. Segundo Baeninger (2002), o processo de desconcentração populacional até as décadas de 80 e 90 é marcado principalmente por fluxos migratórios das classes sociais baixas para as periferias urbanas. A partir de então, soma-se a esse processo as novas formas de ocupação urbana da classe média e alta que saem dos centros para ocupar áreas mais distantes. Em alguns aglomerados constata-se que é a partir da década de 1970, mas com maior força durante os anos 90, que periferia deixa de ser "[...] apenas o lócus da pobreza e da precariedade das condições urbanas de vida, mas também a nova fronteira de expansão do capital imobiliário e de circuitos econômicos que tendem a acompanhar o processo de enobrecimento de determinadas

42 Quando estivermos falando desse processo, mesmo quando não estiver explícito, deve-se ter em mente

que ele se deu pela transferência de uma parcela da população rica, e não de toda essa população, tratando-se, portanto, de uma desconcentração espacial relativa da classe alta.

áreas urbanas.” (LAGO, 2000, p.126).

Segundo Villaça (1998), esse enobrecimento das novas áreas ocupadas pela classe alta se daria concomitantemente à deterioração daquela área anteriormente ocupada, o centro. Segundo esse autor:

O processo popularmente chamado de 'decadência' ou 'deterioração' do centro consiste no seu abandono por parte das camadas de alta renda e em sua tomada pelas camadas populares. Esse abandono apresenta várias manifestações com diferentes graus de intensidade nas várias metrópoles: abandono do centro principal como local de emprego das camadas de mais alta renda; abandono de diversão, lazer e atividades culturais; como local de compras e de moradia. (VILLAÇA, 1998, p.277).

Apesar da mídia e dos meios imobiliários tratarem dessa questão com certa familiaridade, Villaça critica a falta de análises mais sistemáticas sobre o fenômeno (1998, p.270-271). Segundo o próprio autor, poder-se-ia compreender a deterioração do centro urbano a partir de uma noção absoluta ou relativa. Na deterioração ou decadência absoluta do centro urbano, observa-se um decremento real de um determinado indicador (como densidade demográfica ou de empregos, área construída, etc.) na área central e seu incremento real nas demais áreas do aglomerado. Na concepção relativa de sua decadência, por outro lado, constata-se quando aquele indicador estiver crescendo em ritmos mais lentos no centro do que na área metropolitana como um todo (VILLAÇA, 1998, p.270-271).

Nesse processo de decadência dos centros urbanos (entendido aqui pelo abandono relativo desses centros como áreas residenciais por uma parcela da população de classe alta) dois fatores são preponderantes. Por um lado, (1) a crescente saturação dos centros urbanos pela violência, poluição e congestionamentos. Segundo Villaça:

A partir de então [década de 70], outro fato especificamente brasileiro colaborou inegavelmente para agravar essa ruptura e aniquilar a frágil simbiose centro-classe média e média alta centrais: a tomada do centro pela violência, mais do que a sua tomada pelos miseráveis. Essa foi a gota d'água que fez com que as classes média e média alta abandonassem definitivamente o centro, abrindo suas portas para a entrada dos miseráveis e dos ambulantes. A tomada do centro [pelos miseráveis e ambulantes] é mais efeito do que causa do abandono do centro por parte das classes média e alta. (VILLAÇA, 1998, p.154).

Por outro lado, a esses fatores aliam-se (2) as novas tendências de atuação do mercado de terras que expandem oferta imobiliária de alto padrão em regiões não centrais. Nessa tendência, já conhecida em tempos anteriores nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e São Paulo (LAGO, 2000; ANTICO, 2003), “o produto a ser vendido deixa de ser o lote ou a edificação e passa a ser um estilo de vida.” (PIRES, 2007, p.126).

Para a população de classe média e alta que tem acesso a esse tipo de empreendimento, a exploração deste nicho de mercado imobiliário nos grande aglomerados urbanos representa "[...] não apenas uma melhoria das condições gerais de vida (mais verde, casas mais amplas, maior segurança, menos poluição, etc.), mas também a possibilidade de continuar desfrutando das oportunidades (econômicas, culturais e de consumo) do grande centro.” (CUNHA, 1994, p.69). Nesse sentido, visualiza-se como um importante fator para a desconcentração populacional da classe alta "[...] o aparecimento de uma cultura da contra-urbanização na qual os estilos de vida urbanos perdem dimensão a favor de melhores níveis de qualidade de vida associados ao meio ambiente e a redução da insalubridade, violência e estresse característicos das grandes áreas urbanas." (MAGALHÃES et al., 1996, p.757).

Nesse contexto, o mercado imobiliário investe na venda de um novo estilo de vida – o loteamento fechado, e nasce assim o 'novo subúrbio' brasileiro. Áreas distantes do núcleo central, com acessibilidade garantida pelo sistema rodoviário, passam a receber empreendimentos destinados às camadas de renda média e alta. (CAIADO et al., 2006, p.6).

É importante observar que esse processo de suburbanização de parcela das altas classes sociais – relacionado ao surgimento de “novas periferias”43 e à modernização do mercado imobiliário em regiões não centrais – está inserido num contexto muito particular na história urbana brasileira nas últimas décadas. Segundo Villaça (1998, p.28) “os anos 80 marcaram precisamente uma enorme explosão de investimentos imobiliários orientados para as elites, sejam de escritório, sejam residenciais, fora das áreas centrais dos grandes centros urbanos.” A partir dessa década, quando é notável a alteração do padrão migratório pela redução dos fluxos de longa distância e consolidação dos fluxos intra-regionais de curtas distâncias de tipo urbano-urbano, a perda de atratividade dos principais centros metropolitanos é percebida pelas perdas

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populacionais para cidades médias (em especial aquelas localizadas nas franjas metropolitanas) via fluxos migratórios intrametropolitanos que passam a assumir maior heterogeneidade do perfil socioeconômico44. Segundo Lago (2000)

Essa tendência afetou diretamente o padrão de crescimento intrametropolitano, na medida em que o processo de periferização foi sustentado, até os anos 70, pela migração maciça em direção às áreas metropolitanas. Com efeito, na década de 1980, a periferia dos grandes centros passa a receber, predominantemente, população deslocada da própria metrópole, diminuindo assim o ímpeto de seu crescimento. (LAGO, 2000, p.43).

A essa altura, é importante reconhecer que a ampliação das condições de infra- estrutura (especialmente no sistema viário) e o aumento da motorização da classe média tiveram importância nesse processo ao ampliar possibilidade de escolha da localização de moradia pelas camadas de mais alta renda. Assim, segundo Villaça (1998) o abandono do centro pela classe rica, no Brasil, "[...] foi facilitada pelas novas condições de locomoção associadas à vulgarização do automóvel e articuladas a interesses imobiliários desejosos de abrir novas frentes para seus empreendimentos e continuamente renovar o estoque construído." (VILLAÇA, 1998, p.279).

Utilizando-se dos termos deste autor (p.180), pode-se afirmar que para as classes média e alta (a) aquela saturação dos centros urbanos se apresenta como a estrutura de constrangimentos para sua permanência naquela região e constitui-se na necessidade de deslocamento para fora dela por um lado; e por outro (b) a melhoria das condições de circulação45 e de oferta imobiliária de alto padrão nas áreas não centrais se apresentam como estrutura de incentivos constituindo-se nas condições de deslocamento para que essa parcela da população localizasse suas residências fora das áreas centrais mas continuassem "[...] desfrutando das oportunidades (econômicas, culturais e de consumo) do grande centro.” (CUNHA, 1994, p.69).

A essa altura, cabe fazer uma observação sobre a diferença entre os processos de periferização e o de suburbanização da classe alta. Em concomitância ao processo de centralização, tanto o processo de periferização quanto esse processo de suburbanização

44 Sobre essa questão, PERALTA (2007) analisa o histórico do processo de urbanização da cidade de

Córdoba (Argentina) problematizando o que chama de processo de contraurbanização, caracterizado pela inversão do sentido migratório de uma cidade que passa de um centro de atração a um centro de expulsão populacional. Para uma abordagem deste tema e o ganho de importância das cidades médias na realidade urbana brasileira ver SATHLER et al (2007) e RANDOLPH et. al. (2007).

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de parcela da classe rica tendem a aumentar a distância entre a área urbana central (com elevada concentração de empregos) e as áreas urbanas de uso predominantemente residencial, impactando, portanto, sobre o padrão de deslocamentos pendulares. Contudo, apesar de ambos processos agirem no sentido da (re)distribuição populacional pelo território, há de se tomar o cuidado de não tomá-los como um único processo e reconhecer que “[...] o espraiamento da área urbanizada, nos anos 90, tem características e direções diferenciadas do processo de periferização dos ano 70" (PIRES et al., 2002, p.69). Segundo Brito et al. essa (re)distribuição populacional

[...] pode se dar porque a população mais rica escolheu residir em lugares onde as externalidades positivas compensam os custos adicionais da distância, ou, no caso dos mais pobres, pela coerção do mercado imobiliário e, em menor proporção, em função do mercado de trabalho. (BRITO et al., 2005, p.62).

Uma outra diferença pode ser notada pela forma de ocupação do solo decorrente desses dois processos. Enquanto no processo de periferização a ocupação do solo é caracterizada, ou pela ação do Estado com políticas na produção de casas populares, ou pela marcante ausência do mesmo (com precariedade de investimentos em infra- estrutura urbana), no processo de suburbanização "A incorporação de áreas mais afastadas, muitas delas localizadas fora dos perímetros urbanos municipais, agora se dá também através de loteamentos e condôminos horizontais, de médio e alto padrão construtivo e baixa densidade, que elevam o preço da terra.” (PIRES et al. 2002 , p.69).

Por hora, cabe destacar que o processo histórico de estruturação urbana nas aglomerações brasileiras nas últimas décadas vem sendo marcado pelo surgimento e consolidação de um processo de suburbanização de parcela das classes altas a reboque da saturação dos centros urbanos46 (pela violência, poluição e congestionamentos) e das novas linhas de atuação do mercado de terras que expandem oferta imobiliária de alto padrão em regiões não centrais. É possível afirmar ainda, que esse processo de suburbanização atua enquanto um processo de reestruturação urbana na medida em que modifica a distribuição espacial das classes altas com maior dispersão territorial.

Numa estrutura urbana consolidada sobre um padrão altamente polarizado pelo centro urbano (concentrador de estruturas públicas de consumo coletivo e oportunidades de trabalho), pode-se afirmar que esse processo de suburbanização da classe alta é um

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importante fator responsável pelos deslocamentos pendulares dessa classe. Pode-se afirmar também que a modificação no espaço urbano decorrente deste processo, mais do que apenas uma transformação, representa uma reestruturação urbana na medida em que altera a localização residencial de uma determinada classe social ao ressignificar determinadas áreas urbanas que passam a ser valorizadas para uso residencial de alto padrão.

Para Villaça (1998, p.281) o novo grau de mobilidade espacial permitido decorrente da difusão do automóvel e "[...] as novas frentes de acessibilidades que ele criou e com o novo espaço urbano que foi para ele produzido pelas e para as camadas de mais alta renda" teriam criado um novo padrão de mobilidade espacial. Segundo o autor, "Essa nova mobilidade territorial, juntamente com o empenho do capital imobiliário em tornar obsoletos os centros existentes e promover novos centros e novas frentes imobiliárias, fez com que um novo padrão de deslocamentos se estabelecesse em nossas metrópoles" (VILLAÇA, 1998, p.281). Dessa forma, a suburbanização das classes ricas alteram o padrão de mobilidade espacial urbano na medida em que as novas localizações da classe alta alteram significativamente o perfil socioeconômico dos viajantes e os modos de transporte utilizados.

Alguns estudos empíricos são muito elucidativos do que esta dissertação pretende destacar acerca dos papéis dos processos de centralização e de suburbanização das classes altas como causas dos deslocamentos pendulares: dentre eles os estudos de Souza et al. (2006) na Região Metropolitana de Belo Horizonte, e os estudos de Miglioranza (2005) e Pires (2007) na Região Metropolitana de Campinas. Sobre a importância dessa questão também é elucidativa a matéria "A vida entre duas cidades" publicada na revista Veja - São Paulo (2006). A reportagem apresenta o caso de oito profissionais liberais que deixaram a cidade de São Paulo para "morar no litoral ou interior e tornaram-se paulistanos oito horas por dia" (p.21). Dentre as motivações que levaram aqueles profissionais e suas famílias a mudarem de vida, a reportagem aponta os enormes congestionamentos no trânsito, o maior contato com a natureza e a maior disponibilidade de espaço por um preço mais acessível. Além da necessidade de planejamento do dia a dia pela limitação de horários e os custos de transporte, a reportagem observa como essa mudança no estilo de vida ainda mantém certa 'dependência' do município de São Paulo que concentra a oferta de hospitais, escolas, bares, restaurantes, cinemas e teatros (p.28).

Espera-se que essa discussão acerca da suburbanização das classes altas tenha deixado claro como esse processo, em concomitância ao processo de centralização, contribui para explicar a origem dos deslocamentos pendulares nas aglomerações urbanas: a mudança da localização residencial de parcela da classe rica para áreas distantes dos centros urbanos numa estrutura urbana consolidada sobre um padrão altamente polarizado pelo centro implica em fluxos pendulares que se caracterizam, dentre outras coisas, por possuir origem nas regiões e cidades não centrais47 e destino localizado no núcleo urbano central.

Nesse caso, o grupo de comutadores consiste, em larga medida, naquelas pessoas que trocaram de residência dos centros urbanos (saturados pela poluição, violência, congestionamentos, etc.) por regiões não centrais mais afastadas que oferecem algum tipo de amenidade (como maior contato com áreas verdes, possibilidade de aquisição de casa própria, monitoramento de segurança privada, etc.) mantendo, contudo, seus empregos nas regiões centrais. É de se notar, portanto que o mercado imobiliário também possui importante papel neste segundo processo ao desvalorizar relativamente aquelas regiões centrais degradadas e ao criar novas áreas residências socialmente valorizadas em regiões e cidades não-centrais.

Assim, o perfil socioeconômico desses deslocamentos pendulares é marcado pela participação de maior peso relativo de pessoas pertencentes ao topo da pirâmide social. Ou seja, aquelas pessoas que, por disporem de melhores condições socioeconômicas (ativos e estrutura de oportunidades), tinham maior capacidade de evitar (fugir) (d)as adversidades dos centros urbanos e de aproveitar as oportunidades imobiliárias em outras localidades não centrais.

Antes de passarmos ao terceiro processo de reestruturação urbana que contribui para explicar os deslocamentos pendulares, se faz necessária uma nota sobre esse processo de suburbanização das classes altas. A nosso ver, esse mesmo processo vai ter como conseqüência indireta a geração de oportunidades econômicas nas áreas não centrais, em geral, de baixo grau de especialização (como faxineiras diaristas, seguranças, jardineiros, creches, etc.) pela demanda destes serviços por parte dos novos moradores que vão habitar aquelas regiões. Em outras palavras, quando as pessoas pertencentes ao topo da estrutura social migram, inicialmente, elas carregam consigo a demanda por uma série de serviços básicos que exigem mão-de-obra pouco qualificada,

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o que por si, num segundo momento, gera certo volume de fluxos pendulares com destino a essa região. Esse ponto e sua relação com os deslocamentos pendulares que ocorrem entre áreas não centrais (que não envolvem o centro urbano) poderá ser aprofundado noutra oportunidade.