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O Centro Esportivo de Capoeira Angola: “Meu corpo é minha arte” Mestre Pastinha

No documento Luis Vitor Castro Junior (páginas 97-106)

A. de Filgueiras (Org.) Pelo Pelô: história, cultura e cidade Salvador: Ed UFBA, 1995 p 16.

1.7 O Centro Esportivo de Capoeira Angola: “Meu corpo é minha arte” Mestre Pastinha

(Mestre Pastinha aplicando uma meia lua de frente em seu aluno)161

Vicente Ferreira Pastinha (1889-1981), despertou para a capoeira após o convite de um africano, que ele mesmo narra no filme;

A minha vida de criança foi um pouquinho amarga, encontrei um rival, um menino que era rival meu, então, nós entravamos em luta, eu apanhava, levava a pior e na gamela de uma casa tinha um africano apreciando a minha luta, então, quando eu acaba de brigar .... meu filho vem cá, “você não pode brigar com aquele menino, aquele menino é mais ativo que você, você quer brigar com o menino na raça mas não pode, o tempo que você vai pra casa empinar a arraia, você vem aqui pra nós causuar. Então aceitei o convite do velho ai chegava na capoeira ... ginga pra qui, ginga pra lá, e cai, levanta, quando ele viu que eu estava em condições pra corresponder o menino “você já pode brigar com o menino”. Quando eu vinha a mãe dele via ... gritava Honorato e vem seu camarada, o menino pufe, dentro de casa o menino pulava na rua parecendo satanás, ele ai tornou a insistir , passou a mão, eu sair de baixo, ele tornou a passar a mão mim, sai debaixo. “Ah você ta vivo em”, ai insistiu a terceira vez, ai eu rebati a mão dele ... recebeu caiu, a mãe dele “vez se você vai panhar’ vai ver apanhar agora162

161 Fotografia retirada da Revista O Cruzeiro. As velhas ruas de Salvador vivem o “ballet”da capoeira –

arte do Mestre Pastinha. 4/05/1983

A dificuldade enfrentada por ele de ficar apanhando do seu rival desperta o gosto pela arte da capoeira. Mestre Pastinha passa um período aprendendo a “arte marítima’, (esgrima, floreio e carabina) e foi músico dentre outras atividades. Ao retomar o contato com os antigos capoeiristas da época, foi convencido a assumir definitivamente o processo de continuidade da Capoeira Angola. A “nata dos capoeiristas” que freqüentavam o Gengibirra delegou a responsabilidade ao Mestre Pastinha. Amozinho, o mestre responsável pelo gerenciamento da capoeira na época e Teotônio de Maré que era muito amigo seu, convencem Pastinha a organizar a Capoeira Angola.

Então, Mestre Pastinha vai criar O Centro Esportivo de Capoeira Angola que era a continuidade do Centro Capoeira Angola Conceição da Praia. O novo centro funcionou no largo do Pelourinho, número 19 e primava pela formação de novos capoeiristas e por um “novo” ordenamento da prática cultural da capoeira. O propósito era aglutinar os capoeiras ao centro, servindo de pólo cultural da capoeira baiana, cujo intuito era a valorização da Capoeira Angola perante a sociedade, que, naquela época, elaborava a imagem do capoeirista atrelada a uma prática considerada coisa de vagabundo, malandro e desocupado.

Contudo, o que nos interessa saber é a dinâmica da escola, os contatos culturais de uma prática cultural, re-elaborada pelo Mestre Pastinha que tem significativos espíritos de ritualidade, em virtude da passagem da rua para os espaços fechados com a demanda do público turístico. Para tanto, vamos nos ater ao desenvolvimento das experiências realizadas na reabertura da academia, no número 51, primeiro andar, onde atualmente funciona a Fundação de Capoeira do Mestre Bimba.

Um episódio importante a ser destacado foi a perda do espaço do casarão 19 na Praça do Pelourinho, o que muitos dos seus alunos consideraram um golpe. A promessa era de reformar o local e, depois, retornassem as atividades da Capoeira do Mestre Pastinha, mas, em virtude de outras necessidades que os administradores da indústria do turismo colocavam como prioridade, o espaço foi cedido ao restaurante do SESC-SENAC, “onde são servidos no seu restaurante 1.200 refeições diariamente num

cardápio de “40” pratos e onde é realizado encantadores shows artísticos para os visitantes da Boa Terra163

O centro de Capoeira que contribuiu para o processo de revitalização do Centro Histórico de Salvador não teve prestígio político suficiente para permanecer naquele local, pois a academia, como as demais daquela localidade, era espaço de referências para a população baiana (trabalhadores, estudantes, pesquisadores, artistas e outros) e não se resumia apenas à atividade do turismo.

(“Reunião realizada no Touring Club do Brasil (Salvador) com a finalidade de promover uma ação junto aos poderes públicos para doação de uma casa ao Mestre Pastinha.Participaram da mesma da esquerda

para a direita Vasconcelos Maia, Carybé, José Berbert de Castro (A Tarde), o autor, Mestre Pastinha, Carlos Alberto Torres (Diário de Noticiais), Jorge Amado e um assessor do autor, no T.C.B (1965)”164)

A retirada da academia do Mestre Pastinha do antigo casarão, na praça do Pelourinho, número 19, é um processo traumático, de muitas promessas e expectativas. O envolvimento de intelectuais em defesa do Mestre Pastinha foi de suma importância para a reativação do Centro, pois eles se aliaram a causa, tendo em vista o reconhecimento que eles tinham pelo Mestre em virtude da sua relevância histórica e social na constituição da cultura baiana. Num tom de muita admiração Jorge Amado, fala, “mas nós não devemos pensar Pastinha com Tristeza, devemos pensar Pastinha

com alegria, porque ele representou alegria, ele representou a forca do povo, a coragem, a luta, a invencibilidade do povo”165.

164 COVELLO, Arnóbio. Filosofia do turismo. Salvador. Gráfica Trio, 1982. p.117

165 Depoimento de Jorge Amado no filme Mestre Pastinha: uma vida pela capoeira. Antonio Carlos

Mesmo com as dificuldades econômicas e estruturais, mantiveram-se as atividades que vinham sendo realizadas, as aulas, as rodas e as apresentações para o público em geral. Eram mantidos os ensinamentos, os princípios filosóficos da capoeira Angola sobre a qual ele mesmo escrevia: “Angola, capoeira mãe, mandinga de escravo

em ânsia de liberdade, seu principio não tem método, seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista”166 e eram revigorados pela força da transmissão oral.

Mestre Bola Sete, aluno do mestre que participou intensamente neste segundo espaço, comentou que o Mestre nunca se furtou de ensinar a Capoeira Angola, mesmo cego:

Pois é! São esses valores que Pastinha passa pra os alunos e passou muito pra mim, durante 13 anos ali naquele banco sentado, ali no 14 ele me ensinou muita coisa e ele me ensinava, então, ele passou a filosofia da capoeira, que eu não tinha conhecimento, então ele começou a despertar mais minha malícia, [...] [...] malícia se ensina, eu aprendi malicia com Pastinha, e ele me ensinou, então como é que se ensina malícia? Contando um causo”, Pastinha contava um caso que ali o elemento malícia foi primordial para a vitória do capoeirista, então a partir daí você ia ouvindo aqueles causos. Então, se conhece malícia também se ensina malícia [...] 167.

A competência do Mestre Pastinha está também na arte de contar “histórias e estórias da capoeiragem”168, os antigos episódios envolvendo os capoeiristas, os causos vividos pelos os capoeiristas. Nessa sua arte, contar história, não representa apenas o acontecimento em si, mas a potência na transmissão, na descoberta do aprendiz em aprender a ouvir as falas maliciosas, nas quais o som forma as paisagens vivas de mistérios, com ricas emoções de alegria, medo, curiosidade, espanto, entre outras.

Justamente com as experiências pedagógicas transmitidas pelo Mestre, surgiram novos modelos de se apresentar a capoeira. Ocorriam as apresentações gerenciadas pelo o Mestre Pastinha, que era fiel aos ritos originário por ele e os espetáculos coordenados por dois de seus alunos, Mestre Gildo do Alfinete e Roberto Satanás, que

166 Frase conhecida no âmbito da capoeira e que ficava escrita na parede da Academia de Mestre

Pastinha.

167 CRUZ, José Luiz Oliveira. Mestre Bola Sete. Entrevista realizada na sua academia no Forte da

Capoeira, largo de Santo Antonio Além do Carmo, Salvador, BA, 20 de dezembro de 2007

168 Ver o livro de CRUZ, José Luiz Oliveira. Histórias e estórias da capoeiragem. Salvador. Editora

tinham total responsabilidade pela montagem, excussão e divulgação dos espetáculos. Gildo justificou que a finalidade dos shows era para ajudar o Mestre Pastinha que já se encontrava com a saúde debilitada:

Era um shows para o Mestre Pastinha, porque o Mestre Pastinha lá na no Centro Esportivo de Capoeira Angola, Mestre pastinha dava o livro para os turistas assinar, o cara assinava e não dava nada, então pagava pra entrar, era como no dia de hoje 5,00 ou !0,00 reais, então a gente vendia o engesso, a gente só fazia no verão na época de turista, agente distribuía os panfletos lá pro Mercado Modelo, tinha dia que tinha dois espetáculos, a renda de Pastinha, a gente entregava o dinheiro a ele na casa dele 169.

Se por um lado as exibições, mesmo que por algum momento , ajudavam o Mestre financeiramente, por outro, o modelo das apresentações, como veremos adiante, se afastavam das antigas práticas instituídas pelo o Mestre Pastinha enquanto elemento norteador dos valores culturais da Capoeira Angola.

Para uma atividade cultural escassa de recursos financeiros, pois a contribuição dos alunos não era suficiente para a manutenção do espaço e a própria sobrevivência do Mestre. o público turístico passa a ser uma alternativa para angariar mais fundos. Um outro fato relevante é que os outros centros já despontavam como referência importante para as apresentações de capoeira e das alegorias da cultura baiana, como vimos anteriormente com o Sitio Caruano e em seguida com o Belvederes da Sé e muitos outros.

(Gildo do Alfinete de camisa e Roberto Satanás sem camisa apresentando o shows folclórico170)

Na fotografia, fica evidentes a presença do público com seu olhar atento à demonstração dos movimentos e Mestre Pastinha se referia ao apresentar a sua arte,

“que já vem, entre os turistas de toda parte envestigando a capoeira de olhos fito, e afirmo que não há veu; por ser em ação de demonstração; é perigossimo e bem imprecionante"171. É o alerta do Mestre para os curiosos de uma prática que, cada vez mais se expandia, cuja visibilidade aumentava perante a sociedade e que, portanto, não precisava se esconder.

Voltando à imagem fotográfica, ela foca os dois jogadores no centro, um sem camisa e de pés descalço e o outro de camisa amarrada e de pés descalço, embora nas apresentações houvesse uma mescla da indumentária tradicional usada como traje de gala nos dias de apresentações, que era o amarelo e preto. as cores do glorioso

170 Fotografia do acervo de Luís Vitor Castro Júnior, conseguida no jornal A Tarde 171 DECANIO FILHO, Ângelo. A herança de Pastinha. Salvador, 1997. p. 68

Ypiranga, time do seu coração, com o uso de trajes mais coloridos. Com isso, ficar sem camisa afastava sas apresentações os princípios formulados pelo o Mestre que era o respeito a ritualidade da capoeira, como, por exemplo, jogar de camisa por dentro da calça e calçado, dando um aspecto de seriedade.

No entanto, os gestores dessas apresentações já tinham como referência outros modelos de apresentações que, nesta época, eram comuns, no entanto, eles dramatizavam também com diferentes elementos estéticos:

A gente falava sobre a capoeira desde o tempo da escravidão, fazia um shows de maculelê, a perseguição que a policia e a sociedade dava a capoeira, a cena do guarda era eu e Satanás, tinha uma cena de um o cara com a navalha, era Baraúna, Meio Quilo e Satanás também. [...] [...] samba duro, [...] [...] agente misturava também com o pessoal de Pastinha [...] [...] Tom Zé esse compositor, foi aluno de Pastinha também, ele é o número 58, a gente fazia capoeira e música e era Tom que apresentava, também pra o Mestre Pastinha. Sabia? Moraes Moreira esse que você ver ai, ele tinha um grupo canto quatro, era a capoeira e música para não cansar muito o público172.

A linguagem teatral formatava as apresentações porque existiam cenas pré- determinadas dos personagens que garantiam a comunicação do enredo. A inclusão da linguagem musical durante as apresentações, mesmo de vez e quando, dava um outro panorama à dimensão estética do espetáculo, extrapolando o contexto da roda em si. A ampliação desses novos elementos artísticos, além de evitar o “cansaço do público” era mais um atrativo.

Ao lado das exibições teatrais de capoeira, ocorriam as apresentações comandadas pelo o próprio Mestre Pastinha e Bola Sete frisou que “de forma nenhuma

nem pensar, descalço sem camisa de forma nenhuma”. Para o Mestre as

apresentações se pautavam no rigor do ritual da roda:

Normalmente as exibições, as demonstrações para o turista era dia de domingo, então, a partir das três horas começavam a chegar e enchiam a casa, geralmente enchia a casa da gente. E dona Nice ficava na porta cobrando os ingressos e a sala enchia de gente, então, tinha, primeiro Pastinha se pronunciava, fazia uma palestra ou quando não era ele que fazia a palestra era Valdomiro Malvadeza que era o contramestre de bateria, então Valdomiro também falava, às vezes, e depois da palestra do Mestre Pastinha, iniciava a roda, iniciava a roda de capoeira e depois da roda de capoeira tinha um samba

172 COUTO, Gildo Lemos. Mestre Gildo do Alfinete. Entrevista realizada na sua residência, Salvador, BA,

de roda e viola, samba de Santo Amaro, e aí ele tinha um pessoal de Santo Amaro todo domingo, pessoal de samba da velha guarda que fazia o samba depois da capoeira. Então, ele tinha um cachezinho, tirava um dinheiro pra pagar a eles e depois eles retornavam, então, todo domingo era isso173.

Neste contexto, a imagem do Mestre é enaltecida como sujeito que detém os conhecimento da filosofia da capoeira, porque, além de explicar os significados da Capoeira Angola, ele se preocupava em trazer à tona outros aspectos da cultura baiana. A performance do Mestre prendia a atenção do público. O convite ao “pessoal da velha guarda” para apresentar o samba de roda manifesta o reconhecimento do Mestre pelas manifestações populares que eram realizadas nas práticas corriqueiras das festas do recôncavo baiano.

O mestre procurava não se afastar dos valores culturais que a Capoeira Angola vinha projetando enquanto prática cultural de resistência, fiel às tradições de matrizes africanas re-elaboradas no Brasil, o Mestre teve o cuidado em apresentar a capoeira para o público e mesmo com a ferocidade da indústria do turismo, ele não desfigurou os modelos estéticos da Capoeira Angola.

É importante entender que, no primeiro momento do Centro Esportivo de Capoeira Angola, toda a organização das apresentações eram de plena responsabilidade do Mestre, mas, com o passar do tempo, devido aos problemas de saúde, as responsabilidades ficaram a cargo de seus alunos.

Nas décadas de 40, 50 e 60, os dois Mestres, Bimba e Pastinha, que se doaram para projetar a capoeira nos espaços institucionais da sociedade, eram as principais referências; na década de 70, com as transformações do contexto social da época, os dois enfrentam a velhice passando por muita dificuldade. Os dois personagens que marcaram a história da Bahia, não foram reconhecidos no momento em que mais precisavam.

Concluímos com duas falas do Mestre Pastinha que sintetizam a sua ação enquanto educador e a preocupação com o desdobramento da arte-capoeira: “Ninguém

pode mostrar tudo o que tem. As entregas e revelações têm de ser feitas aos poucos. Isso serve na capoeira, na família, na vida. Há segredos que não podem ser revelados

173 CRUZ, José Luiz Oliveira. Mestre Bola Sete. Entrevista realizada na sua academia no Forte da

a todas as pessoas. Há momentos que não podem ser divididos com ninguém”174. A outra passagem refere-se aos seus dois alunos, Mestre João Pequeno e João Grande: “

Eles serão os grandes capoeiras do futuro e para isso trabalhei e lutei com eles. Serão Mestres mesmos, não professores de improviso como existem por ai e que só servem para destruir nossa tradição que é tão bela. A este dois rapazes ensinei tudo que sei, até mesmo o Pulo do Gato. Por isso tenho as maiores esperanças em seu futuro. Capoeira, as lutas, a dança, o gingado é toda a minha vida, é mais que amor, é minha razão de viver175.

No documento Luis Vitor Castro Junior (páginas 97-106)