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3.4 A MORALIDADE

3.4.1 O bem e a certeza moral

“O Bem é a Idéia como unidade do conceito da vontade e da vontade particular” (HEGEL, 2003, p. 114). É a essência da vontade. A liberdade se realizada o seria na forma do Bem, é a fundamentação da certeza moral, pois precisa de uma “segunda referência” que não somente a auto-referência no sujeito. Interconectam-se no sujeito liberdade, vontade e o Bem. A vontade subjetiva, para se “realizar” como liberdade, deve harmonizar-se com sua “essência”, o Bem. “A verdadeira consciência moral é a disposição de querer o que em si e por si é bom”. (HEGEL. 1988. p. 200. Mas a certeza (consciência) moral não é absoluta, ao revés, carrega em si a potencialidade do mal que pode vir a se tornar efetivo quando a “subjetividade se afirma como absoluta” (HEGEL. 1988. p. 207).

O direito da vontade subjetiva é o reconhecimento de que aquilo que para si é válido é aquilo que é considerado bom, daí que só mediante o conhecimento do valor das ações na sociedade é que o indivíduo tem capacidade de saber se sua ação está de acordo com o bem. Tal aspecto, que difere de juízo para juízo, em especial nas crianças e nos idiotas, é fundamental para que se as possa julgar qualitativamente, mais especificamente pelo dolo e extensão da culpa.

O bem para cada indivíduo corresponde à sua moralidade nesse sentido é um dever. Entretanto, mesmo que o indivíduo só reconheça o dever e não o seu querer, ao cumprir com o dever abstratamente cumpre sua vontade e realiza sua moralidade. “Devo cumprir o dever pelo dever mesmo, e o que realizo no dever é minha própria objetividade no sentido verdadeiro: cumprindo-o estou comigo mesmo e sou livre.” (HEGEL. 1988. p. 197). “A certeza moral não só é a instância que proíbe ou condena posteriormente a ação, mas também a certeza positiva interna daquilo que em geral é justo ou injusto”. (HARTMANN. 1976. p. 612).

A certeza moral é a demonstração de que o sentimento de si sabe em si mesmo e por si o que são o direito e o dever, não aceita coisa diversa, e ao mesmo tempo afirma-se no que sabe e quer, que são simultaneamente o direito e o dever, é o senso crítico do sujeito. Mas a certeza moral pertence ao íntimo do indivíduo, não se podendo saber se sua consciência está ou não acorde com ela. Essa subjetividade é que lhe dá uma instantaneidade e multiplicidade incompatível com o universal, e é por isso que o Estado não pode reconhecer a certeza moral em sua

forma particular, como saber subjetivo, pois esta é apenas formal. A verdadeira certeza moral reside apenas na eticidade.

O duplo aspecto da certeza moral: subjetivo e objetivo, a constitui de forma ambígua. Por um lado, o sujeito a tem como própria, e sob esse aspecto é subjetiva, por outro é universal e o sujeito a considera como objetiva. A única consciência moral autêntica e eticamente real é a que possui em si e para si os momentos subjetivo e objetivo concomitantes, paralelos e unidos simultaneamente. Esta é firme em seus princípios e tem em si o cerne da liberdade.

A consciência moral significa de forma objetiva para o sujeito aquilo que ele tem como seu mandamento e seu direito (o bem) e possui ainda a capacidade de rejeitar tudo o que não reconheça como tal. Contudo, só se pode saber se o conteúdo dessa consciência moral está de acordo com a Idéia mediante a realização desse bem, caso contrário será uma mera abstração inerente ao sujeito, impossível de ser percebida por terceiros.

O que o direito e esse mandamento são em si não podem ser um particular, algo meramente subjetivo, razão pela qual a consciência moral subjetiva submete-se às leis e princípios universais, sob pena de se ter apenas uma consciência moral formal, que difere da consciência moral real porque nela não há o elemento balizador que diferirá “inequivocamente entre a aparência do objetivo, na forma da auto-certeza, e o sentido do objetivo, que é em si”. (HARTMANN. 1976. p. 614). Não pode a autoconsciência “permanecer na pura interioridade da vontade” (HEGEL. 1988. p. 203), sob o risco de predominar a particularidade, o arbítrio, transformando a consciência moral de Bem em Mal. A origem do mal está na especulação “natural” da vontade. Esta ambigüidade ínsita à consciência moral, a oscilação entre “o saber subjetivo e o bem real” (HARTMANN. 1976. p. 614), sua impossibilidade de ser sempre objetiva, que somente será alcançada na eticidade, abre as janelas para a possibilidade do mal, e tornam falíveis os juízos morais.

A confusão que pode ocorrer entre o ser em e para si universal e o que decorre do livre-arbítrio tem o poder de levar o particular a superar o universal. Nesse sentido, a consciência moral carrega em si a possibilidade de ser má. Como subjetividade formal, a consciência moral é potencialmente má. Decorre que “a raiz” do bem é a mesma do mal, o que permite a constatação de que o homem só é livre para ser bom se também for livre para ser mau. O mal reside no homem.

(...) o homem é mau em si ou por natureza e, ao mesmo tempo, por reflexão em si mesmo, ao passo que nem a natureza como tal (quer dizer: a natureza que não recebe a conformação de uma vontade que incide sobre o seu conteúdo particular), nem a reflexão sobre si, o conhecimento em geral, são por si o mal. (HEGEL, 1988. p. 204).

Hegel aqui não está interessado na questão da intenção, refletir sobre o dolo ou culpa, mas apenas em definir que uma ação é má quando há dissimulação e que a malignidade se esconde sob o manto do bem. No extremo da subjetividade, mesmo nos particulares casos em que o indivíduo queira e pense realizar o bem, sua total dissonância com a universalidade o impede, traveste o mal em bem. Em todas as fórmulas nas quais o universal é preterido pelo que é subjetivo e variável, pode-se identificar extremos que igualam o bem e o mal, assim, são más as ações hipócritas, que enganam a outros, as ações probabilísticas, ou aquelas que encontram razões aparentes pela qual o sujeito engana a si mesmo e a ironia, que é a forma suprema de malignidade, todas formas são de burlar a lei e a liberdade.

Se a auto-consciência apresenta a ação como boa só para os outros, tem- se a forma da hipocrisia, (...). A figura mais sutil que atualmente adota a hipocrisia é a do probabilismo, que apresenta uma infração como algo bom para a própria consciência moral. (...)

Assim, alguém pode ter cometido um delito embora estivesse querendo o bem. O passo seguinte do probabilismo é que o bem não dependa já da autoridade e da afirmação de um terceiro, mas somente do sujeito mesmo, ou seja, de sua convicção: só por seu intermédio algo pode vir a ser bom. (...)

Não é, por certo, indiferente fazer algo por costume ou fazer-lo seguro de que se está certo, mas a verdade objetiva é distinta de minha convicção. Para esta última não existe a diferença entre o bem e o mal, pois uma convicção é sempre uma convicção e somente seria mal aquilo de que não estou convencido. (...). Esta é a forma da ironia, a consciência de que com o princípio da convicção não se pode ir muito distante, pois se adentra ao reino do arbítrio. (...) (HEGEL. 1988. p. 219).

Mas só o infinito, a Idéia, é efetivamente real. O jurídico e o moral não existem por si, só como parte de uma totalidade que é a eticidade, só nela há a unidade do bem subjetivo com o bem objetivo existente em e por si. A moralidade é a forma da vontade segundo o lado da subjetividade, deve ser superada pela eticidade que é o ter-se no próprio conceito, a liberdade. Em termos de evolução filosófica, Hegel pretende superar a moral iluminista de caráter individualista (Tugendhat. 2003. p. 201). Seu objetivo é a intersubjetividade que representa o todo e parte da moral para elevar-se à eticidade.