• Nenhum resultado encontrado

3.3 O DIREITO ABSTRATO E SUA LIGAÇÃO COM OS CONCEITOS

3.3.3 A personalidade

Personalidade na Filosofia do Direito tem a função de ancorar a capacidade de direito, ou seja, é o elemento essencial sem o qual o ser não tem qualquer ação no mundo jurídico. Para ser reconhecido como pessoa14 capaz de expressar e requer algo de valor15, deve-se antes ter personalidade, que se inicia com a consciência de si, formada a partir do momento em que o indivíduo se torna hábil a elevar sua mente a um nível de abstração suficiente para negar valores concretos, a

14 “A pessoa se diferencia essencialmente do sujeito; o sujeito é só a possibilidade da personalidade, já que todo

vivente é um sujeito. A pessoa é portanto o sujeito para o qual é esta subjetividade, nela sou absolutamente para mim. É a individualidade da liberdade no puro ser por si”. (HEGEL. 1988. p. 103 - agregados).

15 § 209: “O homem vale porque é homem e não porque seja judeu, católico, protestante, alemão ou italiano. A

autoconsciência. A personalidade é um atributo exclusivamente humano decorrente da racionalidade, do que se conclui que só o homem possui capacidade de direito.

As implicações desse raciocínio inicial são muitas: Como corolário do direito ser o “reino da liberdade”, só o homem tem liberdade na acepção plena da palavra, contudo a esfera de liberdade entre os homens depende do respeito mútuo, respeito regido pelo direito abstrato que delimita os âmbitos individuais, razão pela qual “o imperativo do direito é: sê uma pessoa e respeite os outros como pessoas”. No

direito público, porém, há um ponto de aparente inconsistência, pois o Estado tem vontade e é sujeito16 de direito, e a sua vontade é a própria “autoconsciência individual elevada à universalidade”. Essa inconsistência somente é superada pela personificação do Estado na figura de um humano, o monarca.

A personalidade só começa quando o sujeito tem consciência de si, não meramente como algo concreto, determinado de alguma maneira, mas como um eu abstrato, no qual toda limitação e valor concretos são negados e desprovidos de valor. Na personalidade está, por tanto, o saber de si como objeto, mas como objeto que foi elevado pelo pensamento à simples infinitude, sendo, pois, idêntico consigo mesmo. Os indivíduos e os povos não têm ainda personalidade se não chegaram a esse pensamento puro e a este saber de si. (...), o espírito como eu abstrato e em realidade livre, se tem como objeto e fim, e assim é pessoa. (HEGEL, 1988, p. 102).

Os sujeitos vivem o concreto, o que não sendo espírito é o “em si não livre e externo”. A capacidade de ter direito pertence ao ente dotado de espírito, de racionalidade, de personalidade, as coisas, não possuindo o espírito, não podem ter direitos, “unicamente a pessoa tem direitos sobre as coisas”. (HARTMANN, 1976, p.

601).

Em Hegel há uma delimitação que só a partir do século XX se tornará evidente e relevante para a doutrina jurídica e alguns ordenamentos jurídicos, que o objeto da proteção do direito não é a personalidade em si, aquilo que o indivíduo é, mas a relação econômica, aquilo que tem expressão de valor econômico, uma proteção do que o indivíduo tem. Isto fica claro no estudo do papel da propriedade (próximo tópico), além disso, há uma diferença temporal, para Hegel a personalidade se adquire com a autoconsciência, para o direito moderno muito antes, com o nascimento vivo, assegurando-se o direito do nascituro.

16

Sujeito de direito é a expressão moderna do indivíduo (pessoa jurídica ou física) detentora de direito ou capaz de exercer uma pretensão de direito (Código Civil, art. 1º).

O que se destaca na “personalidade” da filosofia de Hegel é que a essência do indivíduo está na indisponibilidade do que é inerente ao homem, no fato de um terceiro não poder ter direito de “posse sobre uma pessoa”17, sobre seu corpo (que é inerente à pessoa), o que ocorre porque todos os homens são iguais como pessoas, ou seja, essa igualdade de direitos decorre da pessoa humana, do ser diferenciado que é o homem18, apesar de que no texto trata-se de uma igualdade postulada, dada pelo autor. Conclui-se que somente pode ser objeto de contrato e de alienação aquilo que é disponível, o que é exterior e por ser assim está submetido à vontade individual, o que exclui as decisões volitivas que tenham por fundamento a unidade do Estado (ou uma unidade orgânica menor), que objetive a superação do individual, como o matrimônio, que é “o momento divino da fundação dos Estados” (HEGEL, 1988, p. 246) e por isso encontra-se no rol dos direitos indisponíveis. Nesse sentido, é óbvio que também o Estado é indisponível, pois para a pessoa este não é contingente, não é passível de escolha viver ou não no Estado, mas necessário (no sentido de que é seu objetivo, é o que sua racionalidade busca), assim, o “supremo dever do indivíduo é ser membro do Estado” (HEGEL, 1988, p. 318).

A mesma essência atinente ao indivíduo, decorrente de sua personalidade, se encontra no Estado, em outras palavras, a sua indisponibilidade decorre em parte19 de sua personalidade, caráter especial obtido a partir do mesmo princípio de direito abstrato, refletindo em escala universal o que é válido para o direito abstrato. Todavia, só no homem existe a verdadeira subjetividade, só nesse ser se expressa a personalidade, por isso, necessário que um indivíduo personalize o Estado. Eis o

17

Notar aqui a nítida expressão econômica do vocábulo posse.

18

A fundamentação moderna dos “direitos fundamentais da pessoa humana” decorre da natureza humana (para além de outras considerações de ordem utilitarista ou de “fundamentação” dos direitos fundamentais – fundamentar o que é fundado), mas de um conceito expandido de natureza humana em relação ao que se concebia no século XIX, superando o que a caracterizara no passado, ou seja a racionalidade, a vontade humana e a autoconsciência. Hoje o humano além das características citadas é aquele que tem o potencial de: amar, usar conceitos como igualdade, liberdade e fraternidade, ou ainda de se comunicar de forma ordenada e complexa, dentre outras características que se apresentam potencialmente. É uma concepção que visa superar a dicotomia mente e corpo ou homem e natureza. Aqui o homem é um todo, a mente faz parte do corpo. É uma concepção de personalidade que atribui valor à vida, por isso, é condição suficiente ser um humano para se ter direitos, em especial os fundamentais como liberdade, igualdade, etc. Em Hegel entretanto, deve-se ter especial cuidado com o significado de “natureza”. Como bem lembrou Luft na orientação ao presente trabalho, natureza humana tem uma conotação negativa, uma vez que sua concepção de direito natural revela o lado imediato da natureza, o “ser-aí da força-bruta e do não-direito do qual nada se pode dizer senão que é preciso sair dele” (§ 502, Enciclopédia das Ciências Filosóficas). Em sentido igual, ver observações do §93 F.D.

19

Ao conceito de Estado se agregam outras características indisponíveis importantes: v.g. ser o Espírito o que tem em si a capacidade da unidade, por ser a “realidade efetiva da idéia ética” (Hegel. 1988. Pág. 318).

monarca, figura que concentra o poder de personalidade do Estado, figura que é a sua própria encarnação.

Como unidade o monarca reflete um segundo aspecto fundamental a toda filosofia hegeliana, o monismo, a contraposição à multiplicidade das individualidades que têm determinação contingente. É a determinidade una, a certeza de si da vontade concreta do Estado que expõe o seu “eu quero”.

Porém o binômio indisponibilidade/disponibilidade significa mais do que meros limites à liberdade de contratar, é uma categoria que admite gradações além de ter uma importante função diferenciadora de institutos de direito. Sendo o direito público um direito de Estado e o privado o direito que rege as individualidades, o que é disponível varia de um para o outro. Desta maneira é factível que o Estado exija o sacrifício de seus cidadãos em uma guerra, situação em que a vida se torna disponível, diferente do que se verifica em nível individual.

Relativamente à Idéia do direito, a liberdade, a personalidade tem o crucial papel de determinar as pessoas frente às outras, por isso, o direito do indivíduo depende do reconhecimento mútuo de que cada um possui uma “esfera de direito”, cuja disciplina é dada pelo direito abstrato. O raciocínio é paralelo para o Estado, a efetivação de sua personalidade depende do reconhecimento mútuo dos sujeitos de direito internacional, cuja disciplina será imposta pela nação que representar o estágio mais avançado do espírito no momento.

Extrapolando o raciocínio para o direito moderno, abrangendo apenas o que seria o nível abstrato em Hegel, a personalidade é o aspecto crucial da liberdade que se insere nos hoje chamados direitos fundamentais da pessoa humana (nota

18). Apenas para ficar em dois dos temas de certa forma abordados por Hegel, o direito de preservar a incolumidade da personalidade do indivíduo está no cerne da discussão da liberdade como inerente a todos os seres humanos, pelo simples fato de se nascer de outro ser humano, liberdade como condição necessária para o desenvolvimento das aptidões humanas; e, o direito a uma nacionalidade a que todas as pessoas fazem jus, como reconhecimento do vínculo necessário entre ser um sujeito de direito e possuir uma cultura própria, pares e direito ao solo.