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O direito político interno: a constituição

3.5 A ETICIDADE

3.5.3 O estado

3.5.3.1 O direito político interno: a constituição

O termo Constituição tem para Hegel um sentido próprio distinto do uso atual corrente. Em parte corresponde ao direito público interno, em parte à organização do Estado (cuja expressão “moderna” é a repartição dos poderes), mas especialmente, plasma-se a partir do conceito fundamental para a compreensão da eticidade que é o espírito do povo.

Subjaz a todo o conceito jurídico de Constituição a idéia de organização do todo em face do fracionamento da sociedade civil, ou seja, o Estado só se organiza e se transforma em uma totalidade a partir da Constituição. O “constitucionalismo de Hegel é uma teoria da Constituição como fundamento da unidade estatal” (BOBBIO. 1991. p. 110). O foco desloca-se da tratativa da liberdade em si para a discussão sobre a formação do Estado como realidade concreta da liberdade, ou seja, para que a liberdade alcance sua plenitude, necessário antes que o Estado seja, que se tenha a unidade racional justamente dada pela Constituição. Conforme o § 269, o sentimento cívico só adquire seu conteúdo particular nos múltiplos aspectos do organismo do Estado, que são os diversos poderes, mas tais aspectos que compõem o organismo são eles mesmos a Constituição.

O Estado não se resume em um ente jurídico. Necessário para sua concreção que decorra do espírito do povo, por isso, não são as relações e categorias do direito privado capazes de explicá-lo, uma vez que o direito abstrato visa regular as interações da vontade individual, da imediatez, e tem por objetivo “não lesar a personalidade e tudo aquilo que dela decorre” (Hegel, 1988, p. 104). Daí que nem o Estado pode provir do estado de natureza como defendem as teorias patrimonialistas, nem o contrato social se constitui em seu elemento formador. Como elemento do direito abstrato, o contrato não passa de uma união de vontades individuais, livre-arbítrios, incapaz de servir de elemento formador do universal.

Hegel tem uma concepção “não formal, não normativa e não valorativa” do que seja uma Constituição política. Não formal porque busca referir-se “à estrutura objetiva de um organismo político” e não meramente à lei (escrita ou não) que representa essa organização política. Não normativo porque o Estado não se limita por um conjunto de leis, mas a Constituição é uma instituição que carrega o espírito do povo, que dela faz instrumento da formação de seu Estado; e, não valorativa em face da garantia de alguns direitos fundamentais de liberdade e da descentralização dos poderes do Estado apregoadas pelas idéias constitucionalistas de sua época. (BOBBIO, 1991. p. 96).

O aspecto relativo à organicidade do Estado é o conteúdo fundamental do que se compreende como Constituição, determinando a distribuição de competências que contribuirão para o fim comum. É o elo de unificação dos interesses díspares que compõem a sociedade civil, o instrumento que conduz esta ao estágio mais elevado representado pelo Estado, que não é um mero aglomerado de pessoas, nem um conjunto de partes dissociadas, mas um todo indissociável que se mostra “superior às partes” (BOBBIO. 1991, p. 98).

As Constituições pertencem a um determinado povo em um determinado momento da história e se desenvolvem concordes com os caminhos da sociedade da qual é reflexo (F. D. § 274). São produtos de uma evolução, por isso não há quem as faça (as outorgue), perguntar por seu autor é um disparate. Elas são tão somente modificadas, e mesmo sua modificação só se dá pelo próprio espírito do povo, ou seja, de maneira constitucionalmente compatível, pois como algo produzido no tempo, está acima da esfera do que é criado. Sendo elo de ligação entre interesses múltiplos (às vezes conflitantes) sua face organizadora visa instituir as relações entre as diversas categorias sociais diante de uma distribuição desigual de poder que já se implantou na divisão das classes sociais da sociedade civil. A primeira etapa, essencial, é a distinção entre governantes e governados, e em seguida, a distribuição de poderes entre a classe dos governantes.

Por isso Constituição significa organização de uma sociedade dividida em classes, o que só ocorre a partir da sociedade civil, sendo até natural (comum) que não haja constituição numa sociedade ainda indivisa. (BOBBIO. 1991. p. 102).

Como decorre do espírito do povo, não faz sentido a comparação entre Constituições, uma vez que os povos diferem na cultura, forma de governo, no tempo e no espaço. Contudo, há no texto uma valoração das formas de governo e

conseqüentemente das constituições, pois diferentes formas de governo realizam a liberdade diferentemente. A taxionomia das Constituições resulta do fato de que sendo o grau de liberdade sua medida de valoração, serão melhores aquelas que instituem formas de governo que aumentem a liberdade.

Outra decorrência de se originarem no espírito do povo é que sua modificação atende às demandas oriundas da evolução cultural de uma sociedade. Todavia, em fases de grandes e rápidas mudanças históricas, pode o espírito do tempo antecipar-se ao espírito do povo e modificar mais rapidamente a Constituição. “Na

interpretação da história o espírito do povo representa o princípio da continuidade, o espírito do tempo representa o princípio da mudança” (BOBBIO. 1991, p. 108). A atuação do espírito do tempo de forma a suplantar a “morosidade” do espírito do povo, dá-se para que o Estado não se encontre demasiadamente defasado em relação a outro(s) Estado(s) que tenha(m) se desenvolvido mais rapidamente, o que o(s) torna(m) o(s) real(is) representante(s) do último estágio da evolução34.

(...) ainda que uma Constituição deva corresponder ao espírito do povo para ser eficaz, deste espírito possa ser melhor intérprete, em determinados períodos históricos – sem dúvida, nos períodos de mudança de uma época para outra - , um príncipe iluminado, capaz de visar ao interesse geral, e não os representantes dos vários estamentos, cuja visão do bem comum é ofuscada pelo predomínio de seus interesses particularistas. Se é verdade que geralmente as Constituições são produto de uma lenta evolução social, é igualmente verdade que, quando a mudança social é profunda e repentina, tornam-se necessários procedimentos extraordinários para adequar as instituições ao espírito do tempo. (BOBBIO, 1991, p. 108).

A Constituição como direito público interno, não se confunde com o direito privado, por isso, todos os aspectos inorgânicos que se apresentam na sociedade civil não são relevantes para modificar a Constituição, somente o que é universal. O papel central do Estado na unificação e concentração das vontades e como reflexo de uma organização social mais desenvolvida, que supera a sociedade civil, não pode prescindir de uma forma de governo que lhe corresponda. A teoria da forma de governo (F.D. § 273), “deriva imediatamente daquela de Montesquieu” (BOBBIO. 1991. p. 145) e procura justificar a escolha da monarquia Constitucional como a mais adequada para garantir os direitos e liberdades no Estado moderno.

34 Afirmo nesta frase a orientação geral do pensamento hegeliano, que estritamente falando sinaliza para a idéia

de que haverá um Estado mais desenvolvido e poderoso que expressará e imporá o estágio mais desenvolvido do espírito objetivo.

A diferenciação clássica entre as formas de governo é quantitativa: governo de um, de alguns e da maioria, mas Hegel a qualifica como uma diferenciação meramente externa, pois não vê o essencial que é a divisão de poderes dentro do próprio governo. Na teoria clássica cada uma dessas formas é uma “unidade substancial ainda indivisa”. A monarquia constitucional, por abraçar as três formas simultaneamente (que são os seus momentos), é obra do “mundo moderno” e a única que permite a realização da liberdade conforme a Idéia. O substancial é sua “diferenciação interior (a uma organização desenvolvida em si mesma)” (HEGEL. 1988. p. 354), que espelhe a racionalidade concreta.

A diferença da monarquia constitucional para as formas clássicas é que naquelas o poder é sempre indiviso, não importando a quantidade de pessoas que o exercem, há sempre um único poder que não se distribui por órgãos, assim, qualquer das três formas clássicas é “inadequada ao desenvolvimento racional da Idéia (§ 272), que não poderia alcançar em nenhuma delas seu direito e sua realidade efetiva”. (HEGEL. 1988. p. 355). A diferença é de organização. Na monarquia constitucional o poder está dividido em três: poder do monarca, poder governativo e poder legislativo.

Segundo Bobbio (1991. p 156), ao atribuir o poder judiciário à sociedade civil e designar os poderes na monarquia constitucional como legislativo, governativo e do príncipe, Hegel correlacionou suas formas de poder à antiga divisão: governo de um (monarquia), de alguns (governativo) e de muitos (legislativo).

Essa divisão substancial implica em atividades diversas: o poder legislativo representa a capacidade para definir e estabelecer o universal; o poder de governo, a capacidade de intervir e obrigar em determinadas situações os particulares e casos individuais (conforme visto acima, o Estado como poder supremo em seu território); e o poder do príncipe, que é a vontade mais alta e unificada. O poder governativo é o cerne da divisão de tarefas. Aí o Estado se entranha na esfera individual e dá organicidade à miríade de interesses particulares. “O ponto central a respeito do poder governativo é a divisão das tarefas. Esta se relaciona com o trânsito do universal ao particular e individual e as tarefas devem se dividir segundo seus diferentes ramos.” (HEGEL. 1988. p. 377).

A monarquia constitucional é uma evolução sobre as outras formas de governo conhecidas desde a antiguidade justamente pela multiplicidade de poder atribuída a cada esfera, monarca, poder governativo e legislativo. Na antiguidade,

as diferenças eram meramente numéricas, governo de um, de alguns ou de muitos, uma diferença exterior, que não reflete a essencialidade do espírito objetivo nem alcança o poder do Estado moderno. Crucial também é o grau de efetivação da liberdade, que nas monarquias não constitucionais significava a liberdade apenas do monarca, nos governos aristocráticos a efetivação da liberdade para alguns e na monarquia constitucional a efetividade da liberdade para todos os indivíduos.

A Constituição é a organização do Estado e o processo da sua vida orgânica em relação consigo mesmo. Como o Estado é uma individualidade, ou seja, diferencia-se de outros por suas características próprias, o desenvolvimento de cada um não obedece ao mesmo ritmo, portanto, Estados diferentes encontram-se em estágios evolutivos diferentes. Estejam eles no mais alto grau de desenvolvimento ou no mais baixo, representam ainda assim o momento supremo da evolução do espírito objetivo. Em qualquer caso, a Constituição refletirá o espírito do povo e delineará as características que o diferenciará dos outros.

O termo Constituição representa todo o “direito público interno” (BOBBIO. 1991. p. 80), como tal, diferencia-se do direito público descrito na sessão da sociedade civil por que este último contém apenas relações de direito privado que são garantidas pelo poder público, enquanto que o direito Constitucional propriamente dito concerne à estruturação do Estado, sua organização, e à diferenciação da distribuição dos poderes entre os cidadãos comuns, classes específicas e o monarca.