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então, “voa tão rapidamente do futuro ao passado, que não tem nenhuma duração. Se a

tivesse, dividir-se-ia em passado e futuro. Logo, o tempo presente não tem nenhum espaço

(duração)”42. O importante diante disso tudo é que na reflexão progressiva que desenvolve, o

filósofo atribui ao tempo qualidades opostas e sempre a partir desse “quase nada” do presente,

enriquecendo ainda mais a argumentação. Por isso mesmo distingue três atos solidários que se

constituem incessantemente uns dos outros em sua relação com o tempo: a consciência que

aguarda ou espera, a consciência que atenta e a consciência que recorda. Mais uma vez ele

retorna à equação da qual nos ocupamos anteriormente e que está muito bem resumida nas

linhas acima: passado e futuro estão inseridos no interior do próprio presente. Nessa tríplice

forma imanente do tempo presente, passado e futuro, o instante é o ponto crítico e, ao mesmo

tempo, o ponto fundamental no qual se apoia a mais decisiva concepção de tempo defendida

pelo filósofo43, com a sua ênfase no primado do presente. É decisiva por proporcionar até

mesmo um fugaz toque na essência da eternidade. É desse ponto, também, que ele parte para

uma ousadia ainda maior, qual seja a de abrir a possibilidade de se captar nesse átimo do

presente vestígios da própria eternidade44.

42 “...quod tamen ita raptim a futuro in praeteritum transvolat, ut nulla morula extendatur. Nam si extenditur,

dividitur in praeteritum et futurum: praesens autem nullum habet spatium” (Conf. XI, 15).

43 Cf. GUITTON, 1971, p. 231ss.

44 BLANC, 1999, p. 224, entende que tempo e eternidade não são termos antitéticos, quando diz: “Não são, portanto, tempo e eternidade termos antitéticos, mas exigências complementares da vida e do espírito, a que o homem tem de atender, realizando na ação, como relevou Alquié (Le Désir d’Éternité, 1943, Paris, PUF, col. ‘Quadrigue’, 1996, sobretudo os caps. X e XV), a sua síntese harmoniosa. Segundo este autor, com efeito, nem o tempo é dedutível da eternidade, pois que nos é dado como um fato, nem aquela inferível do tempo, pois que é objeto de fé. É, porém, possível aceitar o tempo – o desafio do futuro e a mudança que comporta, bem como a fatalidade da morte – enquanto condição da ação, penhor da realização de qualquer obra. Construindo o mundo a partir de valores livremente escolhidos, o homem efetua a mediação entre o Espírito eterno e a vida temporal, permitindo àquele, por seu intermédio, dirigir e moldar o curso dos acontecimentos, numa fidelidade ao Espírito e à sua condição, que não se compadece com a nostalgia do passado, ou com o medo do futuro”; mesmo mantendo posições diametralmente opostas em diversas questões relacionadas ao tempo – como, por exemplo, a eternidade ou não eternidade do mundo, a creatio ex nihilo, dentre outras -, há uma aproximação do pensamento de Agostinho com o de Aristóteles quando se trata da relação do tempo com a eternidade, sobretudo em termos da absoluta transcendência da divindade sobre o tempo e da exclusão de toda e qualquer mudança e sucessão na extratemporalidade de Deus; nesse sentido, vale transcrever um longo e esclarecedor texto: cf. MONDOLFO, Rodolfo. O infinito no pensamento da antitiguidade clássica (El Infinito en el Pensamiento de la Antigüedad

Clásica). Trad. de Luiz Darós. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1968. p. 123: “Em Aristóteles a eternidade se

apresenta, mais explicitamente que em Platão, sob duas formas e em duas esferas de pertinência claramente distintas: a da absoluta transcendência sobre o tempo, ou extratemporalidade de Deus, que exclui toda mudança e

toda sucessão, e a infinitude temporal do cosmos, que inclui a sucessão como infinita série de movimentos e de mudanças. A primeira eternidade é aquela divina do Ato puro (Metafísica, XII, 6-9, 1072-1074): unidade absoluta e possessão eterna do uno pelo uno; pensamento do pensamento, ou seja, imutável contemplação da própria e absoluta perfeição divina, sempre idêntica; causa final de todo movimento eterno e devir cósmico, mas, precisamente pelo desconhecimento deste último, porque, conhecendo-o, estaria com ele em contínua mudança; enquanto a eterna subsistência do cosmos exige uma causa ‘permanente e eterna, que opere sempre do mesmo modo’ (Metafísica, XII, 6-9, 1072 a) . Assim o Deus de Aristóteles, ‘substância eterna e imóvel, separada dos seres sensíveis’ (Metafísica, XII, 6-9, 1073 a), consegue, enquanto separado de todo devir em sua imutabilidade absoluta, manter em si e na própria eternidade aquela extratemporalidade que o Deus de Platão perdia no ato da criação da ordem cósmica”; p. 124: “O motor imóvel de Aristóteles... permanece em si mesmo puro de todo movimento e desenvolvimento, enquanto não atua como causa determinante através de sua ação, mas como causa final por virtude de sua existência: o movimento, portanto, só está no mundo, não no fim imutável ao qual aspira”; p. 129: “A matéria da qual as coisas nascem e à qual voltam ao se desintegrarem é o substrato (hypokéimenon: ‘o subjacente’) permanente; é necessário admitir a eternidade de uma prote hyle: ‘matéria primeira’ (infinita possibilidade dos contrários), por ser impossível um nascimento a partir do nada (Metafísica, III, 4, 999 b); mas, tal eternidade é permanência através das infinitas mudanças ocasionadas pela infinita passagem das formas. A forma, por sua vez, é a espécie imortal não separada da matéria, mas realizando sua eternidade através da infinita mudança desta, isto é, através da infinita sucessão dos indivíduos mortais; destes, o nascimento de um é sempre morte de outro e vice-versa (De generat. Corrupt., I, 3, 319 a: ‘A geração de algo diferente é sempre destruição de outra das substâncias, e a destruição de uma é sempre a geração de outra’), numa vicissitude que não teve começo e nem terá fim (De cœlo, I, 10, 279ss)”; p. 131: “...toda porção de tempo (por maior que a tomemos) é sempre limitada entre dois instantes (Física, IV, 13, 222), que implicam respectivamente no começo um passado e no fim um futuro, seja porque o tempo é número do movimento e que dos números, poderíamos tomar sempre um que seja maior que qualquer outro dado (Física, IV, 12, 221), sempre se reafirma a infinitude do tempo no próprio ato da limitação de qualquer porção sua”; p. 132, 133: “...a questão da realidade ou da idealidade do tempo em Aristóteles... Hamelim (Le système d’Aristote, p. 296) vê um indiscutível (mesmo se inconsciente ou involuntário) passo para o idealismo, quando Aristóteles (Física, IV, 14, 223 a) se coloca o problema sobre se o tempo, número do movimento, se pode verificar sem seu numerante, o qual só pode ser a alma, ou melhor o intelecto. A tal problema Aristóteles responde: ‘não há outro ser que numere, que não seja a alma, ou melhor, seu intelecto; não existindo a alma, não poderia existir também o tempo’. Com isso a infinitude do tempo ficaria reduzida a simples potência do intelecto numerante, capaz de assumir sempre um número maior que qualquer número dado, isto é, seria uma pura infinitude potencial [...]. Mas Aristóteles imediatamente acrescenta: ‘De não ser o que é o tempo por seu próprio ser, como se pudesse haver movimento sem alma; porque

o antes e o depois existem no movimento, e o tempo está representado por eles enquanto são numeráveis’. Nestas palavras a alma (da esfera celeste) aparece como motriz, além de pensante e numerante; e como motriz garante do tempo no movimento. E a numeração do tempo aparece realizada por ela, no próprio ato de produzir o movimento do qual o tempo é o número, isto é, não um movimento qualquer (como logo esclarece Aristóteles), mas o contínuo, que é o movimento circular dos corpos celestes. Por isso, se deverá inferir que assim como a alma da esfera celeste produz a rotação do céu ab aeterno (‘eternamente’), igualmente a numera ab aeterno, por ser tal movimento o único numerável: a infinitude do tempo passado está portanto numerada, é infinito em ato e não em potência”; p. 134: “É infinito, na rotação celeste, o movimento realizado ab aeterno, e conseqüentemente também o tempo é infinito”; p. 135: Aristóteles admite “...uma dupla infinitude temporal: regressiva (do passado) e progressiva (do futuro). Admite-a também ao chamar de instantes intermédios infinitos as porções de tempo, que se podem tomar em número infinito, como intervalos entre dois instantes (Física, IV, 10, 218: ‘nos instantes intermédios, que são infinitos’)”.

3.3 O tempo presente como vestigium aeternitatis45

Ao começar sua construção sobre o tempo, Agostinho insere de imediato a relação

deste com a eternidade46. E isso é feito tanto no texto das Confissões, quanto no texto de A

Cidade de Deus. Na verdade, ele já se refere ao tema, de forma explícita, na frase de abertura do livro XI das Confissões: “Sendo tua a eternidade, ignoras porventura, Senhor, o que te

digo, ou não vês no tempo o que se passa no tempo?”47. Ora, de acordo com o pensamento de

45 Cf. De gen. lib. imp., XIII, 38. Na análise da categoria “eternidade”, em Agostinho, um dos pontos sob destaque é a idéia apresentada por Schuback em sua obra, que permeia tanto o período patrístico quanto o próprio medievo e cuja definição mais apropriada a autora encontra em Boécio (480?-524), cf. SCHUBACK, 2000, p. 79-117; sobre esse particular em Boécio, eis o que diz ABBAGNANO, 1999, p. 379: “...Boécio exprimia corretamente a distinção entre os dois conceitos de eternidade (a dupla distinção a que se refere o autor é a seguinte: 1a, como duração indefinida do tempo, 2a, intemporalidade como contemporaneidade): ‘Não se pode legitimamente considerar eterno o que é condicionado pelo tempo, ainda que, como Aristóteles pensou do mundo, não tenha princípio nem fim, e ainda que sua vida se prolongue na infinidade do tempo. Pois, mesmo sendo infinita, sua vida não compreende nem abrange sua própria duração inteira, visto que ainda não compreende nem abrange o futuro e já não abrange o passado. Portanto, só o que abrange e possui igualmente, em sua totalidade, a plenitude de uma vida sem limites, de tal sorte que nada lhe falte do futuro e nada lhe haja escapado do passado, só esse é o ser que deve ser considerado eterno: ele se possui necessariamente por inteiro no presente e possui no presente a infinidade do tempo’ (Phil. cons., V, 6, 6-8). Depois de Boécio essa distinção tornou-se lugar-comum em filosofia”; cf., ainda, o que diz DARLAPP, 1970, p. 123, sobre a importância da definição boeciana: “A teologia escolástica remete sempre para a clássica definição de eternidade dada por Boécio: aeternitas est interminabilis vitae tota simul et perfecta possessio (De Cons. Phil., V, 6; PL 63,858). É digno de nota que esta definição não parte do tempo, mas da vida. Por isso, tal definição tem uma afinidade com a concepção bíblica, na qual aparece a eternidade como uma realidade na ordem da salvação e não como simples duração. Além disso, esta definição está ligada à idéia de que o tempo não procura a estabilidade do ser consumado, mas é um modo de ser, de um ente concreto, o modo de ser de quem não se possui completamente a si mesmo, porque na sua dispersão não pode realizar em si a unidade total do eterno. A eternidade, assim definida, é apropriada para designar as prerrogativas de Deus. Não deve passar despercebido que nossas categorias mentais não nos permitem representar-nos essa vida que existe toda no mesmo momento. Um tal conceito somente é compreensível se se admite a transcendência absoluta do espírito para o mistério absoluto”; cf. também, os dois principais conceitos de eternidade apresentados pelo mesmo autor e já incluídos neste trabalho (p. 95, 96, nota 75); cf., ainda, o que diz RABUSQUE, Edvino A. O tempo e a eternidade. In: Veritas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. v. 41, n. 161. p. 5-26. p. 5: “Nas ciências particulares pode ser válido que só conhecemos o que está no tempo e no espaço; acerca da eternidade nada sabemos. Mas na Filosofia não posso falar do tempo, sem me referir pelo menos indiretamente ao eterno. Não só a eternidade é um problema, também o tempo o é. Conhecida é a confissão de S. Agostinho: ‘Se não me perguntam, sei o que é o tempo; se me perguntam, não sei mais’. Em outros termos, tenho uma noção vaga do tempo, mas não a sei explicitar”. 46 A esse respeito, eis o que diz MAMMI, [s/d], p. 255: “As primeiras linhas do livro XI (das Confissões) põem a questão do tempo num enfoque que privilegia o ponto de vista da eternidade. Como o eterno vê o temporal? Como pode admitir sua existência? Será preciso um ato de visão em que os acontecimentos temporais sejam extraídos do tempo, e se concentrem, por assim dizer, num único ponto. Por outro lado, de que forma aquilo que é temporal pode dirigir-se ao eterno?”; cf., também, o que diz ABBAGNANO, 1999, p. 379: “S. Agostinho analisou o tempo com base na contraposição entre tempo e eternidade”.

47 “Numquid, Domine, cum tua sit aeternitas, ignoras, quae tibi dico, aut ad tempus vides quod fit in tempore?”-

Agostinho – analisado por Lorenzo Mammi como “a fixação do nosso presente temporal” -, o

que se passa no tempo se passa no presente. É a partir da base do primado do presente48,

portanto, que é desenvolvida uma das principais construções da sua teoria do tempo, pois “o

nó de todas as especulações de Santo Agostinho, o centro de toda sua filosofia, será o

problema da relação do tempo e da eternidade”49. Sendo assim, quando o filósofo especula

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