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Referindo-se à questão acima, sendo que aplicada à divindade, eis o que diz Agostinho: “Nele (Deus) não existe início nem ocaso, pois é imortal E não em vão se diz que ele é o único imortal, pois sua imortalidade é

verdadeira imortalidade, em cuja essência não há mutação. É também eternidade verdadeira, pois é imutável, sem princípio nem fim, e, conseqüentemente, incorruptível – Nec ita ut aliquando esse desistat aut coeperit:

immortalis est enim. Nec frustra de illo dictum est quod solus habeat immortalitatem (cf. 1 Tim. 6, 16): nam immortalitas eius vere immortalitas est, in cuius natura nulla est commutatio. Ipsa est etiam vera aeternitas qua est immutabilis Deus, sini initio, sine fine; consequenter et incorruptibilis ” (De Trin., XV, 5, 7).

61 “Ex quo enim quisque in isto corpore morituro esse coeperit, numquam in eo non agitur ut mors veniat” - De

caracteriza a vida que muda, que se altera, que sofre vicissitudes, a vida que está no tempo.

Nesse sentido, eternidade tem algo a ver com o tempo, apesar de diametralmente oposta ao

tempo: é um tipo de tempo diferente, sem princípio nem fim, não mais caracterizado por

mudanças ou alterações, não mais determinado por parcialidade, não mais tendente ao ocaso.

Efetivamente, é um tempo simultâneo, é um tempo todo presente e do qual desaparecem as

categorias de futuro e passado e até mesmo as categorias do presente e do próprio tempo. Ou,

como diz o próprio filósofo ao relacionar o mutável que está no tempo com o imutável que

caracteriza Deus, a Verdade e a própria eternidade: “Na Verdade, que permanece, não há

passado nem futuro, mas apenas presente. Examina as mutações das coisas e dirás foi e será;

pensa em Deus e dirás é, porém não foi ou será”62. Esse presente, entretanto, não é o presente no tempo, mas o sempre presente de Deus, da eternidade63. É o eterno hoje de Deus, como diz

o filósofo em outro texto, usando terminologias temporais: “O teu ‘hoje’ é a eternidade”64.

Quando Agostinho relaciona o ‘hoje’ de Deus com a eternidade, o que ele faz, na

verdade, é estabelecer um critério comparativo a partir do prisma do tempo, pois não existe

essa categoria na eternidade como existe no tempo. É aqui que entra o primado do presente

de forma mais enfática e decisiva, visto sempre a partir das “partículas fugitivas” acima

mencionadas. É como se o filósofo captasse uma dessas partículas e conseguisse abri-la como

se fora uma cortina e se surpreendesse com o resultado dessa tentativa, ao descortinar a

possibilidade de uma visão conjunta e simultânea (tota simul) da imutabilidade própria da

62

“...in veritate quae manet, praeteritum et futurum non invenio, sed solum praesens... Discute rerum

mutationes, invenies Fuit et Erit: cogita Deum, invenies Est ubi Fuit et Erit esse non possit”- Tract. in Joannes,

XXXVIII, 10. 63

BLANC, 1999, p. 224, identifica a direta vivência da eternidade como um “presente completo”: “E no entanto, sem subestimar o mérito da ação, o valor da fidelidade e do esforço na consecução dos valores, há que atender ainda, pensamos, às virtualidades do instante, pelo qual podemos aceder a uma bem mais direta vivência da eternidade, não como um para lá do tempo – o estádio final do processo temporal, que o futuro anuncia e precede -, mas como um tempo outro, transfigurado, um presente completo, em que todos os momentos, longe de se excluírem, se fundem e redimem”.

eternidade. Para esclarecer esse ponto, ele usa um texto muito interessante, cuja descrição se

aproxima de um jogo de palavras em forma de trocadilho:

Os teus anos não vêm nem vão. Porém os nossos (anos) vão e vêm, para que todos venham. Todos os teus anos estão conjuntamente parados, porque estão fixos, nem os anos que chegam expulsam os que vão, porque estes não passam. Quanto aos nossos anos, só poderão existir todos, quando já todos não existirem. Os teus anos são como um só dia (II Pedro 3, 8), e o teu dia não se repete de modo que possa chamar-se quotidiano, mas é um perpétuo ‘hoje’, porque este teu ‘hoje’ não se afasta do ‘amanhã’, nem sucede ao ‘ontem’65.

Esse hoje de Deus é, segundo o filósofo, inalcançável para a sabedoria humana,

pois faz parte da própria sabedoria divina. O fato de partir de uma categoria por todos conhecida

não desvenda o enigma, uma vez que nem mesmo essa categoria temporal, a todos disponível

e de todos conhecida, pode ser compreendida em toda a sua plenitude. Agostinho esclarece

isso muito bem em uma passagem do De Trinitate, quando diz:

Que mortal pode compreender esta sabedoria pela qual Deus conhece todas as coisas, de maneira que nem as que se dizem pretéritas sejam para ele passadas, nem há de esperar a realização das que se dizem futuras, senão que o passado e o futuro, com o presente, tudo seja para ele presencial: Deus não vê uma a uma as coisas, nem divaga (“mariposeia”) com o pensamento de um conceito a outro, pois tudo ele abarca a um só tempo, com uma só mirada; que mortal, repito, será capaz de compreender esta sabedoria, que é a um tempo prudência e ciência, quando nos sentimos incapazes de compreender a nossa?66

Todo esse posicionamento agostiniano não seria possível, entretanto, se ele não

contasse com outro fator de grande importância da visão cristã: a encarnação. De acordo com

o pensamento de Agostinho, o eterno se estabelece no efêmero no exato momento da

encarnação. E isso ocorre de forma recíproca, isto é, o eterno que faz morada no efêmero

65 “Anni tui omnes simul stant; nec euntes a venientibus excluduntur, quia non transeunt; isti autem nostri omnes

erunt, cum omnes non erunt. ‘Anni tui dies unus’ (2 Petri, 3, 8), et dies tuus non cotidie, sed ‘hodie’, quia hodiernus tuus non cedit crastino; neque enim succedit hesterno”(Conf., XI, 13, 16).

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