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Eis como se expressa SCHUBACK, 2000, p 80, sobre o assunto acima: “O conceito teológico clássico de eternidade remete à definição de Boécio, enunciada nos seguintes termos: aeternitas est interminabilis vitae tota

simul et perfecta possessio. ‘Eternidade é a posse perfeita, simultânea e total da vida interminável’. Já nessa

definição de Boécio o termo eternidade aparece ligado não ao tempo mas à vida interminável (vitae

interminabilis) de deus (sic). Eternidade é o que caracteriza a vitalidade única e singular de deus (sic). Trata-se

de uma vida que está na sua posse de forma total e inteira no mesmo momento (tota simul), ou seja, simultaneamente em todos os momentos. E, como prossegue a passagem de Boécio, trata-se de uma vida ‘que se esclarece com maior nitidez se comparada com o que é temporal’. A questão medieval do tempo pode ser formulada como a apreensão da essência do tempo desde a eternidade. Mas para avaliar em que sentido a eternidade pode fundamentar a essência do tempo é preciso ter sempre em mente a definição de Boécio e, através dela, a dimensão da eternidade como vida interminável, inesgotável de deus (sic), ou seja, como a vida que se possui inteiramente em cada instante. É, portanto, nessa atenção que se pode dizer que a questão medieval do tempo é a busca de uma fundamentação do tempo a partir da vida inesgotável de deus (sic). Mantendo-se esse ponto de partida da eternidade como vida inesgotável, pode-se tentar evitar o grande equívoco histórico no que respeita à concepção medieval do tempo. Esse equívoco baseia-se num entendimento de eternidade como uma permanência vazia, sempre dada, absolutamente desvinculada de toda dinâmica, de toda vida e, assim, de toda temporalidade”; p. 81: “Com base na definição de Boécio, a vida eterna de deus (sic) se enuncia como totalidade

o ponto de partida de Santo Agostinho é a apreensão religiosa da eternidade de deus (sic) como posse simultânea e total da vida interminável, como verbo ‘em que tudo se diz simultânea e sempiternamente’ ([sed simul ac sempiterne omnia] Conf., XI, 7)70.

Agostinho alcança a compreensão dessa simultaneidade da vida interminável,

representada na eternidade, ao relacionar o imutável e eterno com o mutável e efêmero. Na

sua construção ele sempre parte do ponto acima citado, ou seja, da encarnação do Verbo.

Quando o filósofo discerne, no livro XIII do De Trinitate, a sabedoria da ciência, ele toma

como base de sua argumentação o preâmbulo do evangelho de João. Segundo ele, no citado

texto há coisas que podem ser conhecidas pelos sentidos do corpo e outras que só podem ser

alcançadas pela razão do espírito. E essa parte preliminar do texto joanino trata exatamente da

encarnação. Em certo momento o filósofo afirma:

neste texto, tomado do Evangelho (de João), a primeira parte se refere ao imutável e eterno, cuja contemplação nos faz ditosos; no que se segue, o eterno se menciona mesclado com o temporal71.

A mescla do eterno com o temporal ocorre, em parte, porque “tudo isto (que o

texto narra) sucedeu no tempo e pertence à ciência objeto do conhecimento histórico”72. Há

outra parte, entretanto, inalcançável pela ciência, que é objeto da sabedoria que transcende as

meras especulações humanas. Quando Agostinho analisa o citado texto, ele entende que o

testemunho dado por João, o batista, a respeito da luz (o Verbo de Deus) é uma ação temporal

de um fato histórico que transcende a própria história. Assim se expressa o filósofo: “Testifica-se

no tempo de uma coisa eterna, como é a luz inteligível”73. Bem que o filósofo poderia ter dito

que se testifica no tempo presente, pois o presente já é vestígio da eternidade (vestigia

(tota) e simultaneidade (simul). A simultaneidade indica a totalidade de deus (sic) como uma concentração de todos os tempos possíveis em cada instante”.

70 SCHUBACK, 2000, p. 83.

71 “Hoc totum quod ex Evangelio posui, in praecedentibus suis partibus habet quod immutabile ac sempiternum

est, cuius contemplatio nos beatos facit: in consequentibus vero permixta cum temporalibus commemorantur aeterna ” (De trin., XIII, 1, 2).

72

Hoc iam temporaliter gestum est, et ad scientiam pertinet, quae cognitione historicacontinetur” (De trin., XIII, 1, 2).

73

aeternitatis), mas isso é de somenos importância, pois a essa altura já se sabe da ênfase que ele

dá ao primado do presente. Esse presente contém, também, um desabrochar que se revela

como vestígio da eternidade, um vestígio presente no tempo presente, mas que Agostinho

prenuncia para um tempo que já não será tempo, pois a prevalência ali é da essência da

eternidade: “Ali descansaremos e veremos; veremos e amaremos; amaremos e louvaremos.

Eis a essência do fim sem fim. E que fim mais nosso que chegar ao reino que não terá fim!”74

Sem dúvida, uma boa antecipação da definição boeciana de eternidade75, e que contém uma

base tão racional quanto àquela sobre a qual Agostinho faz sua construção sobre o tempo.

Construção essa que parte do tempo objetivo - de uma verdadeira consciência do tempo -, mas

também do tempo da consciência, e que desemboca não apenas no final dos tempos, mas num

auspicioso mergulho na própria eternidade, onde finalmente ocorrerá o desfrute da vida

interminável.

74 “Ibi vacabimus, et videbimus; videbimus, et amabimus; amabimus, et laudabimus. Ecce quod erit in fine sine

fine. Nam quis alius noster est finis, nisi pervenire ad regnum, cuius nullus est finis?” (De civ. Dei, XXII, 30, 5).

75 Cf. a definição de eternidade em BOÉCIO. A consolação da filosofia (De Philosophiae Consolatione). Trad. de Willian Li. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ISBN 85-336-0961-2. V, 11, p. 150, 151: “Todas as pessoas que vivem de acordo com a razão partilham da certeza de que Deus é eterno. Procuremos, portanto, ver o que é a eternidade, pois é ela que nos esclarece sobre a natureza divina, bem como sobre sua sabedoria. Pois bem, a eternidade é a posse inteira e perfeita de uma vida ilimitada, tal como podemos concebê-la ao que é temporal. Com efeito, todo ser que vive o presente no tempo vem do passado e caminha para o futuro, e não há nada relacionado ao tempo que possa abarcar toda a extensão de uma vida ao mesmo tempo. Esses seres não podem apreender novamente no dia seguinte o que já foi perdido no anterior, e numa vida vivida dia a dia só se pode viver o momento presente, transitório e fugaz. Portanto, aquele que está sujeito à lei do tempo, mesmo se, como pensava Aristóteles, sempre começa e jamais cessa de ser e cuja vida se desenrola segundo o ritmo de um tempo ilimitado, não pode no entanto ser concebido como um ser eterno. Pois, mesmo que a extensão de sua vida seja ilimitada, não pode apreender e abarcar totalmente e de uma só vez sua vida, já que não possui mais o passado e ainda não desfrutou o futuro. Por conseguinte, aquele que apreende e possui de uma só vez a totalidade da plenitude de uma vida sem limites, à qual não falta nada do futuro nem nada escapa do passado, esse sim pode

3.4 O presente como possibilidade de fundamentação do tempo objetivo76

Antes desse “tempo” fora do tempo, entretanto – a eternidade -, quando ocorrerá,

de fato, a vida interminável e não mais afetada pela mutabilidade característica desse

“presente transitório e fugaz”, Agostinho fornece toda a base para uma fundamentação do

tempo objetivo, na ênfase que dá ao presente. O primado do presente sublinha duas condições

específicas do tempo: o tempo criatural e o tempo real. O tempo da consciência, objeto do seu

método direto de pesquisa, em parte do texto das Confissões, é algo que sempre escapa, é algo

que não pode ser captado e é, até certo ponto, uma realidade muito tênue engendrada no

interior do homem. Já o tempo real, ou objetivo – continente das coisas criadas, se é que

assim se pode considerar -, esse prevalece absoluto (mesmo que circunstancialmente relativo)

e independente do homem, de acordo com o pensamento do filósofo. E que campo mais eficaz

pode haver para o suporte das possíveis construções epistemológicas que partam de uma

teoria do tempo vinculada às mais diversificadas ciências? E que outro campo mais eficaz,

também, para pesquisas, sejam elas laboratoriais, teóricas ou intelectuais?77 O próprio

Agostinho elabora suas pesquisas teóricas e intelectuais graças ao suporte que lhe é dado pelo

tempo objetivo. O tempo criatural, portanto, efetiva-se, torna-se real no mundo e nas coisas

que estão no mundo. Trata-se, por conseguinte, de uma criatura material – mesmo

diferenciada de outras criaturas materiais - e não de uma criatura espiritual ou intelectual. Isso

ser considerado com razão como um ser eterno, e é necessário que ele esteja sempre presente e em plena posse de si mesmo, já que para ele o presente abarca todo o tempo ilimitado”.

76

Nossa pretensão, nesta última subdivisão do trabalho, é apresentar a atualidade do pensamento filosófico de Agostinho em sua teoria do tempo, partindo, por isso mesmo, do primado do presente, uma vez que esta é a categoria que se sobressai e que, além disso, abre espaço para um estudo do tempo objetivo.

77 Nesse sentido, por exemplo, “todas as leis da Física exigem os conceitos de espaço e tempo para sua

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