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de expressão portuguesa, Memmi está longe de ter razão, como veremos.

A rejeição das línguas europeias, problema subja- cente à tese de Memmi, foi também apregoada por outros e noutras ocasiões como, por exemplo, no Congresso de Intelectuais Negros, que teve lugar em Roma, em 1958, onde foi aprovada uma moção «re- comendando o emprego duma única língua africana como língua oficial para toda a África ao sul do Sahara».20 Esta moção, é óbvio, manifesta mais um idealismo emocional de raiz essencialmente política do que uma atitude realista e sustentável. Mas, ainda que uma moção semelhante não tivesse grandes pos- sibilidades de ser entusiasticamente recebida hoje, porque ninguém crê, de facto, na unicidade cultural africana inventada pelos primeiros negritudinistas, a verdade é que Memmi continua a ter epígonos de sua tese, os quais, não obstante, reconhecem que a «dualidade definitiva» pode ser perfeitamente enqua- drada na africanidade moderna.21 Esta é, na verdade, a conclusão que poderá extrair-se de um estudo de Guy Michaud sobre essa questão, do qual citamos

20. Cf ALEXANDRE, Pierre — «Les Problèmes Linguistiques Afri- cains», in «Language in Africa», p. 55, Cambridge Univer- sity Press, London, 1963.

21. Não se confunda unicidade cultural africana com unidade cultural africana. Este é um conceito defensável e aceite; aquela não. O que aqui chamamos de africanidade moderna poderíamos desi- gná-lo também pelo conceito de africanicidade (= africanicité, afri- canness) que traduz «o conjunto dos valores africanos de civili- zação, ou o conjunto das qualidades que fazem a especificidade da personalidade africana». Veja-se a este propósito o excelente

a parte mais significativa e relacionada com o assunto que estamos tratando:

«Marcado pelo fenómeno que Jean Poirier designa sob o nome de heterocultura, cada povo de África vive hoje simultaneamente sobre dois planos ou, se se preferir, em dois universos culturais: o da tradição com o qual ele mantém o contacto pela sua língua, pela sua experiência vivida e, numa certa medida, a sua vida quotidiana; e, por intermédio de suas «élites», o da

«modernidade», veiculado pelas línguas,

pelas ciências e pelas técnicas do Ocidente. Nesta «aventura ambígua», até aqui gera- dora de tantos conflitos interiores, Poi- rier sugeriu a possibilidade duma comple- mentaridade entre a cultura tradicional, dada e vivida subjectivamente, e esta cul- tura adquirida, objectiva, mas doravante apropriada, por seu turno, e integrada por muitos como uma personalidade segunda. O problema é, portanto, para cada um — indivíduo ou grupo — definir, primeiro, e escolher sobre qual substrato, quer dizer, a partir de qual identidade percebida e reencontrada construirá ele a sua perso- nalidade nova. Esta identidade funda-se, sem dúvida, sobre a língua que, como o

ensaio de Pathé Diagne, «Renaissance et Problèmes Culturels en

Afrique», incluso em «Introduction à la culture africaine», coll.

escreve excelentemente Jacques Howlett, é «um espaço vital onde os significantes culturais da nossa comunidade falam em nós» a tal ponto que a «alienação cultural mais grave é, na verdade, «a de ter sem- pre que se traduzir, que se pensar e que pensar o mundo através dum léxico e duma sintaxe carregados dum peso cultu- ral estrangeiro». Há, assim, populações inúmeras que, sobre o seu próprio solo, são a seu modo «pessoas deslocadas»,— deslocadas na linguagem; e, acrescenta J. Howlett, 'esse não é um exílio menor'».22 Michaud, baseando-se, como vimos, em Poirier e Howlett, defende as teses da «heterocultura» poi- rieriana e do «exílio linguístico» howlettiano. Se a tese de Poirier é facilmente aceitável, porque de- monstrável na prática do quotidiano africano moderno, em que realmente existe uma complemen- taridade da cultura de empréstimo relativamente à cultura tradicional básica, já Howlett analisa o pro- blema do bilinguismo por um prisma não muito correcto e um tanto empiricamente, a nosso ver.

É curioso, e não deixa de ser sintomático, que a tese do conflito das línguas, como equivalente a um conflito de personalidades, se tenha desenvolvido essencialmente nas áreas africanas francófonas, e

22. Cf. MICHAUD, G. — «Identité et personnalité», in «Négritude: traditions et développement», p. 178, Editions Complexe, Bru- xelles, 1978.

muito especialmente nas Antilhas. A explicação mais corrente para tal fenómeno é a de que o sistema colonial francês, a assimilation, «nihilizou» o colo- nizado, desenraizando-o do seu património cultural, enquanto, por exemplo, o sistema britânico, o indi-

rect rule, não terá sido tão aniquilador. É uma jus-

tificação possível, embora nos pareça devermos pro- curar outras explicações para essa irrupção confli- tuosa, nomeadamente no afastamento, na frieza, na falta de afectividade, entre a língua francesa e seus falantes africanos. É sabido que os franceses sem- pre foram, e ainda são, muito ciosos do seu «tesou- ro» linguístico, evitando a todo o custo a sua africa- nização, mesmo que pouco acentuada. Sartre auto- riza-nos perfeitamente esta ilação, quando, acerca da língua francesa, afirma que ela «é uma língua de pele de galinha, pálida e fria como os nossos céus» que não terá aceitado que entrasse no seu dicionário como contribuição africana muito mais do que «o termo bastante feio de 'négritude'».23 De facto, tendo o colonizado francófono de manter essa distância respeitosa para com a língua de emprés- timo, não lhe sendo permitido fecundá-la na sua dupla estrutura, era natural que ele fosse acumu- lando as frustrações de tudo ter que receber e nada poder dar, gizando-se desse modo um «drama lin- guístico».24

23. Cf. SARTRE, J.-P. — op. cit., p. XVIII.

24. É, aliás, bastante vulgar que os críticos franceses da obra de Aimé Césaire e de Senghor relevem e elogiem com encómios a

Entretanto, nas áreas africanas anglófonas, esta questão não ganha grande relevância. Vejamos como, de facto, assim é.

Chinua Achebe, escritor nigeriano e nome cimeiro na literatura africana anglófona, representa bem a posição do colonizado de expressão inglesa perante o discutido problema do «drama linguístico». Para Achebe trata-se de um falso «drama»: «A língua inglesa será capaz de transportar o peso da minha experiência africana. Mas será preciso que seja um inglês novo, certamente em relação ainda estreita com a pátria de seus antepassados, e todavia trans- formado de tal modo que possa adaptar-se ao seu novo meio africano».25

Opinião convergente possui o seu compatriota e companheiro de geração literária, John Pepper Clark, que considera como uma falsa questão o con- flito latente que o bilinguismo geraria no africano. Por isso, escreve: «O africano do oeste é moderno e tradicional ao mesmo tempo e isso faz dele cidadão de dois mundos. 0 africano do oeste nada numa dupla corrente: uma é tradicional, a outra é mo- derna».26

Como se vê, Achebe e Clark defendem a existên- cia duma situação de equilíbrio entre as duas com- ponentes culturais do homem africano moderno, já que, para eles, elas não são opositivas, mas comple- mentares. Este é, de resto, o entendimento que se vai enraizando por toda a África, mesmo nas áreas

25. Citado por Janheinz Jahn — op. cit., p. 241. 26. ibid., p. 250.

francófonas onde o radicalismo rejeccionista foi, em tempos, bem acolhido. O exemplo dos intelectuais e escritores anglófonos teve, portanto, eco e eis que intelectuais e escritores francófonos teorizam, tam- bém eles, o advento de uma nova atitude cultural face ao Ocidente. Procurar-se-ia, assim, ultrapassar o «drama linguístico» que é, no fundo, a manifesta- ção mais importante, em termos teóricos, do «dra- ma» cultural.

Seguindo possivelmente a opinião de Sartre para quem «a Negritude é para se destruir», pois que «ela é passagem e não resultado, meio e não fim último»,27 o camaronês Jean-Marie Abanda Ndengue procura evoluir doutrinariamente da negritude para o negrismo, entendendo este como o sucedâneo dese- jável daquela: «Assim como o movimento da Negri- tude chamou e exaltou os únicos valores tradicio- nais, assim o movimento negrista quer promover e exaltar uma simbiose harmoniosa de valores cultu- rais numa óptica de originalidade e não de subordi- nação ou de consumo».28 Precisando melhor o seu pensamento acerca dos objectivos últimos do negris-

mo, Ndengue escreveria: «No Negrismo, há ao mes-

mo tempo um olhar simpático sobre os valores culturais do mundo negro-africano e um olhar simpático, um olhar consciente, pleno de autoridade e de controle, sobre os valores importados, os valo- res culturais estrangeiros. E os esforços do Negrista

27. Cf. SARTRE, J.-P. —op. cit., p. XLI.

28. Cf. NDENGUE, J.-M. Abanda —«De la Negritude au Négris- me», p. 109, Editions CLE, Yaounde, 1970.

consistem em conciliar esses valores, em permitir um encontro fecundo e equilibrado desses valores culturais do mundo negro-africano e do mundo oci- dental ou oriental, principalmente daquele mundo europeu que nos colonizou primeiro militarmente, depois política e economicamente, e, por fim, cul- turalmente».29 Em suma, Ndengue entende o negris-

mo como uma verdadeira «dinâmica da ataraxia»

que conduziria a uma síntese equilibrada de esba- timento de antagonismos culturais e, naturalmente, linguísticos. É notória, pois, a proximidade de posi- ções do negrismo e dos escritores da African Perso-

nality.

Aceitando-se, com Damourette e Pichon, que todo o idioma é uma maneira de pensar e que, portanto, falar uma língua é assumir o mundo, a cultura, que lhe estão subtensos, teríamos de concluir que, se para os escritores nigerianos não existe, como vimos, um conflito, um drama, entre os dois elementos componenciais da personalidade do africano moder- no, isso acontece porque as duas línguas, que o habitam, não estão, de facto, em situação de anta- gonismo, isto é, não geram o drama linguístico de que falava Memmi. É que, quando Achebe afirma que o inglês pode perfeitamente veicular a sua afri- canidade, desde que tropicalizado, africanizado, ele não faz mais do que afirmar que o africano, gra- ças a uma civilização da oralidade ainda muito viva, é o dono, o mestre da palavra e da palabra,

não tendo, por isso mesmo, que se sujeitar a códigos ou gramáticas que lhe são estranhas e de que ele não precisa. Compreende-se, no entanto, que a teo- rização de Memmi possa não ser funcional na África negra, na medida em que ela foi construída sobre uma situação histórica muito diferente da que vive- ram os povos que não tinham tradição cultural escrita, antes da chegada dos colonizadores. Memmi reflecte, contudo, em linhas gerais, a situação criada, em certas zonas africanas, pelo bilinguismo colonial. A sua tese vale essencialmente para a África berbé- rica e muçulmana, onde uma longa e rica civilização escrita não aceitava pacificamente o domínio de outra civilização escrita, a europeia, que muito tinha recebido dela. Na verdade, a situação do colonizado árabe é completamente distinta da do negro-africano. Por isso, a bivalência cultural é nela muito mais sentida, em virtude de se tornar mais fácil o confronto, a comparação, entre as duas civili- zações em contacto. Memmi partiu certamente do provérbio árabe — «sempre que se aprende uma nova língua, outra inteligência acrescentamos à nossa»30 — para fundamentar a sua teoria. Cremos ainda que ele ter-se-á deixado influenciar pelo céle- bre Le Polygone Étoile, do escritor argelino, Kateb Yacine, onde a questão do bilinguismo colonial, do «drama linguístico», ocupa as duas últimas páginas do livro que o narrador termina com uma frase- -sumário: «Assim eu tinha perdido ao mesmo tempo

30. Citado por KHAWAN, René — Prefácio a «Ifrikya ma pensée», de Ridha Zili, p. 7, Ed. P.J.O., Paris, 1967.

a minha mãe e a sua linguagem, os únicos tesouros inalienáveis — e todavia alienados!».31

Analisada que foi a problemática do bilinguismo como condicionante dos comportamentos culturais e literários nas áreas africanas anglófona e francó- fona, transponhamo-la agora para as áreas africanas de expressão portuguesa.

Começaremos por dizer que os escritores afri- canos de expressão portuguesa se encontram muito mais próximos da posição defendida pelos anglófo- nos e pelos defensores do negrismo, e subscreve- riam, com certeza, o provérbio árabe atrás citado. O bilinguismo não é, pois, olhado por eles como um drama, mas mais como uma riqueza, como uma dupla possibilidade de realizarem a síntese cultural entre o especificamente africano e os empréstimos consentidos da cultura ocidental. Deste modo, o bilinguismo transforma-se inevitavelmente num hibridismo linguístico que indigeniza a língua do colonizador a níveis tão profundos que ela se torna irreconhecível para os seus falantes. É este um dos aspectos diferenciais entre as literaturas africanas de expressão portuguesa e as de outras expressões estrangeiras, que vamos seguidamente analisar.32

31. Cf. YACINE, Kateb — «Le Polygone Étoile», p. 182, Editions du Seuil, Paris, 1966.

32. Tem, pois, razão Pierre Rivas, quando, na comunicação que apre- sentou, no «Colloque afro-comparatiste de Limoges» (Maio de 1977), sobre a «Dialéctica da literatura cabo- verdiana: vocação

oceânica e enraizamento africano», reconhece que «as literaturas

Talvez porque na sua própria origem haja uma forte hibridização de povos e de culturas, as mais variadas, os portugueses, todos o reconhecem, mani- festaram, desde sempre, uma acentuada tendência para o convívio com outros povos, com outras cul- turas. Por isso, na sua diáspora, não adoptaram uma atitude de intrépida rigidez quanto à eventual

contaminação de sua língua, digamos em sentido

mais lato, da sua cultura, por outras línguas, por outras culturas com que contactaram. Ao contrário, a história demonstra que os nossos antepassados, navegadores, comerciantes ou colonos, estabeleciam contactos humanos com relativa facilidade e adapta- vam-se sem demora ao novo ambiente em que se inseriam, deixando-se mesmo, não raras vezes, indi-

genizar.

A indigenização traduz um estado simbiótico, cul- turalmente falando, a que os portugueses chegavam ao fim de algum tempo de permanência em locais mais ou menos distantes de outros, onde havia popu- lações europeias. Compreender-se-á que, à medida que a indigenização se acentuava, aumentava tam- bém a ocidentalização das populações indígenas em contacto com elas. Ainda que não seja nosso propó-

literaturas de expressão inglesa ou francesa, um certo número de traços específicos que convém lembrar, a fim de se compreender que o tema proposto — a mutação dos mitos tradicionais africanos na literatura moderna — resolve-se nelas de um modo muito par- ticular (...)»• Consulte-se a referida comunicação, em «L'Afrique

sito expor aqui desenvolvida e diacronicamente a evolução da indigenização dos portugueses e da oci- dentalização dos negros, não deixaremos, todavia, de fazer um corte sincrónico numa das etapas desse processo — o século XIX —, exactamente aquela em que sintomas de profundos conflitos sócio-culturais começarão a surgir, sobretudo nas áreas urbanas onde existia uma, não muito numerosa mas forte, burguesia africana.

O século XIX é justamente considerado o da colonização africana. Em termos gerais, o aconteci- mento histórico, que terá motivado directamente essa colonização, foi a Conferência de Berlim. Por- tugal, porém, além dos condicionamentos impostos pela dita conferência, encontrava na Independência do Brasil, geradora de graves preocupações internas, sobretudo económicas, uma razão de muito peso para se virar para a África. Quer isto dizer que, até ao séc. XIX, as nossas colónias africanas continen- tais eram mais colónias de tipo mercantilista do que propriamente colónias de povoamento. As regiões interiores, as zonas sertanejas não tinham sido, até então, cabalmente reconhecidas e a soberania portu- guesa exercia-se praticamente apenas nas faixas lito- râneas. De facto, o conhecimento que se tinha das zonas interiores, ou do mato, era muito superficial, se bem que houvesse disseminados, por todo esse extenso território de Angola ao Bula-Matári, às Ro- désias e a Moçambique, alguns agentes de Portugal que, não sendo investidos oficialmente, representa- vam emotivamente o seu país. E, nos potentados nativos que visitavam e percorriam, eles eram vistos

como representantes de uma cultura diferente e de uma lei de vida antagónica. Eram os pombeiros.33

Diz Castro Soromenho, o famoso romancista do Nordeste angolano, que «o sertão foi a grande escola dos homens brancos em África».34 Não há dúvida de que os pombeiros, que «eram um misto de nego- ciante, exploradores, guerreiros, descobridores e aventureiros»,35 conheceram a África e os negros lá na sua vida mais pura, no seu ambiente natural, longe das influências desagregadoras do progresso que chegava por mar aos portos de Angola ou de Moçambique.36

Alude Castro Soromenho, no opúsculo que citá- mos, à acção, quase fantástica, de alguns pombeiros portugueses que ficaram justamente famosos entre seus contemporâneos e se tornaram lendários entre as populações nativas que conheceram as suas faça-

33. A palavra pombeiro terá surgido do termo banto Mpumbo. «No séc. XVI, o principal ponto onde se fazia comércio de escravos tinha sido a Mbanza Mpumbo. (...) É desta palavra Mpumbo que saiu a palavra Fumbeiro (Pombeiro). Daí por diante todos os lugares, onde se «resgatavam» ou recrutavam escravos chama- vam-se «pombos». Cf. «História de Angola», p. 77, MPLA — edições Afrontamento, Porto, 1975. O termo é aqui usado no sentido genérico de comerciante que calcorreia o sertão, sem todavia se fixar nele.

34. Cf. SOROMENHO, Castro — «Sertanejos de Angola», p. 29, Edição da Agência Geral das Colónias, Lisboa, 1943.

35. ibid.

36. Porque nos interessa mais para o nosso trabalho, referiremos apenas a penetração dos pombeiros nos territórios de Angola, procurando, ainda que superficialmente, dar conta do papel cul- tural por eles desempenhado.

nhãs. Cativa, sem dúvida, o espírito de intrépido aventureirismo que a vida de alguns deles nos revela. A nós interessa-nos, porém, muito mais relevar o tacto psicológico de que se serviram nos contactos, por vezes difíceis, com as autoridades nativas do sertão, ao lançarem as bases para a fixação dos

funantes.37

Sendo os pombeiros essencialmente os descobri- dores do sertão que calcorreavam por razões funda- mentalmente comerciais, elas não tinham, à partida, interesses ou objectivos políticos, culturais ou reli- giosos. Poderemos, por isso, considerar três ciclos distintos na penetração comercial dos pombeiros e na consequente «ocupação» do sertão pelos funan- tes. Esses três ciclos corresponderam a outros tan- tos «objectos» de comercialização entre negros e brancos: o escravo, o marfim e a borracha. Se o pri- meiro ciclo, isto é, o da escravatura, não terá atraído ao sertão muitos portugueses, já que os sobas inte- ressados no negócio enviavam por sua conta para o litoral as presas que seguiam normalmente para o Brasil, os dois ciclos seguintes foram certamente muito mais importantes sob o ponto de vista do contacto humano entre portugueses e negros. Na verdade, o negócio negreiro não haveria de gerar muitas simpatias das populações negras pelos por- tugueses que a ele se dedicavam, já que tal comércio desumano só beneficiava os sobas, ajudando-os a

37. O funante era o comerciante que se fixava no sertão com a sua loja, servindo como uma espécie de retalhista. Era aquilo a que se poderia chamar um comerciante do mato.

livrarem-se dos inimigos e de todos aqueles que pudessem ou quisessem pôr em causa os seus pode- res, tirânicos, as mais das vezes. Compreender-se-á, portanto, que os escravagistas portugueses do sertão não fossem bem vistos pelo povo que ajudavam a escravizar. Os sobas, no entanto, prosperando com o negócio e tornando-se mais poderosos pela ausên- cia de oposição, acolhiam com abertura os negreiros portugueses, e, em alguns casos, mostravam-se desi- ludidos pelo facto de os compradores portugueses não aparecerem nas suas cortes. Disto mesmo nos dá conta, um extracto do «Diário», de Rodrigues Graça, primeiro português a visitar o Estado de Muatiânvua, no país da Lunda, em 1846, com o objectivo de elaborar um estudo geo-etnográfico. Esse extracto, citado por Castro Soromenho, rela- ta-nos uma queixa apresentada a Rodrigues Graça pelo Muatiânvua Noeje sobre o comércio de escra- vos: «Tenho ouvido dizer que já (referia-se aos nego- ciantes de Angola) não compravam tantos escravos e que mais procuram cera e marfim; e a proibição deles tem causado a falta de fazendas e mais géne- ros do nosso consumo, motivo por que os negocian- tes têm sofrido prejuízos; além de que está em prá- tica escravizar os que cometem crimes de assassínio, roubo, adultério, desobedientes, feiticeiros, e, não havendo quem os compre, somos obrigados a man- dá-los matar para exemplo dos mais, e, se o Muene Puto33 proibir a venda deles, outro meio não me

resta para puni-los. Foram felizes os meus antecesso-

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