• Nenhum resultado encontrado

Resulta do ponto anterior que as literaturas afri- canas modernas são, na generalidade, expressas em línguas de origem europeia ou, noutros termos, em línguas estrangeiras, como soe dizer-se.

Jean-Paul Sartre, por exemplo, defende que o francês não é uma língua estrangeira para alguns dos colonizados da África francófona. A posição sar- triana a respeito da estrangeiridade, ou não, das lín- guas de colonização africana, relativamente a uma determinada camada de colonizados, foi definida em termos que nos parecem correctos: «Não é verdade que o negro se exprima numa língua «estrangeira», já que lhe ensinaram o francês desde tenra idade e ele usa-o perfeitamente à vontade, quando pensa como técnico, intelectual ou político. Seria melhor falarmos, antes, de ligeiro e constante deslocamento que separa o que ele diz do que ele gostava de dizer, quando fala de si».1 Segundo Sartre, a língua fran-

1. Cf. SARTRE, J.-P. — «Orphée Noir», p. XIX, in «Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache», P. U. F., Paris, 3.e édi-

cesa serviria, assim, ao africano francófono para

dizer, ou seja, para comunicar, enquanto técnico,

intelectual ou político, mas já não lhe servirá para o

querer dizer, isto é, para manifestar toda a vivência

especificamente negra que o individualiza psiquica- mente e lhe confere uma identidade cultural. A se- guirmos Sartre, é forçoso concluir que as línguas europeias da colonização bastarão ao colonizado como línguas de comunicação, como línguas natu- rais, veiculares para os mundos culturais e civiliza- cionais estranhos à África, mas serão impotentes para funcionarem como línguas de criatividade poé- tica, enfim, como línguas sustentadoras de uma lite- ratura própria, perfeitamente autonomizada relati- vamente às literaturas metropolitanas que se expri- mem na língua mãe daquela que o escritor africano moderno utiliza. Perante tal problemática, surge a questão: «Pode ter-se uma literatura africana numa língua estrangeira?».

Iyay Kimoni,2 após formular esta pergunta, apoia-se fundamentalmente em Pathé Diagne e em Janheinz Jahn para tentar encontrar uma resposta satisfatória, não se ficando, porém, a saber muito bem se partilha explicitamente da opinião do lin- guista africano, se da do africanólogo alemão. Pathé Diagne considera impossível a existência duma lite- ratura africana autêntica «a partir de instrumentos linguísticos europeus», aduzindo como suporte da sua tese que «uma literatura escrita em línguas

2. Cf. KIMONI, I. — «Destin de la littérature négro-africaine», p. 163, Editions Naaman, Ottawa, 1975.

estrangeiras não pode exprimir adequadamente a alma negro-africana, ou ter um valor intrínseco, porque nenhuma dessas línguas transporta nela todo o aluvião da cultura africana ou pode abarcar toda a truculência e o sabor local».3

A argumentação de Diagne é demasiado genérica e subjectiva para que possamos aceitá-la sem reser- vas. Aliás, a um linguista como Diagne exigir-se-ia algo de mais preciso, de mais sólido, já que o psi- quismo em que se refugia é inaceitável. Todavia, pontos de vista idênticos ao seu são também defen- didos por um conjunto numeroso de teóricos e de escritores africanos, sobretudo francófonos, dos quais citaremos apenas David Diop e Valentin Mu- dimbé.

Diop é particularmente crítico e refractário à ideia de se aceitar a existência de uma literatura afri- cana em língua estrangeira ou, como ele diz, em lín- gua de empréstimo. Em consonância com Diagne ele opina que «o criador africano, privado do uso da sua língua e desligado do seu povo, corre o risco de não ser mais do que o representante duma corrente literária (e não forçosamente a menos gratuita) da nação conquistadora, sendo as suas obras pela ins- piração e pelo estilo4 a perfeita ilustração da polí-

3. Citado por Kimoni — op. cit., p. 163.

4. Embora a questão do estilo vá ser tratada no ponto seguinte, assinale-se desde já que a posição de Diop emana duma primitiva concepção de Negritude que apontava para a rejeição total dos valores ocidentais. Essa concepção levou Thomas Melone a escre- ver, na sua obra «De la negritude dans la littérature négro-afri-

tica assimilacionista e provocando sem qualquer dúvida os aplausos calorosos duma certa crítica».5

Mudimbé subscreve opinião muito semelhante à do escritor senegalês, ao considerar ser mais rigo- roso falar-se de «literatura francesa de África» do que de literatura africana de expressão francesa.6 A teorização contrária à existência duma genuina literatura africana em língua de empréstimo, ou, para sermos mais precisos, a teorização que procu- rou manifestar o desacordo existente entre o escri- tor e a língua por ele usada para exprimir o seu mundo interior, alicerça-se fundamentalmente na poesia órfica da primeira fase da Negritude, a qual tematizava normalmente esse desacordo, como pode verificar-se na estrofe, muito citada, do poema Trai-

ção, do haitiano Léon Laleau:

«Este coração importuno que não corresponde Nem à minha linguagem nem aos meus fatos E no qual mordem, como um grampo, Sentimentos de empréstimo e costumes

caine», p. 35, edição da Présence Africaine, Paris, 1962, um tanto radicalmente, que: «... a literatura negro-africana é con- servadora e ocidental. No domínio da escrita literária, ela não traz qualquer inovação propriamente revolucionária, nem género novo nem técnica nova, e, se Senghor escreve todos os seus poe- mas em versos livres, é porque o verso livre conquistou o direito de cidade na poética moderna». O radicalismo e o anacronismo de Melone são evidentes.

5. Cf. DIOP, David — «Coups de Pilon», p. 12, Ed. Présence Afri- caine, Paris, 1973.

Da Europa; sentir este sofrimento E este desespero a nenhum outro igual De domesticar, com palavras de França, Este coração que me veio do Senegal?»7

Um outro haitiano, Jean-F. Brière, numa mesma perspectiva órfica, cantou também esse desacordo, esse «drama linguístico»:

«Nós desaprendemos o dialecto africano, Tu cantas em inglês o meu sonho e o meu

sofrimento, Ao ritmo de teus blues dançam meus velhos

desgostos, E eu digo a tua angústia na língua de França».8 Leopold Senghor, porém, não se situou nesse espaço de lamento e de protesto órfico, se bem que, como é sabido, seja um dos principais poetas da

Negritude. De facto, Senghor visualizava de maneira

radicalmente diferente essa falta de correspondência entre o escritor e a língua. Esse desfazamento, con- fessa-o, não existe para ele: «Eu penso em francês; eu exprimo-me melhor em francês do que na minha língua materna».9 A aceitarmos, sem reservas, esta confissão senghoriana, seríamos tentados a con-

7. Cf. LALEAU, L. — «Trahison», in «Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache», p. 108.

8. Cf. BRIÉRE, J.-F. —«Me Voici, Harlem», ibid., p. 123. 9. Cf. SENGHOR, L. —«Le Français, langue de culture», in «Es-

cluir que, afinal, o bilinguismo não é, de facto, esse drama em que alguns teóricos da africanidade pro- curam fazer-nos crer. Mergulhemos, todavia, um pouco mais no assunto.

Vincent Monteil, ao analisar o «problema linguís- tico na África negra», faz esta afirmação categórica: «Toda a criança se sente frustrada, desde que a lín- gua, que se lhe ensine na escola, não seja a sua lín- gua materna».10 Procurando acentuar bem a impor- tância do ensino da língua materna, Monteil acres- centa: «Um pastor douala dos Camarões, Jean-Calvin Bahoken, lembrava recentemente que «é a língua da nossa mãe que faz de nós o que nós somos» e que a ética e a metafísica dum povo são inseparáveis da sua língua; esta é insubstituível, quando se trate de exprimir as tonalidades afectivas; ela permanece «a língua do coração».»11

Se identificarmos a língua literária com a «língua do coração», como, aliás, Monteil sugere, é inevitá- vel a conclusão de que não pode existir uma litera- tura africana numa língua estrangeira, já que, é certo, a língua materna molda a personalidade dum povo, conferindo-lhe um passado que o individualiza e lhe fornece os incentivos para continuar a pátria. Importante será, portanto, saber se a «língua do coração» de que fala Monteil terá algo a ver com a língua literária e, sobretudo, se na perspectivação das modernas literaturas africanas a questão poderá

10. Cf. MONTEIL, V. — «Le problème linguistique en Afrique noire», in «Esprit n.° 11», p. 802.

ou deverá ser colocada assim. É o que veremos, em breve.

Referimos, atrás, que Kimoni não toma, aparen- temente, partido nem pela tese de Pathé Diagne, que já citamos, nem pela de Jahn, esta coincidente em linhas gerais com o ponto de vista senghoriano tam- bém já exposto. 0 ensaísta zairota coloca-se, no entanto, implicitamente ao lado de Jahn, quando se reporta ao critério de classificação das literaturas africanas adoptadas pelo africanólogo alemão. É jus- tamente um dos aspectos dessa classificação que, aqui, estamos a analisar e criticar, porque não con- cordamos com Jahn quando ele afirma que não é a expressão linguística que pode, ou não, fundamentar uma literatura, pois, diz ele, existem literaturas pro- duzidas numa mesma língua que se distinguem não por ela, mas pelas tradições específicas que veicu- lam. Em favor desta sua tese, Jahn cita o caso, entre outros, das literaturas inglesa e americana.12

A fragilidade da argumentação de Jahn ressalta desde logo a quem tiver da língua uma noção não- -reducionista como a do ensaísta alemão. Na ver- dade, uma língua não é apenas um corpus de vocá- bulos ou de significantes; ela é também um corpus de significados. Quer isto dizer que entre o inglês falado na Inglaterra e o inglês do «mundo angló- fono» existem diferenças mais ou menos pronun- ciadas.13

12. Cf. JAHN, J . _ op. cit., pp. 8-19.

13. Desenvolveremos mais adiante este fenómeno da «diferenciação linguística».

Para nós a questão linguística é muito mais im- portante do que Jahn queria fazer crer, quando se abordam as literaturas africanas modernas. É neces- sário precisar se o «drama linguístico», que psico e sociolinguistas reconhecem existir numa situação de bilinguismo forçado, subjaz, ou não, às literaturas africanas de expressão estrangeira, se é que de ex- pressão estrangeira se pode ou deve falar-se. Ou se, pelo contrário, esse «drama linguístico» não passa de um mito literário criado por etnólogos e antropólo- gos e posteriormente desenvolvido pelos escritores da chamada «Negritude das fontes».14 Mito que, não raras vezes, era tratado em tons sobremodo paté- ticos, como o demonstra à saciedade a obra Afrique

Révoltée, de A. Tevoedjre, da qual respigamos: «La-

mentarei sempre ter sido obrigado a aprender pri- meiramente o francês, a pensar em francês, a igno- rar a minha língua materna; deplorarei sempre que

14. Louis-Vicent Thomas distingue «quatro tipos de expressão» da

Negritude na literatura africana moderna: (1) a negritude dolo- rosa = «é possível que a dor seja um dos tempos dialécticos que

todo o defensor da negritude deva necessariamente atravessar, e uma das principais fontes de inspiração poética»; (2) a negritude

agressiva = «a dor moral torna-se voluntariamente agressiva e

manifesta-se na revolta»; (3) a negritude serena — «cólera e dor não podem ser fins em si mesmas, nem constituir posições cons- trutivas: elas devem dar lugar a uma atitude de calma e de reconciliação, fase última da dialéctica»; (4) a negritude triun-

fante — «da negritude serena à negritude triunfante vai apenas

um passo». Veja-se «Negritude: traditions et développement», pp. 142-150, Editions Complexe, Bruxelles, 1978.

tenham querido fazer de mim um estrangeiro na minha própria pátria».15

Terá sido Albert Memmi dos primeiros, se não o primeiro, africanista a colocar a questão da estran- geiridade do colonizado na sua própria terra, situa- ção motivada essencialmente pela «dualidade defini- tiva» que a escola colonial gerava no íntimo dos afri- canos, que a frequentavam, ou que por ela eram indirectamente afectados, nomeadamente com o bilinguismo colonial». É esse bilinguismo colonial que Memmi considera como um verdadeiro «drama linguístico»: «O bilinguismo colonial não é nem uma dislexia, onde coexistem um idioma popular e uma língua de purista, pertencendo ambos a um idêntico universo afectivo, nem uma simples riqueza poli- glota que beneficia de teclas suplementares mas rela- tivamente neutras — é um drama linguístico».16 No entanto, Memmi considera necessário o bilinguismo, no contexto colonial, já que ele «é condição de toda a comunicação, de toda a cultura e de todo o pro- gresso», não deixando, porém, de evidenciar os seus efeitos nocivos dos quais o mais importante será, segundo as suas próprias palavras, uma «catástrofe cultural» que o colonizado jamais poderá ultrapassar totalmente, na medida em que «a posse de duas lín- guas não é apenas a posse de dois utensílios, é tam- bém a participação em dois reinos psíquicos e cul- turais», reinos esses em permanente conflito gerado pelas duas línguas que os simbolizam: a do coloni-

15. Cf. o citado ensaio de L.-V. Thomas referido na nota anterior. 16. Cf. MEMMI, A. —op. cit., p. 151.

zador e a do colonizado. Tal «catástrofe», contudo, não habita apenas o colonizado bilingue. Também aqueloutro que não deixou assimilar-se, que continua lutando por fazer uso somente da sua língua mater- na, também esse é afectado pela «catástrofe», por- que «munido apenas com a sua língua, o colonizado é um estrangeiro no seu próprio país».17

Esta última posição de Memmi assemelha-se muito à que Sartre havia anteriormente expendido acerca do mesmo problema: «... o colono arranjou maneira de ser o eterno mediador entre os coloni- zados; ele lá está, sempre lá, mesmo ausente, até nos conciliábulos mais secretos. E como as palavras são ideias, quando o negro declara em francês que ele rejeita a cultura francesa, ele segura com uma mão o que recusa com a outra, ele instala em si, como se fosse uma trituradora, a máquina-de-pensar do ini- migo».18 Mas o ensaísta tunisino não se ficou pela análise da situação de aporia ao nível da língua de comunicação. Ele abordou também a situação do escritor colonizado no contexto do bilinguismo colo- nial. Segundo ele, o escritor «encarna todas as ambi- guidades, todas as impossibilidades do colonizado, elevadas a um grau extremo», acrescentando em jeito de presságio que «a literatura colonizada de língua europeia parece condenada a morrer jovem».19 O presságio não se cumprirá certamente, já que, pelo menos no que concerne às literaturas africanas

17. ibid., p. 150.

18. Cf. SARTRE, J . - P . _0p . cit., p. XVIII.

Documentos relacionados