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Passada que foi, com as independências políticas, a fase vulgarmente chamada de «literatura de cir- cunstância», isto é, daquela literatura que se alimen- tava de temas e problemas característicos duma situação de domínio colonial e que, por isso mesmo, privilegiava mais o efeito político imediato, usando um discurso raiado de um panfletarismo mais ou menos coerente, mas cuja qualidade literária, não raras vezes, era nula, eis que os teóricos e analistas das literaturas africanas modernas se ocupam pre- sentemente da «definição» da estética africana. A premência do tema, desde longa data equacio- nado, justificou, por exemplo, que a Conferência Anual da A.L.A. (African Literature Association) lhe fosse, este ano, inteiramente dedicada. Será, pois, da estética africana que nos ocuparemos, neste ponto, tentando carrear os elementos teóricos disponíveis que nos permitam chegar a uma conclusão acerca dos princípios que a definam e que sejam comuns à poética africana. Antes, porém, regressemos a Jahn e à sua insistência no «estilo agisymbiano». Ressalvemos, desde já, que a teorização desenvolvida

por Jahn no domínio da estilística africana ficou bastante prejudicada por ter sido elaborada princi- palmente no horizonte da Negritude, revelando, por isso, certas limitações que lhe foram «impostas» pelos textos, sobretudo de poesia, subsidiários dessa «ideologia literária», como diria Wole Soynka.1 Além disso, quando Jahn procura teorizar sobre o estilo

africano, ficamos sem saber claramente se o faz na

perspectiva duma estilística da língua ou na duma estilística da fala e, ainda, qual o sentido preciso em que usa o conceito, hoje tão problemático, de

estilo.2 Se nos situarmos estritamente no espaço da literatura, o estilo, que nos interessará, é o literário que é, como diz Pierre Guiraud, individual. Esta característica individual do estilo literário, a acei- tá-la nas obras concretas das modernas literaturas africanas, fornecer-lhes-á, desde logo, um cunho de «ocidentalidade», já que é voz genérica e mais ou menos aceite que a arte africana é essencialmente colectiva, comunitária, visto ela ser uma emanação da arte negra que lhe serve de base. 0 sentido artís-

1. Cf. SOYNKA, W. — «Myth, Literature and the African World», cap. 3, pp. 61-96, Cambridge University Press, Cambridge, 1976. 2. As imprecisões, que aqui referimos, são particularmente notórias no último capítulo do «Manuel de Littérature Néo-Africaine», pp. 257-277. Pierre Guiraud, em «La stylistique», col. «Que sais- ie?», p. 99, resume a problemática do estilo do seguinte modo: «Actualmente a palavra estilo tem, portanto, três sentidos: para uns ele continua a ser a arte do escritor, a mise en oeuvre da linguagem para fins literários; para outros é a própria natureza do homem e, segundo a expressão de Claudel: «uma qualidade natural como o som da voz»; para outros, enfim, a palavra engloba e muitas vezes confunde essas duas significações».

tico comunalizado confere à expressão literária um valor muito mais nocional ou gnómico e impressivo ou de intenção, para usarmos ainda a terminologia de Guiraud, do que propriamente expressivo ou,

stricto sensu, estilístico. Isto não quer dizer, toda-

via, que os valores estilísticos individuais devam ser simplesmente exorcizados das obras literárias afri- canas. Eles não são, contudo, ponderosos para uma correcta teorização sobre a estética literária afri- cana. Jahn, de resto, ter-se-á apercebido desse facto, já que considera que o que é fundamental é detectar na obra a africanidade, a qual tem muito pouco a ver, ou mesmo nada, com o estilo, como veremos. A um analista ocidental das modernas literatu- ras africanas, que queira penetrar no terreno «move- diço» da estilística africana, exigir-se-lhe-á, pelo me- nos, que tenha um certo conhecimento da ontologia negra. Já Senghor dizia, muito justamente, que o conhecimento da ontologia negra é a base indispen- sável para a compreensão e para a fruição das mo- dernas literaturas africanas. Na verdade, o único método rigoroso e isento que nós, críticos de for- mação cultural ocidental, podemos usar para deter- minar a pertença africana dum texto e emitir sobre ele juízos apreciativos, e até mesmo valorativos, é o de pesquisarmos e demonstrarmos a existência, nele, de elementos pertencentes inequivocamente ao mundo cultural africano e à textologia africana que, fácil será de entender, difere da ocidental. Assim, torna-se, desde já, evidente que o texto literário africano sê-lo-á essencialmente como (e pela) dife-

tintiva, é a tarefa primordial de quern pretende emitir juízos teóricos ou críticos acerca das litera- turas africanas modernas. Urge, por isso, que se avancem e sistematizem, tanto quanto o possível nesta fase da teorização literária africana, os traços pertinentes e distintivos que fundamentam essa

diferença, a fim de que não se corra o risco, epis-

temologicamente inaceitável, de generalizar e che- gar a conclusões do tipo de «tudo o que não seja, ou não nos pareça, nosso, é certamente deles». Quer dizer que o facto de determinada situação linguística ou textual não caber no sistema teórico ou cultural, em que nos situamos, não nos auto- riza a imputá-la a outro sistema que desconhece- mos, ou conhecemos muito imperfeitamente. Do mesmo modo, não se deve permitir que frutifique a tese de que não vale a pena, nem é possível, teorizar sobre as questões, que a arte africana nos coloca, porque já existem modelos teóricos para as tratar. Esta posição, infelizmente ainda com pa- tronos, é, obviamente, falaciosa. Teóricos e críticos africanos, preocupados em encontrarem os seus pró- prios modelos estéticos, conhecem-na bem e refe- rem-se-lhe, por exemplo, como o faz o nigeriano F. Odun Balogun: «A arte, dizem-nos, é um fenó- meno universal e, por isso, a sua apreciação só pode ser feita pela aplicação de critérios estéticos univer- sais. Aos universitários afro-americanos, que esta- vam tentando definir o que é que constitui a Esté- tica negra, foi, por exemplo, respondido que «não há uma Estética negra, porque não há uma Estética branca». Para se avaliar a verdade desta asserção,

lembremo-nos do dito que afirma estar a beleza no olho do observador. Além disso, o homem negro e o homem branco têm «observado» a beleza nos seus meios próprios desde tempos imemoriais, mas a ver- balização do efeito dessa «observação» numa forma sistematizada de consumo tem sido prerrogativa exclusiva do homem branco, pelo menos, no que diz respeito à história moderna. E, agora, quando o homem negro deseja sistematizar a teoria da sua própria visão, é-lhe dito que houve, desde sempre, só uma visão. Estaremos em presença de um mono- pólio super-protector?».s

A crítica de Balogun afigura-se-nos inteiramente correcta, porque dirigida àqueles teóricos e analis- tas ocidentais que, perdidos os impérios territoriais, desejam, ao menos, manter o império cultural, como processo de corrosivo reducionismo da diferença que, felizmente, cada povo, cada civilização, cada cultura, transportam e transmitem. É evidente que esses teóricos e analistas sabem da existência da

diferença (muito embora a maior parte a desconhe-

ça), mas não têm a coragem, ou não querem afir- má-la. Uns poucos, dos esclarecidos, referem-na, de vez em quando, mais como exemplo exótico do que como essencialidade. Roland Barthes, um deles, serviu-se, nessa perspectiva exótica, de um porme- nor etnográfico, recolhido pelo geógrafo E. Baron,

3. Cf. BALOGUN, F. Odun — «African Aesthetic: through the loo- king glass of Femi Osofisan's Kolera Kolej», pp. 4-5 — texto mimeográfico da Comunicação apresentada pelo autor na Con- ferência Anual da A.L.A., Gainesville (Fia) 9-12 de Abril de 1980.

sobre a «morte» da língua de cada uma das tribos dos Papuas (um povo do terceiro mundo), na res- posta mordaz que deu aos seus detractores picar- dianos.4 Se invocamos Barthes, é tão só para mos- trar que as «coisas» do terceiro mundo nos servem, a maioria das vezes, apenas para ilustrar o atrasado, o menos evoluído relativamente a nós, não curando de explicar e aceitar, sobretudo aceitar, certas

bizarrias, que o não são, como essa de os Papuas,

em sinal de luto por alguém, suprimirem algumas palavras de suas línguas. Reconhecer nos outros a existência de elementos e factores culturais indivi- dualizantes, com honestidade de investigação e serie- dade crítica, é o que se deve pedir a um espírito cien- tífico que tenha do mundo uma visão não sectari- zante e que queira, de facto, contribuir para um autêntico intercâmbio de ideias — e de culturas. Para isso é, dissemo-lo já, também indispensável que aceitemos a diferença não no que ela tem de exótico ou extravagante, mas no que possui de individuali- dade, de carisma civilizacional. No assunto que nos ocupa, o da estética literária africana, particular- mente a de expressão portuguesa, o reconhecimento e a assumpção da diferença é uma plataforma segura para a construção teórica a que nos propomos. Vol- temos, então, à questão do estilo africano ou, antes, da estilística africana e reflictamos um pouco sobre alguns conceitos da teoria literária com o intuito de testarmos a sua operatoriedade no âmbito das

4. Cf. BARTHES, R. —«Crítica e Verdade», p. 28, Edições 70, Lisboa, 1978.

modernas literaturas africanas. E, como a Estilística anda ligada (para não dizer: pressupõe) à Retórica, consideremos até aonde pode, ou não, a teoria das

figuras ser-nos útil para suporte da estilística afri-

cana. A reflexão, que vamos empreender, girará em torno da seguinte afirmação: «Porque estamos em presença duma civilização da oralidade, o estilo per- manece inseparável da eloquência».5

A asserção de Louis-Vincent Thomas, que aca- bámos de citar, parece querer submeter o estilo africano aos preceitos da Retórica ocidental, de que a elocutio ou arte do estilo constitui uma faceta im- portante. Antes de enquadrarmos essa asserção, no contexto em que ela nos surge, convém lembrar que a eloquência é vulgarmente assumida como sinónimo de retórica, compreendendo não só a elocutio, mas também a inventio e a dispositio. Veremos, por isso, em tempo devido, que a escolha do termo eloquência por Vincent Thomas não é a mais apropriada para sustentação do estilo africano. Por agora, sigamos um pouco mais aquele africanista francês na inven- tariação de «um certo número de marcas gerais» do estilo africano:

«De facto, todo aquele que possua, num alto grau, a arte de bem dizer não deixa de desempenhar, na sociedade ne- gro-africana, um papel importante. Num universo social em que a palabra é rainha, em que o dyali (mestre da língua) se asse-

5. Cf. THOMAS, L.-V. e LUNEAU, R. — «Les Sages Dépossédés», p. 76, Robert Laffont, Paris, 1977.

melha ao sábio, a facilidade de improvisa- ção, a correcção da língua, o à-vontade com que se manipula símbolos ou ima- gens, o sentido da réplica espontânea, o poder de sugestão, passam por ser qua- lidades mestras e dons divinos. Toda a narrativa deve comportar, sem dúvida, certos momentos estereotipados — nomea-

damente no princípio e no fim — mas a arte do narrador pode, no intervalo, ter uma função eminente, quer se trate de gestos, de mímicas, de onomatopeias, de entoações, de imagens ou de ornamenta- ções sempre permitidas num fundo geral- mente imutável».6

Há, nesta passagem haurida a V. Thomas, algu- mas precisões a fazer. A primeira será que a asso- ciação, nela contida, entre a «arte de bem dizer» e a «palabra» não é, de modo algum, justificável. Na verdade, enquanto a palabra é, entre os bantos, uma instituição social, a «arte de bem dizer» permanece ao nível individual e não tem aquela importância que o extracto citado lhe atribui, como veremos. A razão pela qual acentuamos esta diferença essen- cial compreender-se-á facilmente. Definamos, con- tudo, primeiro, esse conceito bem africano de pala-

bra.

Como instituição social, que é, a palabra, isto é, «o diálogo entre duas comunidades em presença»,7

6. ibid.

diálogo esse que recobre as variantes do debate, da conferência, do ensinamento iniciático, do sarau gnó- mico, possui as suas próprias regras, o seu código rigoroso, cuja observância a tradição exige: o res- peito e a primazia dada aos mais-velhos, entenden- do-se este conceito não num sentido cronológico, mas no sentido social e de sageza, e ainda, entre outras normas, a proibição de interromper ou cortar a palavra.8 A palabra constitui, portanto, a base da transmissão cultural, ao mesmo tempo que é o espaço privilegiado para que a palavra, o Verbo, afirme a sua omnipotência e a sua indispensabili- dade em todos os actos do homem africano. A pala-

bra outorga, assim, à palavra todo o valor de que

ela deve ser investida numa sociedade em que, diría- mos, verba manent:

«Os banto não intelectualizaram a pa- lavra. Para eles a palavra e a pessoa, que a pronuncia, estão unidas. Nela a pessoa comunica-se, traslada-se, prolonga-se. A palavra é a própria realidade invisível exteriorizada, traduz a experiência vital do homem em comunhão com as coisas exteriores. É expressão duma força e de

8. Luandino Vieira, em «O último Quinzar do Makulusu», mani- festa o conhecimento dessa regra da palabra africana e informa- -nos: «Mas vontade de sá Domingas estava um pouco apagada e ficou mais calada ainda. Ora quando os mais-velhos se calam assim, menor espera ainda palavra deles para adiantar conversa outra vez, nunca que podíamos interromper o silêncio para pedir estórias, adivinhas, outras brincadeiras». Cf. Velhas Estarias, pp. 210-211, Edições 70, Lisboa, 1976.

uma energia interior, um sinal da influên- cia vital. A palavra é força vital partici- pada, auto-doação da pessoa e comunhão inter-pessoal. Tanta importância tem o conteúdo objectivo como a pessoa que nela se prolonga e a torna eficaz e dinâ- mica por estar carregada da força pes- soal. A palavra é como um objecto que abandona a pessoa, mas continua com a sua realidade, subsiste, não é só mani- festação de pensamentos ou de desejos. Pode possuir um poder eficaz mágico, conjuratório, criador. E, uma vez pro- nunciada, só perde a força por efeito de outra palavra contrária.(...) A palavra banto desempenha também uma missão social importantíssima. Ela é união vital e comunhão. Os laços de sangue, a inter- -comunicação exteriorizam-se, asseguram- -se e fortalecem-se por ela. (...) Por tudo isto, o banto mima a palavra, depositária da sabedoria ancestral, «vida» que corre pelas gerações. O banto vive falando. O silêncio não é banto. Conversar, narrar, ou trocar notícias e impressões consti- tuem um dos seus prazeres mais agradá- veis».9

A palabra é, enfim, a base existencial do homem africano no seu relacionamento com a comunidade

9. Cf. ALTUNA, Raul R. de A. — «Cultura Banto e Cristianismo», pp. 28 e 29, Edições Âncora, Luanda, 1974.

a que pertence e também com as forças cósmicas de que «depende» e que ela lhe ajuda a criar hiero- fanicamente. Assim, como espaço e tempo de mani- festação do pensamento simbólico e simbolizante do africano, a palabra condiciona todo o exercício do dizer, isto é, o estilo. E, porque estamos em pre- sença de uma instituição sócio-cultural substancial- mente diferente das ocidentais, é importante que nos interroguemos se o estilo africano pode ser estu- dado, segundo concepções teórico-metodológicas moldadas num espírito civilizacional de natureza muito diversa das da civilização negro-africana.

A Poética, de Aristóteles, foi, como se sabe, a «bíblia da estética ocidental» até ao Romantismo. Também se sabe que o aristotelismo medieval desen- cadeou forte combate contra a supremacia, até então incontestada, do «pensamento indirecto» ou simbó- lico. Na linha directa desse aristotelismo surgiriam Descartes, Kant e Comte. A uni-los um objectivo comum: «assegurar o triunfo do iconoclasmo, o triunfo do «signo» sobre o símbolo»,10 do prosaico sobre o poético. A Retórica ocidental, das suas ori- gens greco-latinas até às mais recentes inovações que lhe foram introduzidas pelos chamados neo-

-retóricos, ficaria, desde logo, afectada pelo princí-

pio da imitação, base da poética aristotélica, isto é, pelo «pensamento directo». As leis por ela engendra- das encontravam, obviamente, o seu substrato num pensamento cuja forma de expressão procuraria imi-

10. Cf. DURAND, Gilbert —«A Imaginação Simbólica», p. 26, Editora Arcádia, Lisboa, 1979.

tar, isto é, «copiar a natureza». Nesta perspectiva, a

Retórica ocidental11 poderá justamente ser conside- rada como um «iconoclasmo por excesso», como diz Gilbert Durand, já que provoca a «evaporação do sentido». É essa Retórica iconoclásmica que funda- menta, em grande parte, a nossa Estilística e a nossa Estética literárias, tendo codificado o gosto tradi- cional, quer dizer, resultante da tradição cultural e civilizacional que «governa» o nosso mundo. Essa Retórica, por isso, terá certamente os seus óbices no momento em que a crítica literária africana dela pretenda servir-se, pois que, sendo, como é, essen- cialmente uma retórica da língua, trata a palavra como signo e não como símbolo, reduzindo, desse modo, a palavra a uma dimensão semântica dupla (sentido literal / sentido figurado) e menosprezando, portanto, a terceira dimensão (o sentido sugerido), que é a única autenticamente poética,12 dando-lhe

11. Parece-nos curial a restrição introduzida pelo adjectivo «ociden- tal», já que, sabemo-lo bem, cada civilização organiza o pensa- mento a seu modo, possuindo, por isso, formas características de o exprimir que nem sempre se deixam etiquetar pela teoria figu- rativa que subjaz à nossa Retórica.

12. Para Paul Ricoeur, «todo o símbolo autêntico possui três dimen- sões concretas: ele é ao mesmo tempo «cósmico» (quer dizer, a sua figuração enraíza de modo muito nítido no mundo concreto e visível que nos rodeia), «onírico» (proveniente das recordações, dos gestos que emergem nos sonhos e constituem, como provou Freud, a massa concreta da nossa biografia mais íntima), e, por fim, «poético», ou seja, o símbolo apela também para a lingua- gem, e para a linguagem mais fulgurante, portanto para a lingua- gem mais concreta». Cf. a obra já citada de Gilbert Durand, p. 15.

mais importância como elemento de frase do que como entidade linguística e cultural própria.

Ora, a escrita africana moderna, sendo caldeada na «floresta dos símbolos», que envolvem o mundo da palabra a que o escritor procura regressar em busca da africanidade, não nos parece poder ser inteiramente avaliada e plenamente fruida por uma Retórica marcada pelo «pensamento directo», desde sempre marginalizadora de formas de expressão valorizadoras dos símbolos, como se depreenderá do estracto seguinte que retiramos à obra já referida de G. Durand:

«À primeira vista, o conhecimento («co- -nascimento») simbólico, triplamente defi- nido como pensamento para sempre indi- recto, como presença figurada da trans- cendência, e como compreensão epifânica, aparece nos antípodas da pedagogia do saber, tal como ela foi instituída há dez séculos no Ocidente. Se tomarmos, como o faz plausivelmente O. Spengler, como começo da nossa civilização a herança de Carlos Magno, apercebemo-nos de que o Ocidente sempre opôs aos três critérios precedentes, elementos pedagógicos vio- lentamente antagónicos: à presença epi- fânica da transcendência, as igrejas opo- rão dogmas e clericalismos; ao «pensa- mento indirecto» os pragmatismos oporão o pensamento directo, o «conceito» — quando não o «preceito» —; e, enfim, con-

tra a imaginação compreensiva «mestra de erro e falsidade», a Ciência tecerá lon- gas cadeias de argumentos de explicação semiológica, assimilando-as aliás às longas cadeias de «factos» da explicação positi- vista. De certo modo, os três famosos está- dios sucessivos da explicação positivista são os três estádios da extinção simbó- lica».13

O texto citado de G. Durand parece-nos elucida- tivo do combate destruidor do Ocidente contra o pensamento simbólico. A África, submetida a uma colonização que se impôs pelo pragmatismo, seria fortemente abalada pela iconoclastia do sistema que gerava. «Os dogmas e os clericalismos» procurarão submergir a «epifania da transcendência» aniqui- lando «casas dos ídolos», fetichizando toda a relação do homem negro com as forças divinas, ao mesmo tempo que declaravam falsas a cosmogonia e a onto- gonia do colonizado a quem se tentava fazer crer que a única metafísica verdadeira era aquela que paganizava a Natureza e todos aqueles elementos que a diminuíssem ou desacreditassem como teoria genésica e apocalíptica do homem ou do europeu, o que, na época, era o mesmo. O colonizado é, desde muito cedo, confrontado e assoberbado por uma metafísica da morte totalmente oposta à sua metafí- sica da vida. A religião, que lhe levam, é servida essencialmente por um discurso em que a morte está

constantemente presente como sua condicionante. De facto, o baptismo, meio, por vezes apenas estatís- tico, de «espalhar a fé», surgia aos seus olhos como o antídoto para o «pecado original»; a confirmação, a penitência, a eucaristia, a extrema-unção e o matri-

mónio completavam essa luta contra o «pecado mor-

tal». O colonizado, tornado «cristão», começava a temer a fonte da morte, entretanto olhada como uma

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