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1.2 teoria da justificação social da pena e o chamado «funcionalismo penal»

1.2.5 o chamado «direito penal simbólico»

A ciência jurídica, nas últimas décadas, vem se preocupando com um fenômeno legislativo que tem pertinência com o populismo penal: o chamado «direito penal simbólico». Vejamos como alguns dos mais renomados juristas o conceituam: WINFRIED HASSEMER diz que há indefinição do termo «simbólico» ou do significado de

«legislação simbólica», mas que existe um acordo geral quanto a onde se busca o fenômeno do Direito simbólico: se trata de uma oposição entre «realidade» e «aparência», entre «manifesto» e «latente», entre o «verdadeiramente querido» e o «outramente aplicado»; «simbólico» se associa com «engano», tanto em sentido transitivo como reflexivo.175 C

ANCIO MELIÁ disse que “o direito penal, em geral, tem efeitos simbólicos,

porém, o sentido crítico do conceito de direito penal simbólico faz referência a que determinados agentes políticos tão-só perseguem o objetivo de dar a «impressão 174ROBERTS, Julian V. et alli. Penal populism and public opinion. Nova York: Oxford University Press,

2003, p. 87 e s.

175HASSEMER, Winfried. Derecho penal simbólico y protección de bienes jurídicos. Trad. Elena Larrauri,

tranquilizadora de um legislador atento e decidido», quer dizer, que predomina uma função latente sobre a manifesta”.176 Para D

ÍEZ RIPOLLÉS, o direito penal simbólico constitui um

caso de extrapolação dos limites utilitários que o princípio teleológico da sanção penal atribui à intervenção penal. Caracteriza-se pela produção de efeitos sociopessoais, que carecem de legitimidade, porque não se acomodam às decisões político-criminais que fundamentam a pena.177

Entretanto, embora o emprego da expressão «direito penal simbólico» seja corrente entre os juristas, parece-me inadequada, posto que é dúbia e até mesmo tautológica. O termo «símbolo» tem origem etimológica grega (σύμβολον) e vem de

symbolé‚ resultado da justaposição de syn (juntar, unir) e ballein (pôr, lançar).178 Então,

«simbolizar» é ato que sempre importa em uma associação, união, junção. Daí, é corriqueiro, na sociedade, em geral, o seu emprego no sentido de «representação», isto é, de algo presente, que faz às vezes de algo (ou alguém) ausente. Assim, se diz que a pomba «simboliza» a paz; o verde da bandeira brasileira «simboliza» as matas do País etc. No mesmo sentido, em filosofia, o «símbolo» é qualquer objeto ou acontecimento usado como menção de outro objeto ou acontecimento; importando em uma possibilidade de referência de um objeto ou acontecimento presente a um objeto ou acontecimento não-presente, ou cuja presença, ou não presença, seja indiferente.179 Com efeito, os símbolos já foram

objeto de várias abordagens científicas, gerando polissemia ao termo, que já foi empregado para designar: as crenças, os mitos religiosos e os ritos totêmicos (DURKHEIM180 e LEVI-

STRAUSS181); a representação onírica de pulsões reprimidas (FREUD);182 o instrumento pelos

quais vários indivíduos podem compreender-se e comunicar-se (MEAD e SAUSSURE),183 do

176

CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho penal del enemigo. Madri: Civitas, 2003, pp. 57 e ss.

177DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. El derecho penal simbólico y las funciones de la pena. Madri: Actualidad

Penal, nº 1, janeiro, 2001, p. 15.

178

GALLO, Rogerio. Diccionario de la Ciencia y la Tecnología. Guadalajara: Universidad de Guadalajara, 2000.

179ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2. ed. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes,

1998, p. 894.

180DURKHEIM, Émile. As Formas elementares do pensamento religioso. Coleção Os Pensadores. São

Paulo: Victor Civita, 1983, passim.

181LEVI-STRAUSS, Claude. Antropología estructural. Buenos Aires: Eudeba, 1969, pp. 168-185. 182FREUD, Sigmund. La Interpretación de los sueños [Berchtesgaden, 1898-9].

qual toda a produção cultural é dependente (CASSIRER).184

E, não bastasse a variedade de acepções, se se empregar o termo «símbolo» no sentido adotado pelos filósofos da semiótica, como PEIRCE e CASSIRER, a

denominação «direito penal simbólico» implicaria em uma tautologia, pois, como toda expressão cultural tem natureza simbólica, o direito e o direito penal sempre serão simbólicos. Nesse sentido, JUAREZ TAVARES, ao analisar a relação entre o processo de

legalização (ou incriminação) e o uso simbólico, diz:

8. A discrepância entre os objetivos manifestos ou diretos e os ocultos ou latentes dá lugar à discussão em torno da questão da ilegitimidade das normas penais e da pretensão à sua legitimação simbólica. Na medida em que a doutrina busca enfrentar as dificuldades de uma racionalização das normas penais a partir da sua identificação com a legalidade, está claro que cada vez mais irá se valer de argumentos e objetivos simbólicos, os quais passam a se entranhar em toda produção jurídica. O simbólico passa a fazer parte da argumentação, como meio pelo qual a doutrina se faz comunicar com a realidade, justificando as normas incriminadoras como obra de uma legalidade racionalizada.185

Portanto, o simbólico é parte da justificação legal – se é bem empregado, ou não, isso poderá ser descoberto, recomenda o mesmo autor, mediante um procedimento de desconstrução interna da incriminação, desvendando-se “os símbolos que são utilizados para justificar a intervenção punitiva”.186

Nada obstante a problemática da denominação, a expressão «direito penal simbólico» se encontra enraizada no vocabulário da ciência jurídica penal. Mas, qual seria a sua pertinência com o populismo penal? Vimos que, com HASSEMER, podemos

definir o direito penal simbólico, em sentido crítico, como um Direito penal no qual as funções latentes (como as destinadas à satisfação de uma «necessidade de atuar»; ao apaziguamento da população; ou à demonstração de um Estado forte) predominam sobre as

manifestas (efetividade da pena), gerando uma oposição entre aparência e realidade, que

184Cassirer disse: “O princípio do simbolismo, com sua universalidade, validade e aplicabilidade geral, é a

palavra mágica, o abre-te sésamo que dá acesso ao mundo especificamente humano, ao mundo da cultura. Uma vez de posse dessa chave mágica, a continuação do progresso do homem está garantida.” (CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o Homem : introdução a uma filosofia da cultura humana. Trad. Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 63).

185TAVARES, Juarez. Os Objetos simbólicos da proibição : o que se desvenda a partir da presunção de

inocência. Disponível em <http://www.juareztavares.com/textos.html>. Acesso em 20 nov. 2009.

conduz a um elemento de engano: à falsa aparência de efetividade e instrumentalidade.187

Portanto, dadas as características do populismo penal, principalmente por seu aspecto de engano, podemos entendê-lo como uma espécie de direito penal simbólico – um dos possíveis casos de desvio da função legislativa que este sempre representa –. Mas os conceitos não são idênticos, pois há casos de direito penal simbólico que não se caracterizam como populismo – vejamos um exemplo interessante da nossa história: em 20 de janeiro de 1745, a burocracia do rei de Portugal enviou uma carta ao Corregedor do crime da Corte do Rio de Janeiro, com o seguinte teor:

Sua Majestade me manda advertir a Vossa Mercê que as Leis costumam ser feitas com muito vagar e sossego, e nunca devem ser executadas com aceleração, e que nos casos crimes sempre ameaçam mais do que em

realidade mandam, devendo os ministros executores delas modificá-las

em tudo que lhes for possível, porque o Legislador é mais empenhado na conservação dos vassalos do que nos castigos da justiça, e não quer que os ministros procurem achar nas Leis mais rigor do que elas impõem.188

(grifei)

Como se vê, o rei de Portugal promulgou leis penais não para punir com justiça, mas apenas para ameaçar. No caso, provavelmente, seu objetivo seria, por meio de uma legislação rigorosa (Ordenações Filipinas), incutir o medo, no imaginário social, para obter uma conveniente estabilidade política. Isso é direito penal simbólico, mas não é populismo penal.