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2.1 teoria das representações coletivas e sociais

2.1.1 Durkheim e as representações coletivas

Diz DURKHEIM, em A Divisão do Trabalho Social, que existem, em nós,

duas consciências solidárias, compostas de um mesmo substrato orgânico: uma, que contém apenas estados pessoais, que representa e constitui nossa personalidade individual; e outra, composta de estados comuns a toda sociedade, que representa e compõe o tipo coletivo, e, por conseguinte, a sociedade. Assim, quando um dos elementos desta última 244CASSIRER, Ernst. A Filosofia das formas simbólicas : a linguagem. Trad. Marion Flescher. São Paulo:

Martins Fontes, 2001, p. 24.

245KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 4. ed. Trad. Manuela Pinto dos Santos et al. Lisboa: Calouste

Gulbenkian, 1997.

246

PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. Trad. José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 2005.

247CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o Homem : introdução a uma filosofia da cultura humana. Trad. Tomás

Rosa Bueno. São Paulo: Martins Fontes, 2005; A Filosofia das formas simbólicas: a linguagem. Trad. Marion Flescher. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

248MEAD, Georg H. Espíritu, persona y sociedad. Buenos Aires: Paidós, 1953. 249ELIAS, Norbert. The Symbol theory. Londres: Sage, 1991.

determina nossa conduta, não seria em vista de interesses pessoais, mas, sim, em perseguição a fins coletivos. Disso decorreria uma solidariedade sui generis que, nascida das semelhanças, ligaria o indivíduo à sociedade.250

A combinação das consciências individuais, na parte que formam o tipo coletivo, compõe a sociedade, que não seria uma simples soma de indivíduos, mas um sistema formado por essa associação, constituindo-se numa realidade específica, com caracteres próprios: “ao se agregarem, ao se penetrarem, ao se fundirem, as almas individuais dão origem a um ser, psíquico se quiserem, mas que constitui uma individualidade psíquica de um gênero novo”, diz DURKHEIM.251

Ao identificar esse novo ser social, composto das diversas consciências individuais, inicialmente, DURKHEIM não empregou uma terminologia uniforme,

denominando-o de instituição,252 consciência coletiva, comum253 ou moral social254 e

representações;255 mas, em geral, preferiu as expressões «consciência coletiva» ou

«representação coletiva», assim, por exemplo, diz que um ato é criminoso quando ofende os estados fortes e definidos da consciência coletiva,256 que consistiria no “conjunto das

crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade”.257

250DURKHEIM, Émile. Da Divisão do trabalho social. Trad. Eduardo Brandão. 3. ed. São Paulo: Martins

Fontes, 2008, p, p. 79.

251

Ibidem, p. 105.

252“pode-se chamar de instituição todas as crenças e todos os modos de conduta instituídos pela coletividade;

a sociologia pode ser então definida como a ciência das instituições, de sua gênese e de seu funcionamento.” (DURKHEIM, Émile. As Regras do método sociológico. Trad. Paulo Neves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. XXX.)

253“Mas não se percebe que esses estados fortes da consciência comum não podem ser assim reforçados sem

que os estados mais fracos, cuja violação dava antes origem apenas a faltas puramente morais, sejam igualmente reforçados; pois os segundos são apenas o prolongamento, a forma atenuada dos primeiros.” (Ibidem, p. 69)

254

“A consciência moral da sociedade se manifestaria por inteiro em todos os indivíduos e com uma vitalidade suficiente para impedir todo ato que a ofendesse, tanto as faltas puramente morais como os crimes.” (Ibidem, p. 70)

255

“Eis, portanto uma ordem de fatos que apresentam características muito especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao indivíduo, e que são dotadas de um poder de coerção em virtude do qual esses fatos se impõem a ele. Por conseguinte, eles não poderiam se confundir com os fenômenos orgânicos, já que consistem em representações e em ações; nem com os fenômenos psíquicos, os quais só têm existência na consciência individual e através dela. Esses fatos constituem portanto uma espécie nova, e é a eles que deve ser dada e reservada a qualificação de sociais.” (Ibidem, p. 3)

256Da Divisão do trabalho social …, p. 51. 257Ibidem, p. 50.

Posteriormente, em seu artigo, de 1898, Representações Individuais e Representações

Coletivas, passou a adotar a locução «representações coletivas».

A respeito da distinção terminológica entre «coletivo» e «social», DURKHEIM já havia assim explicado por que razão preferia a primeira:

Como os termos coletivo e social muitas vezes são empregados um pelo outro, é-se induzido a crer que a consciência coletiva é toda a consciência social, isto é, se estende tão longe quanto a vida psíquica da sociedade, ao passo que, sobretudo nas sociedades superiores, não é senão uma parte bastante restrita desta. As funções judiciais, governamentais, científicas, industriais, numa palavra, todas as funções especiais, são de ordem psíquica, pois consistem em sistemas de representações e de ações; no entanto, elas estão evidentemente fora da consciência comum. Para evitar uma confusão que já foi cometida, o melhor, talvez, seria criar uma expressão técnica que designasse especialmente o conjunto das similitudes sociais. Todavia, como o emprego de uma palavra nova, quando ela não é absolutamente necessária, tem os seus inconvenientes,

manteremos a expressão mais usada de consciência coletiva ou comum, mas lembrando sempre o sentido estrito em que a empregamos.258[grifei]

Portanto, para DURKHEIM, enquanto a consciência coletiva diria respeito à

média da população, a consciência social, mais abrangente, envolveria todas as representações, mesmo não sendo comuns à população em geral.259

Em Representações Individuais e Representações Coletivas,260 D

URKHEIM

vislumbra uma possível analogia entre estas duas espécies de representações: “a vida coletiva, como a vida mental do indivíduo, é feita de representações; é portanto, presumível que representações individuais e representações sociais são, de alguma maneira, comparáveis”, assim, devem ter uma mesma relação com seu respectivo substrato.”261

Nesse artigo, de 1898, DURKHEIM critica a fundamentação da sociologia

em teses biológicas – como fez SPENCER –, sustentando, ao contrário, uma necessidade de

aproximação com a psicologia. Assim, reportando-se às teorias psicológicas da época, 258Da Divisão do trabalho social , p. 50 e s.

259O tema será novamente trazido, adiante, nas conclusões deste capítulo.

260DURKHEIM, Émile. Representações individuais e representações coletivas. In Sociologia e filosofia.

Trad. Fernando Dias Andrade. São Paulo: Ícone, 2004, pp. 9-43.

refuta a concepção de HUXLEY e MAUDSLEY, que entende reduzir a consciência a apenas um

epifenômeno da vida física, um mero fato orgânico, um “simples reflexo dos processos cerebrais subjacentes, uma claridade que os acompanha, mas não os constitui.”262

O argumento principal de DURKHEIM é que a memória não é um fato

puramente físico, pois se as representações “desvanecessem totalmente depois de terem saído da consciência atual, se elas sobrevivessem somente sob a forma de um vestígio orgânico, as similitudes que elas podem ter com uma ideia atual não teriam como extraí-las do nada”; e assim não seria possível o raciocínio, “afinal, não pode haver nenhuma relação de similidade, direta ou indireta, entre esse vestígio do qual se admitem a sobrevivência e o estado psíquico presentemente dado.”263

Para DURKHEIM, existiria uma espécie de memória mental, que permite a

retenção das representações passadas, na qualidade de representações ainda atuais; que a rememoração, enfim, consiste, não numa criação nova e original, mas somente numa nova emergência à claridade da consciência.264 E essa memória mental não seria orgânica, mas

espiritual: “Com efeito, toda representação, no momento onde ela se produz, afeta, além dos órgãos, o próprio espírito, ou seja, as representações presentes e passadas que o constituem, se ao menos se admite conosco que as representações passadas subsistem em nós.”265 Nesse sentido, já havia dito, em Da Divisão do Trabalho Social:

Uma representação não é [...] uma simples imagem da realidade, uma sombra inerte projetada em nós pelas coisas; é uma força que ergue a seu redor todo um turbilhão de fenômenos orgânicos e psíquicos. Não somente a corrente nervosa que acompanha a ideação se irradia nos centros corticais e em torno do ponto em que se originou e passa de um plexo a outro, mas ressoa nos centros motores, onde determina movimentos, nos centros sensoriais, onde desperta imagens, excita por vezes começos de ilusões e pode até afetar as funções vegetativas; esse ressoar é tanto mais considerável quanto mais intensa for a própria representação, quanto mais desenvolvido for o seu elemento emocional. Assim, a representação de um sentimento contrário ao nosso age em nós no mesmo sentido e da mesma maneira que o sentimento que ela substitui; é como se ele mesmo tivesse entrado em nossa consciência.266

262Representações individuais e representações coletivas …, p. 10. 263Ibidem, p. 23.

264Ibidem. 265Ibidem, p. 26.

Valendo-se da distinção kantiana entre «intuição sensível» e «entendimento», DURKHEIM explica o processo de interação entre diversas representações,

que se aproximam, por semelhança:

As imagens, as ideias agem umas sobre as outras, e essas ações e essas reações devem necessariamente variar com a natureza das representações que são assim relacionadas se assemelham ou diferem ou contrastam. Não existe nenhuma razão para que a semelhança não desenvolva uma propriedade sui generis em virtude da qual dois estados, separados por um intervalo de tempo, seriam determinados a se aproximar.”267

E conclui o estudo sobre as representações individuais dizendo que a psicologia passou por duas etapas: uma primeira, representada pelo introspeccionismo, que se contentava em descrever os fenômenos mentais, sem explicá-los; depois, uma segunda, dos psicofisiológicos, que explicava esses fenômenos, mas os negligenciava. Assim, vislumbrou a formação de uma terceira escola, que os procura explicar, ao conceder-lhes sua especificidade, resultado de então recentes experiências, que mostraram a necessidade da conservação da vida psíquica como “um vasto sistema de realidades sui generis, feito de um grande número de camadas mentais superpostas umas sobre as outras, profunda demais e complexa demais para que a simples reflexão baste para penetrar seus mistérios, especial demais para que considerações puramente fisiológicas possam explicá-las.”268

No entendimento de DURKHEIM, o mesmo deveria ocorrer com a

sociologia, que haveria de ir para além da ideologia dos psicossociólogos, como para além do naturalismo materialista da sócio-antropologia, chegando a um naturalismo sociólogo, que veria fatos determinados nos fenômenos sociais e que tentaria justificá-los, respeitando sua especificidade:269

Se não há pensadores o bastante que ousem colocar abertamente os fatos sociais fora da natureza, muitos ainda acreditam que basta, para fundá- los, dar-lhes como fundamento a consciência do indivíduo; alguns chegam até mesmo a reduzi-los às propriedades gerais da matéria organizada. Para uns e para outros, por consequência, a sociedade não é nada por ela mesma; é somente um epifenômeno da vida individual (orgânica ou mental, não importa), da mesma forma que a representação individual, segundo Maudsley e seus discípulos, é somente um epifenômeno da vida física. A primeira não teria outra representação além daquela que lhe comunica o indivíduo, como a segunda não teria outra existência do que aquela que lhe dá a célula nervosa, e a sociologia seria 267

Representações individuais e representações coletivas ..., p. 24.

268Ibidem, p. 42. 269Ibidem, p. 42 e s.

apenas uma psicologia aplicada.

E assim, mais uma vez associando representações individuais e representações coletivas, diz que, se se chamar de «espiritualidade» a propriedade distintiva da vida representativa no indivíduo, dever-se-á dizer, da vida social, que ela se define por uma «hiperespiritualidade», isto é, uma elevação dos atributos constitutivos da vida psíquica a uma potência muito mais alta e de maneira a constituir alguma coisa inteiramente nova.270

Não obstante as críticas que sofreu, por supostamente ter feito o indivíduo desaparecer da sociologia, DURKHEIM explica que, quando disse que os fatos

sociais são, num sentido, independentes dos indivíduos e exteriores às consciências individuais – dos quais não vamos aqui nos ocupar –, o fez por afirmar, do reino social, o que estabeleceu a respeito do reino psíquico – a sociedade tem por substrato o conjunto dos indivíduos associados; as representações, que são sua trama, se livram das relações que se estabelecem entre os indivíduos assim combinados ou entre os grupos secundários que se intercalam entre o indivíduo e a sociedade total.271 Enfim, na elaboração do resultado

comum, cada um tem a sua contribuição, mas “os sentimentos privados se tornam sociais somente ao se combinar sob a ação das forças sui generis que a associação desenvolve; em consequência dessas combinações e das alterações mútuas que aí resultam, eles se tornam

outra coisa.”272

Pela sua pluralidade genética e natureza exterior ao indivíduo, os fenômenos sociais não dependem da natureza pessoal dos indivíduos: na fusão da qual ele resulta, todos os traços individuais, sendo divergentes por definição, se neutralizam e se aniquilam mutuamente. “Somente as propriedades mais gerais da natureza humana subsistem; e, precisamente por causa de sua extrema generalidade, elas não poderiam justificar as formas tão especiais e tão complexas que caracterizam os fatos coletivos.”273

Para DURKHEIM, a vida social consiste de representações, logo é um

270

Representações individuais e representações coletivas …, p. 43.

271Ibidem, p. 33. 272Ibidem, p. 34. 273Ibidem, p. 35.

produto de representações; a realidade social é feita «de» e «por» representações e isso é possível porque as representações não são meramente reflexos da realidade.274 Disso,

inferiu metodologicamente que todo fenômeno requer e pressupõe algum nível de representação para transformar-se em objeto da experiência. As representações, então, entram na constituição dos fatos. Não há fatos sem representações: facticidade pressupõe representação. Contrariamente, o representado torna-se factual. Assim, DURKHEIM foi hábil

para inferir que representações coletivas têm uma distinta realidade e que esta realidade era o objeto de uma ciência de representações.275