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Charcot: “[ ] mais ça n´empêche pas d´exister” (GAY, 1989, p.62)

1 O NOVO ESPÍRITO CIENTÍFICO E O ESTATUTO DO CONHECIMENTO

2.4 AS BASES EPISTÊMICAS DE FREUD NO PROJETO

2.4.6 Charcot: “[ ] mais ça n´empêche pas d´exister” (GAY, 1989, p.62)

Em 1885, Freud obteve uma bolsa de estudos para uma residência de cinco meses em Paris, no serviço de Charcot. Esta experiência lhe mostrou contrastes entre a racionalidade científica na qual havia sido educado e aquela que Charcot apontava, de forma ousada e dramática no seu serviço. Segundo Jones (1989, v.1, p.86): “Foi seguramente a experiência com Charcot em Paris que despertou o interesse de Freud pela histeria, a seguir pela psicologia em geral, e assim preparou o caminho para ressuscitar a observação de Breuer e desenvolver a psicanálise”..

Jean-Martin Charcot (1825-1893) médico francês, era célebre pelas pesquisas das afecções do sistema nervoso, desenvolvidas a partir de 1862, quando ele ingressou no Hospital da Salpêtrière, em Paris. Lá produziu e publicou trabalhos neurológicos consagrados. No ano de 1878,

[...] por ocasião de uma reorganização dos locais da Salpêtrière, ele teve acrescentada a seu serviço a seção dos epiléticos simples, onde acabavam de ser reunidas autênticas doentes de epilepsia e histéricas que copiavam os seus sintomas dos modelos convulsivos que tinham sob os olhos. (MOREL, 1997, p.58).

A partir de então, ele começou a fazer uma série de experiências usando a hipnose, para produzir e retirar sintomas histéricos; o mais importante destas experiências foi a dissociação que elas permitiram vislumbrar entre a histeria, como uma doença psíquica, e a neuropatologia; as experiências de Charcot abriram o caminho para uma teoria não organicista das neuroses.

Além disso, a personalidade do mestre francês causou forte impressão em Freud e teve como conseqüência principal desviá-lo do estudo dos tecidos nervosos. Segundo Gay (1989, p.60), a presença deste homem afastou Freud do laboratório de neurologia, “[...] e impeliu-o a uma direção para a qual, conforme alguns sinais visíveis, já vinha se encaminhando: a psicologia”.

Charcot ofereceu muitas contribuições novas ao estudo da histeria: além de retirá-la do campo anatômico, descreveu-a como uma morbidade bem definida: “Este reparo é importante, porque lhe permite afastar a hipótese de simulação, o grande fantasma da psiquiatria do século XIX” (GARCIA-ROSA, 1987, p.32). Charcot também chamou a atenção para a ligação da sexualidade com a neurose: “[...] explicava ele [Charcot] que certas perturbações nervosas são sempre uma questão ligada a la chose génitale” (JONES, 1989, v.1, p.254).

Ainda no campo da psiconeurose, o mestre francês contribuiu com a observação da histeria masculina; ambas as hipóteses, tanto a de que a histeria não era determinada por uma doença neurológica quanto a da existência da histeria em homens – além da incorporação da hipnose à prática médica, foram determinantes para o rompimento de Freud com Meynert na volta do primeiro a Viena.

Para um cientista formado no agnosticismo berlinense, a racionalidade de Charcot significou uma ampliação de horizontes para Freud: “Confiando no que via, ele defendia a prática acima da teoria; uma observação que fez em dada ocasião imprimiu-se com ferro ardente na mente de Freud: La théorie, c´est bom, mais ça n´empêche pas d´exister.” (GAY, 1989, p. 62-63).

É claro que essa espécie de trocadilho sugere que, se há coisas que insistem em se mostrar no real mais além dos conceitos científicos, então a teoria não está ainda suficientemente boa; logo, isto não se deve ignorar.

A influência de Charcot na obra de Freud é consagrada, porém aqui se deve questionar de que modo se afirma a inclusão de Charcot como base epistemológica do Projeto. A intenção do

Projeto é claramente fisicalista, isto não excluiria Charcot? Parece que não, pois, apesar de fisicalista, o Projeto não é organicista. Não há referência na Parte II – Psicopatologia a causas orgânicas na histeria de Emma, ou em qualquer psiconeurose. Logo, pode-se afirmar que psicologia científica não significa, para Freud, organicidade, isto é, defeito, doença ou síndrome neurológica como causa da histeria. Esta diferenciação definitiva dos campos foi uma importante herança de Charcot a Freud.

3 O ESTUDO DO PROJETO

No Projeto para uma psicologia científica de 1895, doravante Projeto ou Manuscrito, Sigmund Freud se propõe a formalizar uma doutrina inscrita nas Ciências Naturais, baseada na então recém descoberta teoria neuronal e que teria na mecânica newtoniana seus parâmetros científicos.

Freud almejava uma “base orgânica” (FREUD, 1986, p.327) para as descobertas clínicas oriundas dos atendimentos a pacientes com sintomas neuróticos graves, as quais ele comunicava em ensaios desde 1886.

Porém, à medida que se deparava com a complexidade do objeto que trazia à luz – o

recalcamento, as defesas e o conseqüente funcionamento mental inconsciente – ele renunciou ao Projeto e ao apoio neuronal, e criou um corpo teórico que pode ser avaliado epistemologicamente como tendo seguido o caminho do novo espírito científico, conforme descrito por Bachelard na sua obra de 1934. Isto é, a psicanálise freudiana se inscreve como um movimento científico contemporâneo.

De acordo com Freud, foi no debate entre empiria e “certas idéias abstratas” (FREUD, 1974, v.14, p.137) que a psicanálise se constituiu. Muitos de seus textos dão testemunhos de seu modo de construção ao longo dos anos. O Projeto é um destes textos. Assim, apesar de Freud o ter condenado ao engavetamento, o Manuscrito se constituiu, a posteriori, numa escritura

que testemunha o debate epistemológico interno de Freud durante a construção da hipótese do

Inconsciente.

Esta dissertação busca mostrar que o Projeto foi uma tentativa, que o próprio autor terminou por descartar, de localizar neurologicamente o recalcamento e seus efeitos de defesa - tanto na neurose quanto na psicologia geral - e terminou por se constitui num canteiro de semeadura dos conceitos metapsicológicos propriamente ditos. O conteúdo dos artigos denominados por Freud de Metapsicologia viria a ser o principal objeto de estudo da teoria analítica (Assoun, 1981).