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SOBRE O PAPEL DE FLIESS NA CONSTRUÇÃO DA PSICANÁLISE

1 O NOVO ESPÍRITO CIENTÍFICO E O ESTATUTO DO CONHECIMENTO

2.2 SOBRE O PAPEL DE FLIESS NA CONSTRUÇÃO DA PSICANÁLISE

Afora este legado, o relacionamento entre os dois amigos teve uma função central no momento da criação da psicanálise: era com Fliess, e talvez somente com ele, que Freud debatia suas dúvidas mais secretas, expunha suas fraquezas humanas, detalhava seus sintomas neuróticos, sua angústia e melancolia, e também seus sintomas corporais, principalmente os sintomas cardíacos, que seriam depois compreendidos como “doença cardíaca de ansiedade” (JONES, 1986, p.303).

A razão desta amizade, a personalidade de Fliess, a função que o relacionamento teve na construção inicial do freudismo são tema de vários estudos, entre os quais estes que já foram referidos. Para esta dissertação, no entanto, interessa sublinhar, sobretudo, de que forma Fliess influenciou na formação dos conceitos que aqui serão tratados. Neste sentido, deve-se pontuar que a construção deste saber se deu no espaço de um debate no qual Fliess exigia de Freud uma base científica, uma base biológica, uma base orgânica.

Freud, por sua vez, reconhecia no amigo um homem da ciência. Em 6 de agosto de 1895, quando começava a redigir o Projeto, ele escreve:

[...] creio haver penetrado na compreensão da defesa patológica e, com isto, na de muitos processos psicológicos importantes. Clinicamente, tudo já se havia encaixado há muito tempo, mas só com muito trabalho foi possível chegar às teorias psicológicas de que eu precisava. [...] Ela não está nem perto de ficar pronta, mas ao menos posso falar a respeito e, no tocante a muitos aspectos, valer-me de sua formação científica superior. (FREUD, 1986, p.135).

Três anos mais tarde, na carta do dia 22 de setembro de 1898, quando já havia abandonado a tentativa de localizar neurologicamente o funcionamento do inconsciente, Freud responde a Fliess que não consegue encaixar o psicológico ao orgânico, demonstrando a exigência de apoio fisicalista que o interlocutor teimava em fazer.

Esta exigência provinha de que tanto Freud quanto Fliess tiveram suas formações médicas dentro da mesma mentalidade científica, aquela da escola berlinense de Helmoltz. Segundo Jones (1986, p.294),

A formação científica dos dois era muito semelhante, quase idêntica. Os ensinamentos de física e fisiologia da escola de Helmholtz, que se estenderam de Berlim até Viena, foram os que Fliess também recebeu. O presente de Natal que enviou a Freud em 1898 consistia em dois volumes das conferências de Helmholtz.

Pois era este ideal científico, traço comum entre eles, que sustentou o diálogo durante tanto tempo. E foi no bojo desta amizade e na escritura da Correspondência que Freud produziu o

Projeto para uma psicologia científica, em 1895. A Correspondência e o Projeto estão imbricados, fazem parte do mesmo tecido: a primeira esclarece e complementa o segundo em vários momentos, como se verá.

Também interessa um outro aspecto, que toca a estrutura da constituição do campo psicanalítico, relativo à função desta amizade na origem do freudismo: a hipótese de que a transferência de saber e a transferência amorosa de Freud em relação a Fliess fizeram com que a Correspondência e os encontros entre eles tivessem tido para Freud a função de um

tratamento psicanalítico determinante na construção da psicanálise; o assunto é polêmico.

Dentre os biógrafos, o mais extremado defensor da importância de Fliess na criação da psicanálise é Didier Anzieu. Na análise que empreendeu dos significados e efeitos desta amizade no momento da criação, este autor concluiu que “No hay duda de que el descubrimiento del psicoanálises no habría tenido lugar sin Fliess. (ANZIEU, 1980, p.143)19

A hipótese de Anzieu não pode ser provada e, ao mesmo tempo, não pode ser contestada. Ela é ingênua e apaixonada, na medida em que se pode igualmente afirmar, hipoteticamente, que não há dúvida de que o descobrimento da psicanálise não teria ocorrido sem Breuer, ou sem

Charcot, ou mesmo sem Brücker, e assim por diante. Os partidários da influência da filosofia na psicanálise podem citar as aulas de Brentano, sem falar na literatura e na influência da

interpretação talmúdica. Naturalmente, o freudismo não pode ser atribuído a uma única causa, e todas devem ser devidamente visitadas e aquilatadas de acordo com a pesquisa que se empreende.

Jones, por sua vez, trata a questão da Correspondência de Freud e Fliess com a importância que ela tem, mas de um outro ângulo:

Chegamos aqui à única experiência realmente extraordinária da vida de Freud [...] Para um homem já quase de meia idade, bem casado e com seis filhos, nutrir uma amizade apaixonada por alguém inferior e, durante anos, subordinar seu juízo e opiniões aos deste outro homem – isto é incomum, embora não inteiramente estranho. Mas este homem se libertar seguindo um caminho jamais trilhado por qualquer ser humano, explorando, em uma tarefa heróica, sua própria mente inconsciente – isto é extraordinário no mais alto grau. (JONES, 1989, p.292).

Isto é, para Jones, Freud, através de sua auto-análise, se curou de Fliess, a quem idealizava de forma excessiva e cega. Na avaliação do biógrafo, Freud se sentia à vontade com Fliess: “Assim, afinal, era seguro liberar o daemon, quando guiado por alguém que acreditava na física e atuava com símbolos matemáticos” (JONES, 1989, p.301) Mais adiante, Jones comenta, no entanto, que Fliess foi uma espécie de baliza para Freud numa época em que este estava inseguro dos novos conceitos que a experiência lhe levava a elaborar, principalmente no que tange ao papel da sexualidade na formação do sintoma neurótico.

Tudo indica que a relação de Freud com Fliess foi tão complexa e multifacetada na sua humanidade, que não pode ser resumida a um único aspecto. Sobretudo, o aspecto que mais interessa para o que aqui se estuda é a questão da exigência de cientificidade que um exercia sobre o outro.

Jones esclarece ainda que, após ter suas teorias sexuais da neurose rejeitadas por Breuer e por Meynert, homens de ciência próximos e admirados por Freud, este encontrou em Fliess um correspondente que podia aceitar suas teorias incipientes: “A vantagem mais óbvia era que Fliess, bem longe de rejeitar os problemas sexuais, fizera deles o centro de todo seu trabalho” (JONES, 1989, p.300).

Fliess foi o interlocutor que Freud elegeu, e, por muito tempo, esta relação o ajudou a produzir teoria. É importante observar que Freud tinha conhecimento disto. Na carta do dia 20 de outubro de 1895, em plena redação do Projeto, ele declara: “No entanto, foi só ao tentar expor o assunto a você que todo ele se tornou evidente para mim” (FREUD, 1986, p.147).

Num trabalho mais recente, Freud/Fliess, mito e quimera da auto-análise (1998) o psicanalista Erik Porge combate as idéias de Anzieu sobre a importância de Fliess na auto- análise de Freud, discordando que o primeiro tiveste tido a função de psicanalista para Freud. Porge defende a idéia de que Fliess acenava para Freud a esperança, ou mesmo a certeza, de que ambos estavam, cada um na sua especialidade, construindo um saber científico.

É certo que Fliess o apoiou ao escutá-lo, ao ler seus textos e ao incentivá-lo em seus trabalhos realizados fora das trilhas já batidas. Acima de tudo, porém, ele representou aos olhos de Freud a antecipação de uma figura de sujeito suposto saber nas ciências biológicas. (PORGE, 1998, p.33).

O triângulo – Freud, Fliess, ciência – fica em evidência na Correspondência e são necessários dois comentários: primeiro, a ciência que Fliess demandava de Freud para suas novas pesquisas, a base biológica, era aquela com a qual Freud teve que fazer uma ruptura para desenvolver sua teoria, que viria a ser fundada em terreno totalmente diverso; segundo, foi a tentativa de responder a esta mesma demanda que incentivou Freud a arquitetar o

Projeto para uma Psicologia.

Ainda segundo Porge, a função de Fliess na construção da psicanálise foi que o amigo “[...] permitiu que ele [Freud] ligasse seu desejo de ser analista – que já se exercia no tocante a seus pacientes – à ciência, por intermédio de uma ciência em devir” (PORGE, 1998, p.33).

A exigência de cientificidade em Freud, no entanto, é bem mais complexa e anterior à demanda de Fliess: cindido entre sua formação de neurologista organicista, por um lado, e pela experiência no estágio com Charcot, pelo outro, prática na qual testemunhou os poderes da hipnose e da sugestão, e ainda tendo escrito com Breuer o caso de Anna O., Freud desejou superpor, somar, conciliar: isto não lhe foi possível. Jones defende que

Freud acreditava – de modo muito mais intenso no início, mas sempre, talvez, em algum grau – que a correlação dos processos mentais com os fisiológicos indicava uma semelhança quanto ao modo como ambos funcionavam. [...] ele acalentava a esperança de uma época em que, pela aplicação de conceitos físicos e fisiológicos, como os de energia, tensão, descarga, excitação, etc., a processos mentais, seria possível alcançar uma melhor compreensão de tais processos. (JONES, 1989, p.370).

Há outros motivos pelos quais a Correspondência entre os dois homens interessa para um estudo do Projeto: através das cartas, temos acesso às vacilações epistêmicas de Freud; e também porque, sendo o Projeto um texto estabelecido pelos estudiosos de Freud a partir de

manuscritos, se pode questionar a extensão do texto.

Sobretudo, o principal valor das cartas é que elas são documentos autobiográficos acima de qualquer autoridade; trazem, na letra de Freud, seu pensamento e suas emoções sem a intermediação do comentador e sem a censura do leitor desconhecido: são cartas íntimas. Assim sendo, é lastimável que parte desta correspondência ainda esteja retida.