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Ernst-Wilhelm Von Brücke (1819-1892): uma escola

1 O NOVO ESPÍRITO CIENTÍFICO E O ESTATUTO DO CONHECIMENTO

2.4 AS BASES EPISTÊMICAS DE FREUD NO PROJETO

2.4.1 Ernst-Wilhelm Von Brücke (1819-1892): uma escola

Em 1873, aos 17 anos de idade, Freud ingressou na Escola de Medicina da Universidade de Viena. Já no primeiro semestre von Brücke foi seu professor de fisiologia. No semestre seguinte, mais 28 horas semanais de fisiologia e um seminário semanal de filosofia com Brentano. O quarto semestre o encontrou estudando lógica aristotélica e mais onze horas semanais de fisiologia e outras tantas de zoologia com Carl Claus.

Este padrão de dedicação à fisiologia, à zoologia e às conferências de Brentano repetiu-se ao longo de seus estudos. Em 1876, aos 20 anos, surgiu-lhe a primeira oportunidade de um estágio na Estação Zoológica Experimental de Trieste, Isto é, no laboratório de Carl Claus; durante dois verões, ele recebeu uma bolsa de estudos para pesquisar a existência das gônadas das enguias: encontrou-as. “Trabalho mecânico que, vinte anos mais tarde, julgou vão e insípido; mas serviu como a prova de iniciação ao hábito da ciência especializada [...]” (ASSOUN,1983, p. 115).

Numa carta ao amigo Wilhelm Knöpfmacher, Freud relata a saída do laboratório de zoologia para o de fisiologia nervosa:

Viena, seis de agosto de 1876. Caro amigo,

[...] Durante estas férias passei para outro laboratório, onde estou me preparando para minha verdadeira profissão: “esfolar animais ou torturar seres humanos”, e vejo-me cada vez mais a favor dos primeiros. (FREUD, 1976, p.22).

No retorno de seu segundo verão em Trieste, Freud foi aceito no Instituto de Fisiologia de Brücke, que lhe designou pesquisar o tecido nervoso, a estrutura e função da célula nervosa no sistema nervoso dos animais superiores. Segundo Morel, “Von Brücke representava, com Helmholtz, Du Bois-Reymond e Carl Ludwig, como eles alunos de Müller, a corrente fisiológica antivitalista, mecanicista e organicista, que procurava reduzir os fenômenos da vida e da psicologia a leis físico-químicas” (MOREL, 1997, p.49).

Von Brücke era muito mais do que um emérito pesquisador; ele representava o pensamento científico da Escola de Medicina de Helmholtz, fez parte da fundação e integrava o grupo de cientistas alemães que aplicaram com sucesso a metodologia positivista ao mundo da biologia e fisiologia: a pesquisa e o esclarecimento dos fatos fisiológicos visavam à descrição do funcionamento e dos efeitos das forças físico-químicas.

A fisiologia é, para Brücke, animador da Sociedade Berlinense de Física nos anos 1845, uma extensão da física. Ela tem por objeto sistemas físico- químicos particulares, os organismos, dotados de propriedades especiais, como a faculdade de assimilação; [...] o fisiólogo não é outro senão o físico dos organismos. Aquilo que une estes campos é o princípio de conservação de energia, em virtude do qual a soma das forças permanece constante em todo sistema isolado. (ASSOUN, 1983, p.116).

Freud trabalhou durante seis anos nesse lugar. Sua formação e prática profissionais eram muito mais a de um cientista pesquisador do que a de um médico clínico. Porém ele nunca abandonou a atitude científica lá adquirida, mesmo quando fundava um outro campo epistêmico, através de outra metodologia que formalizou um objeto novo no campo do saber.

A importância de Brücke envolve também uma herança epistêmica que se conserva na estrutura do novo objeto freudiano. De que forma? Segundo Jones, a relação com a ciência herdada do fisiologista alemão foi anterior a Charcot e mesmo a Breuer: “[...] pode-se mostrar

que os princípios a partir dos quais construiu suas teorias foram aqueles que adquiriu como estudante de medicina sob a influência de Brücke.” (JONES, 1989, p.57).

É importante adicionar, no entanto, que, ao se acompanhar, através da Correspondência, o processo de construção e abandono do Projeto, fica evidente que lhe custou enorme trabalho físico e intelectual, além de muito desgaste emocional, chegar ao ponto de abrir mão do cientificidade que o fisicalismo oferecia.

Jones descreve que o grupo de cientistas no qual Brücke era um dos expoentes acreditava que nos organismos só havia forças físico-químicas comuns, e que apenas o método físico- matemático poderia explicá-las. Isto pressupunha “forças químico-físicas inerentes à matéria, redutíveis à força de atração e repulsão”. (JONES, 1989 p.53).

Os fenômenos do mundo físico atingem os organismos com sua força; e são absorvidos ou expelidos de acordo com o princípio de conservação de energia. Nos seus escritos, Brücke esclarece que estas forças interagem entre si, ou se combinam, ou se inibem, ou se conciliam. “Somente as energias físicas causam efeitos – de alguma forma” (JONES, 1989, p.54).

O positivismo médico divulgado pelo fisiologista era materialista: “[...] todos os fenômenos naturais, sustentava Brücke, são fenômenos do movimento” (GAY, 1989, p.49). Não há lugar para misticismo ou religiosidade ou qualquer espiritualismo nesta racionalidade:

A emancipação desta influência consistiu não em renunciar aos princípios, mas em se tornar capaz de aplicá-los empiricamente aos fenômenos mentais, prescindindo de qualquer base anatômica. Isto lhe custou uma dura luta, mas seu verdadeiro gênio consistiu sempre em emergir com êxito de duras lutas. (JONES, 1989, p.57)

Tanto Jones quanto Assoun creditam ao espírito da escola de Brücke a capacidade de observação, a positividade, a “frieza lúcida” (ASSOUN, 1983, p.128) de Freud nas observações clínicas. É imperativo, deste modo, localizar a forma de influência epistêmica do ensino de Brücke no exercício da psicologia científica almejada por Freud no Projeto. Assoun propõe que se trata “[...] de nos esclarecermos sobre a autonomia ou a heteronomia da

identidade epistemológica freudiana [...] e que detectemos atentamente a fenda que perturba esta filiação” (ASSOUN,1983, p.119).

Ora, o Projeto é o lugar da fenda: as hipóteses fisicalistas abandonadas por Freud no ato de engavetamento deste trabalho revelam que os ensinamentos da escola berlinense não

encontrariam aplicação direta ao novo objeto que Freud vislumbrara no seu trabalho com as neuropsicoses de defesa. No entanto, atribui-se ao fisiologista o rigor científico e o imperativo da localização do fenômeno que guiou Freud na descrição do topos do recalcamento, isto é, a tópica do Inconsciente.

Assoun (1983) aponta três características da escola germânica de fisiologia que tiveram importância no modo de investigação de Freud: a base anatômica, a relação dos eventos com a teoria genética e a exigência do aprimoramento da técnica de investigação. Saltam aos sentidos estas exigências no texto do Projeto: a base neuronal sobre a qual Freud lança sua construção, as teorias da evolução dos tecidos embrionários e a teoria da adaptação darwiniana, e, no procedimento heurístico, a construção lógica a partir de princípios gerais e de postulados, rendendo um texto cuja lógica interna cria um saber que Freud denomina

científico.

Rodrigué (1995) esclarece que, em 1880, Du-Bois-Raymond, um dos fundadores do grupo de cientistas positivistas do qual Brücke fez parte, proferiu uma palestra denominada Sete

enigmas do mundo, os quais a ciência ignora e nunca poderá conhecer: “ Nós ignoramibus: A origem do movimento. 2. O surgimento da vida. 3. A ordenação finalista da natureza. 4. O surgimento da sensibilidade. 5. A origem da consciência. 6. O pensamento racional. 7. A origem da linguagem” (RODRIGUÉ, 1995, v.1, p.144).

Este manifesto deixa transparecer, por um lado, que Du-Bois-Raymond tem a convicção, própria da racionalidade científica, de que é impossível que a ciência cubra todo o campo do saber; por outro lado, transparece que ele acreditava que o saber de sua época já havia atingido o limite do cognoscível. Quando Freud vai a Paris em 1885, suas convicções agnoticistas sofrerão um grande abalo.