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3 TEMPO DE LIBERDADE: OCUPAÇÃO DAS TERRAS NO NORTE GOIANO

4.2 A chegada à “rua” e a conversão em peão

A família Marujada é um caso que expressa bem as situações vividas pelos camponeses nessa região no início da década de 80, quando os fazendeiros começaram a colocar fim à concessão de terras e passaram a utilizar, de forma crescente, apenas a força de trabalho dos peões. O relato de Antonio Marujada é significativo:

Quando nós viemos pra aí [fazenda...], ele [o fazendeiro] aceitou nós derrubar roça, nós tinha nossa casa já de morada, fizemos nossa casa dentro do lote dele, da fazenda dele, aí ele deu apoio. Depois de casado, quando tava com quatro anos que todo mundo já tava assim bem acomodado... bem tranquilo... ele falou assim: “De hoje pra frente não derrubo mais um pé de pau aqui dentro!”. Pra não dizer “Não quero mais vocês”. Ele falou: “Agora não quero mais roça, num vou mais derrubar”. Aí, os meninos foi saindo assim, pra trabalhar fora. Nós percebeu que ele tava mandando nós pra fora, foi a época que nós ia tentar levar ele na justiça, porque nós tinha nossos direitos, né?! Aí, meu pai falou assim: “Meninos, num mexa com isso não! Vou pedir um acordo”. Vocês num mexa com isso, não! Aí, nós deixamos.

Trabalhei 16 anos na fazenda dele [Dorival Cardoso],95 onde hoje é o

assentamento Mata Azul (2015, entrevista)

Marcos Marujada (36) expõe outros pontos dos relatos do tio e sua memória sobre a condição do pai no trabalho na peonagem:

De 82 pra frente, a prática dele [o pai] era essa: de viver trabalhando nas fazendas dos outros. A gente foi pra Colinas morar eu tinha uns 5 anos. Nós morávamos em Colinas, meu pai deixou a família lá na cidade, de forma assim… bem singela e continuou trabalhando nas fazendas dos outros; mas com a família numa casinha singela lá na rua [...] bastante rústica né! Num setor mais pobre da cidade de Colinas, na Vila São João, acho que até hoje ainda é. Ele [o pai] continuou trabalhando nas fazendas dos outros e a família na cidade, porque ele não achou mais espaço para trabalhar de agregado. Ficava um mês trabalhando, voltava lá na família, fazia uma feira de alimentos pra deixar pra gente e voltava para o campo de novo. Essa situação foi se agravando mais ainda, as fazendas começaram a ter muitas formas, muitos pastos, já não tinha mais tanta mata, aí começou a trabalhar não mais de fazer roça, mas de roçar pasto, roçar juquira pros outros. Naquele tempo, tinha muito a questão do “gato”, que pegava serviço nas fazendas e contratava os peões. Ele, na verdade, fazia esse papel de peão. Ele pegava, às vezes, 50 reais, “Vamos trabalhar na fazenda xis”. Aí, quando chegava lá, não sabia nem como era o serviço, chegava lá achando que voltava com uns 15 dias, ficava até um mês trabalhando, [por]que tinha que pagar aquele dinheiro que pegou do “gato”. Quando ele voltava, não tinha mais nada em casa, a gente já tava há semanas, se almoçava arroz puro, não podia fazer a janta porque não dava para aguentar a semana. Se nós tinha cinco quilos de arroz, a mãe deduzia que era uma comida por dia. É aquela coisa... “Ô, pai, não tem nada dentro de casa, não tem nada pra levar aos filhos” e ele sai pra rua, naqueles pontos onde ficavam os “gatos”, né?!, querendo contratar peão, abonando ele. Era uma forma de garantir a mão de obra dele lá no roço da juquira do fazendeiro. Tipo assim... ele, o “gato”, chega lá nos pontos e falava: “Olha tô com um serviço acolá, você não quer trabalhar pra mim, não? Quero! Mas eu tô precisando do dinheiro pra fazer umas compras pra deixar pra minha família”. Aí o “gato” fazia isso. Vale lembrar que, se por acaso o peão fosse solteiro [e falasse], “Não quero abono, eu não preciso!”. Mas era tipo obrigação: “Olha, você tem que pegar abono, sem abono eu não levo!”. Era uma forma de garantir que o cara ia e que saía de lá quando pagasse. Então era assim, eles não queriam aceitar se tu não fosse com o abono. E se você botasse o dinheiro no bolso, ou colocasse na boroca, se chegasse lá na fazenda e o serviço fosse muito ruim, muito barato, falasse: “Ó, tá aqui teu dinheiro, ele não recebia, ele não pegava de volta, ele dizia: “Eu não te emprestei dinheiro, eu dei o dinheiro pra você fazer o meu serviço”. Dessa forma que acontecia: ele ficava refém do “gato”. Foi anos bem difíceis na vida da gente! Eu já era um pouquinho maior, já via o desespero do pai de manter o alimento da família. isso traz lembranças desagradáveis na vida da gente. Gostaria de enfatizar que tenho o meu pai como grande herói, porque ele, vivendo essa situação todinha de

95 Fazendeiro do sul de Goiás, tio do ex-governador Sandoval Lôbo Cardoso e fazendeiro pecuarista que

assumiu, por eleição indireta, a gestão do Tocantins entre maio de 2014 e janeiro de 2015, o ex-governador Sandoval Cardoso foi acusado, pela Polícia Federal, de fraude em licitações públicas e execução de contratos administrativos (ESTADÃO, 2016).

escravo de “gato”, trabalhar nas fazendas dos outros, ele nunca desistiu da gente, da família. Isso ele nos ensinou muito nessa atitude dele. Quando a gente tava dentro de casa sem nada pra comer, meu pai passava a mão na cabeça, e a gente via o desespero dele e da minha mãe. Ele saía pra rua e falava que ia dar um jeito. Falava assim: “Não importa pra qual fazenda eu vou”. Não importa se era pasto ou se era juquira, que serviço braçal que é. Ele estava disposto a isso para garantir o abono, para garantir o alimento da família. Eu observava aquilo, quando meu pai ia pra rua, ele chegava onze horas, meio-dia. eu ficava observando assim na rua, se meu pai trouxesse na mão uma sacola, eu sabia que ele — eu aprendi isso —, eu sabia que ele tinha pegado o serviço e naquele dia nós teríamos um almoço decente. Dói da gente lembrar disso, tá entendendo?... Dói da gente lembrar disso! [Lágrimas] Porque foram momentos que marcou muito a minha vida. Só que nisso tudo eu sempre procurei tirar pontos bons, essa atitude do meu pai é louvável, ele podia muito bem falar assim: “Vou largar minha família... abandonar, não tô preparado pra isso, não!”. Mas ele não fez isso, não. Ele pegava o dinheiro, ia fazer o serviço, com marimbondo, cobra... seja o que for, mas ele ia. Quando ele chegava, a situação já tava do mesmo jeito ou pior. Aí ele fazia a mesma coisa. Essa rotina dele foi anos e anos. Então isso me marcou. Chegou [a passar fome]... quantas vezes não fui para Colinas pedir! Naquele tempo existia as cerealistas que beneficiava arroz, nessa época a região de Colinas produzia muito arroz. Mas é aquela coisa, produzia porque o fazendeiro queria derrubar a mata para poder fazer pastagem, aí aproveitava aquela ocasião e plantavam. Claro que quem fazia isso eram os peões nas fazendas. Aí a gente ia naquela máquina pedir arroz, quantas vezes não cheguei numa cerealista e pedia: “Você poderia me dar um pouquinho de arroz? [...] a gente também pedia naqueles açougues, ossada, né!? O pessoal descarnava e ficava aquela ossada. Vergonha? Quando você ‘tá com fome, você não tem vergonha, não! A gente, eu, minha irmã, vizinhos que a situação era a mesma, a gente ia, um ia dando coragem pro outro. [...] Se mãe sabia? Sabia... mas ela fazia vista grossa. A gente costumava ter essa prática quando o pai tava pra fazenda, dentro de um mês o pai ficava quatro dias, quando ele tava em casa, a gente não fazia isso, não! Quando nós chegávamos com aquilo que a gente tinha ganhado, ela [a mãe] fazia o almoço pra gente se alimentar. Acho que minha mãe falava para ele, acho! Mas acredito hoje que isso mexia com o orgulho dele (2015, entrevista)

Um dos dilemas no uso da História Oral como método apontados por Thomson, Frisch e Hamilton (2006, p. 70) são os meios empregados para estimular as pessoas a recordar seu passado como história de vida. Apesar de gratificantes para o entrevistador, pode ser perturbador para o entrevistado trazer à tona sentimentos e sensações que lhes constrangem e fazem sofrer. Aqui, a reprodução das falas passa ao largo da intenção de expor os interlocutores a situações de vergonha ou vexame público. O uso de passagens de suas falas visa expor situações íntimas que marcaram duas gerações da família Marujada — pais, filhos, irmãos, sobrinhos — pelo valor histórico de seus relatos como forma de objetivar a profundidade da expropriação e o nível de violência do sistema de peonagem no antigo norte goiano. São “marcas duradouras”, “feridas abertas que não passam” (THOMSON, FRISCH E

HAMILTON, 2006) enraizadas na memória de quem foi impelido a se tornar escravo de “gato” nas fazendas de gado. Seus relatos contêm a intenção de reconhecer e valorizar as histórias de vida e as experiências dolorosas silenciadas. Isso contribui muito para captar os processos de desagregação do modo de vida camponês e de proletarização das famílias após o fechamento do sistema de morada e a conversão dos camponeses em trabalhadores temporários, como peões de fazendas pecuaristas.

Cabe ressaltar que o regime de peonagem teve duas fases distintas na região: 1960–80, que é a fase de implantação das fazendas, como abordado na seção anterior; as frentes pioneiras demandaram muitos trabalhadores, o que estimulou a migração de uma maioria de filhos solteiros de agricultores pobres que saíam da casa paterna, muitas vezes, para escapar ao controle dos pais ou atraídos pela possibilidade de “ganhar melhor” (MARTINS, 2009). Eram recrutados por “gatos” ou migravam por conta própria em busca de trabalho na derrubada da mata e formação de pastagem na condição de peão.

Conforme relatos, na fase dos empreendimentos agropecuários, o sistema de peonagem abrigava regimes de trabalho diferentes nas propriedades. A posição do trabalhador estava relacionada com seu status social: se solteiro, era denominado peão; se casado, morador. Em geral, eram famílias de ex-posseiros que tiveram suas terras usurpadas pelos fazendeiros e foram utilizadas pelos grandes proprietários para formar a fazenda, ou seja, transformadas em agregados, arrendatários ou meeiros. Também havia famílias que vieram para a região na expectativa de obter um pedaço de chão e, sem consegui-lo, tornaram-se trabalhadores residentes nas grandes propriedades. Os peões solteiros trabalhavam por empreita ou se juntavam a uma turma de homens casados para plantar roça em troca da formação do pasto. Ao final da colheita, recebiam a sua parte na produção.

No segundo momento, após a etapa de formação da pastagem, a fazendas já não demandava tanta força de trabalho; ou seja, exigia uns poucos trabalhadores permanentes para manejar o gado. Logo os fazendeiros foram substituindo os moradores por trabalhadores temporários, ainda no sistema de peonagem como forma de trabalho para manutenção da fazenda.

Martins (1981), à luz dos estudos de Jean Hebete e Rosa Marin (1979) sobre cálculos da capacidade de empregos gerados pelas fazendas de gado na Amazônia — uma nova fazenda geraria um único emprego para cada 788 hectares —, analisa que a cada oito famílias expulsas uma só poderia ser empregada na fazenda; isso se não tivesse filhos adultos, pois estes não seriam empregados, assim como as outras sete famílias. Essa característica do sistema de criação de gado extensivo dá mais autonomia ao fazendeiro relativamente à imensa

massa de trabalhadores “liberados” à medida que as fazendas se consolidavam. Ampliou-se o poder de pressão dos fazendeiros sobre o uso da força de trabalho dos peões. Eram tais as condições aviltantes a que tinham de se submeterem, que eram tratados como coisa, como seres descartáveis após ter seu trabalho sobre-explorado. Essa situação era potencializada pela oferta incipiente de emprego no setor urbano da região norte-goiana (MARTINS, 2009; ESTERCI, 1994).

Há singularidades entre a peonagem e os sistema de morada (SYGAUD, 1979; GARCIA JÚNIOR, 1989) e colonato (STOLKE, 1993) no que se refere ao fim da morada, que marca a expansão da legislação trabalhista para os trabalhadores rurais: criação do Estatuto do Trabalhador Rural (1963) e do Estatuto Rural, impulsionada pela fundação de sindicatos e pelo início da expulsão de moradores, meio efetivo que fazendeiros encontraram para burlar obrigações trabalhistas ao contratar trabalhadores temporários e extrair, ao máximo, o excedente de trabalho. Mesmo longe de vigorarem no sertão goiano os dispositivos legais de amparo ao trabalhador rural — direito de usucapião, férias, décimo- terceiro salário, repouso remunerado, criados ainda na década de 60 —, os fazendeiros não queriam correr o risco de, futuramente, ter de dividir a terra ou indenizar os expropriados. Daí a expulsão de famílias moradoras de suas terras. Os trabalhadores retornam à fazenda, mas, na condição de peão para serviços de manutenção.

A peonagem configura um mecanismo de extração do sobretrabalho que, muitas vezes, vai além do limite determinado pela reprodução da força de trabalho, a ponto de comprometer a sobrevivência do trabalhador na região amazônica. É tênue a linha entre a superexploração dessa a força de trabalho e a escravidão (MARTINS, 2009). Apesar de condições tais, nem todos os peões se tornam escravos, assim como nem sempre todos os trabalhadores se percebem inseridos em um regime no qual podem se reconhecer como servis — afirma Martins. As condições de trabalho são semelhantes às que conhecem habitualmente. Desse modo, “[...] a condição de escravo emerge à consciência do trabalhador quando ele se dá conta que não tem liberdade de deixar a fazenda, mesmo abrindo mão de qualquer ganho, pois está endividado” (p. 93).

As estratégias dos proprietários para reduzir o custo capital variável (despesa com a força de trabalho) na produção das fazendas estavam orientadas pelas formas coercitivas extremadas de exploração do trabalhador (MARTINS, 2009). Absenteístas, mas beneficiários da situação, os fazendeiros terceirizaram o trabalho aos “gatos” ou empreiteiros, que implementaram o sistema de dominação pessoal e violenta, recriando relações laborais servis em contexto de relações de trabalho livre e contratual com a complacência do Estado. Na

economia pecuarista, após a formação da pastagem, havia a reserva de braços disponíveis aos domínios dos fazendeiros, uma vez que a demanda por trabalhadores tinha tempo de duração na fase de abertura de fazendas para derrubada da mata. Esse período podia prosseguir por meses ou anos numa mesma fazenda, tal era a extensão das propriedades. Como informa Antônio Marujada, “[Havia] muita gente! Era derrubada de 120 alqueires, de 100, de 60, de 50, outros de 40 e outros de 4 e 5 alqueires, que nós [a família] derrubava. Só a mata pura. Tinha época que tinha 300 peão trabalhando aí, pra formar tudo. Era desse jeito”.

A penetração do capital no campo como vinha ocorrendo em outras regiões se deu em um processo gradativo. No antigo norte goiano e na Amazônia em geral, sua chegada foi rápida, maciça, orientada à atividade agropecuária, conduzida e controlada pelos governos militares. Foram expulsos milhares de camponeses de suas terras de trabalho; dispersaram-se nas cidades da região e tiveram de refazer suas estratégias de reprodução, tornando-se sujeitos aos proprietários segundo arranjos de trabalho variados, mas sempre submetidos à peonagem.

O sistema de peonagem coexistia com outras dinâmicas de trabalho. A morada foi extinta ao longo do processo da formação da fazenda. Houve casos, raros, de o fazendeiro permitir à família permanecer na propriedade. Mas eram exceções mediadas pela relação de confiança entre estes agentes definida por relações anteriores nesse espaço social. O direito ao uso do chão para morar e plantar roça era somente de famílias que não representavam ameaça ao fazendeiro — abrir processo legal contra ele.

A família de Benedita Soares permaneceu como agregada por quase duas décadas, oscilando entre as fazendas de antigos vizinhos de posses (posseiros grandes) ou trabalhando para fazendeiros que usurparam suas terras no início da década de 70. A família saiu do domínio pessoal dos fazendeiros só quando conseguiu o lote no assentamento Juari, em 1988. Na percepção de Edison Soares (35anos), filho de dona Benedita, essa concessão à sua família não foi porque o fazendeiro era “bom patrão”, mas talvez porque “[...] queria pagar o mau que ele tinha feito para a família” (2015, entrevista).

Com a consolidação do empreendimento agropecuário, havia outros tipos sociais de força de trabalho que não a dos peões: eram os trabalhadores temporários, que não moravam mais na propriedade, mas estavam no trabalho de roçar pasto, na construção de cerca, em concertos de barracão. Eram pagos em dinheiro, por empreitas e diárias. Havia também trabalhadores permanentes ou fichados (vaqueiro e gerente), que tinham uma situação mais estável em relação aos peões, pois o trabalho exigia que morassem na

propriedade. O gerente era responsável pela propriedade e administração dos trabalhadores na ausência dos donos, cuja maioria não residia na região.

Empregado contratado o ano todo, mas sem direitos trabalhistas, o vaqueiro recebia o salário mensal, pelo qual lhe cabia cuidar do gado. Quando solteiro, morava no barracão da fazenda, onde eram guardados os apetrechos de uso no manejo do gado (cela, arreios, laços, ferretes etc.). Alimentava-se na cantina da fazenda, onde havia uma cozinheira responsável contratada para cuidar da alimentação dos trabalhadores solteiros da fazenda, em geral era esposa ou filha de peão ou vaqueiro.

Em relação aos vaqueiros solteiros e aos peões os vaqueiros casados tinham posições relativamente melhores no espaço social da fazenda. A eles era oferecida uma casa feita, em geral, de tábua, cimento e telha, com quatro cômodos, onde podiam se instalar com a família. A casa ficava em locais distantes da sede da fazenda; eram, áreas nomeadas de retiro, no qual ficava o gado a ser cuidado nos vários espaços da fazenda. Cada retiro tinha uma turma de vaqueiros. Conforme o acordado com o fazendeiro, era permitido que criassem porcos e galinhas no quintal, a fim de suprir demandas da família ou ser usados como poupança para eventualidades como doenças e desemprego.

Segundo Moura (1988b), a condição do vaqueiro traz certa especialização da relação de trabalho nos contornos das fazendas de gado que se distingue da dos peões. A profissão requer morar na fazenda; mas morar não tem mais o sentido da “gratuidade” da morada, com direito ao uso do solo. Quando muito, dá acesso a outros dons ou a outro modo de “generosidade” dos fazendeiros. “As condições mais especializadas e relativamente melhor remuneradas do vaqueiro e o escasso número de indivíduos e famílias que delas se beneficiam criam uma espécie de privilegio entre os demais lavradores” (p. 9). A situação da família de Raimundo Lima (66) é exemplo dessa diferenciação relativa dos vaqueiros em relação aos trabalhadores que se tornaram sujeitos à posição de peão e proletarizados nas cidades da região após a usurpação de sua terra, na década de 70. Ele se tornou agregado e meeiro por longos anos; mas, com a supressão da relação de agregado, passou a ser vaqueiro e a morar com a família em fazendas no município de Pequizeiro por mais dez anos, até a conquista do lote no assentamento Progresso. No período de ocupação da fazenda, em meados dos anos 90, trabalhava de vaqueiro.

Com o fim da concessão de terras para plantar roças, as centenas de famílias foram mandados para fora das fazendas, somando-se aos trabalhadores temporários nas periferias das cidades do entorno, onde ficaram sujeitos ao único trabalho disponível: tornar-se peão. A conversão dos agregados em peões modificou o modo de vida das

famílias. Foi o fim do acesso à casa e à terra, da apropriação do produto do trabalho familiar e do controle das decisões sobre o tempo e ritmo do trabalho do grupo doméstico. Também representou a desagregação e o enfraquecimento das possibilidades materiais e simbólicas de apreensão das estruturas básicas da condição camponesa. As consequências das alterações no regime de trabalho em curto prazo foram o aumento da população urbana nos municípios da região, a “descamponeização” das comunidades rurais e a proletarização extrema das famílias. Atingiram a segurança alimentar e puseram em risco a reprodução física dos membros.

A história da fazenda por si é uma história de tragédia e violência. Em primeiro lugar, a primeira violência contra o posseiro; depois, contra o peão (MARTINS, 1981, p. 121). No caso do norte goiano, os camponeses foram duplamente vítimas do