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3 TEMPO DE LIBERDADE: OCUPAÇÃO DAS TERRAS NO NORTE GOIANO

5.1 Legitimação da dominação latifundiário-agropecuária

A “naturalização” das relações de dominação dos latifundiários agropecuaristas no norte goiano — espaço marcado socio-historicamente pelas distribuições assimétricas de poder e capitais (BOURDIEU, 2011; 2013) — econômico, político, social, educacional — foi determinada por dois fatores. Um fator foi o processo de expropriação violenta de terras camponesas ancorado em políticas desenvolvimentistas e práticas de repressão dos governos militares para inibir

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Entenda-se disposição como um “devir”, “resultado de ação organizadora”, categoria similar à do sentido da palavra como estrutura e amiúde como “predisposição”, “propensão”, “inclinação” (BOURDIEU, 1983, p. 61).

organizações populares e insurreições campesinas contra a expropriação; outro foi a inexistência de instâncias representativas do Estado objetivadas em organismos jurídico-administrativos para suprir as demandas sociais da população. Eram condições perfeitas para superexplorar trabalhadores, com violência aguda nas práticas de dominação da força de trabalho.

A história agrária brasileira demonstra que o “senhor de terra”, além de arbítrio absoluto no enclave da propriedade — gerida sob direitos próprios e na maioria das vezes ilegalmente —, torna-se senhor de consciências e pessoas. Donos de extensões de terra e detendo poder extraordinário sobre o trabalho e o corpo do trabalhador, os latifundiários da Amazônia revitalizaram as relações arcaicas de dominação, repressão e violência típicas da dominação patrimonial (MARTINS, 2009). No espaço da fronteira, onde “[...] os limites do permitido e do não-permitido são mais flexíveis” (FIGUEIRA, 2004, p.73), os empresários rurais e fazendeiros agropecuarista — a maioria absenteísta — serviram-se de práticas coercitivas e servis nas relações de trabalho no sistema de peonagem; em muitas situações, delegavam a execução de tais práticas a representantes locais, dentre administradores, empreiteiros (“gatos”) e pistoleiros.

Convém ressaltar que o trabalho escravo não está circunscrito a um tempo específico ou espaço geográfico; é uma prática que persiste e se expande para outras regiões e atividades, tais como a construção civil e a indústria de confecções. Mas é nas atividades agropecuárias que tais práticas resistem com mais incidência: 28,8% na pecuária, 26,4% no cultivo de cana-de-açúcar e 19,5% em outras lavouras (PLASSAT/CPT, 2013). Martins (2009, p. 74) analisa que o trabalho escravo — ou a escravidão por dívida — não deve ser adjetivado eufemisticamente como “repressão da força de trabalho” ou “imobilização da força de trabalho”; antes, tem de ser compreendido como trabalho sob coação; ou seja, “[...] como formas coercitivas extremadas de exploração do trabalhado [...]” empregadas para acumulação primitiva no interior do processo global de reprodução do capital (grifo do autor). No contexto da expansão capitalista na região amazônica, os latifundiários agropecuaristas não só detinham o poder econômico, como também buscavam ampliar seus espaços de poder para outras esferas. Expandiam seus domínios para a ação política governamental em nível estadual, nacional e local, apoiando ou candidatando-se a governo municipal, influenciando nas ações da justiça e da polícia contra os trabalhadores. O campo da política é campo de poder; é estratégia que permite acesso a financiamentos e projetos; permite desobedecer às leis com manobras jurídicas para falsear formas exacerbadas de exploração da força de trabalho e de violência contra camponeses e trabalhadores rurais. Dada a proporção, tais atitudes culminaram na escravidão por dívida a que foram submetidos milhares de campesinos pobres e proletarizados.

Submeter os peões à superexploração do trabalho foi — e é — estratégia dos fazendeiros agropecuaristas empregada em larga escala na frente pioneira. Ajuda a garantir o retorno do capital investido, a apropriação da terra — muitas vezes pilhada dos campesinos —, os subsídios e os financiamentos do Estado via Superintendência Desenvolvimento Amazônia (SUDAM) e Banco da Amazônia (BASA). Gastos monetários no desflorestamento da fronteira agropecuária e na formação de propriedades eram baixíssimos. Tornavam o empreendimento em algo muito lucrativo.

Esse expediente de maximização da extração do “sobretrabalho” mediante aprisionamento de trabalhadores por dívida nas fazendas agropecuaristas só se tornou possível por conta da negligência, do desinteresse e da conivência articulada entre políticos, justiça e polícia, os quais mantinham relações de amizade e interesses com os fazendeiros.

Martins, em seu prefácio ao livro Trabalho escravo — um elo da cadeia da modernização no Brasil (1994), faz uma crítica contundente — e atual — à omissão do Estado ante a situação de desamparo legal em que as populações pobres da Amazônia conviviam e convivem:

[...] um aterrador quadro de fragilidade judicial e moral dos trabalhadores pobres da Amazônia, de omissão deliberada de quem deveria zelar pelos direitos das pessoas, de desmoralização das instituições e das autoridades, que têm mandato público de assegurar, a impessoalidade da lei e a igualdade dos cidadãos. Mesmo na fictícia vigência da lei e da igualdade jurídica, o Brasil é hoje desgraçadamente, um país não só de desigualdades econômicas escandalosas, não só mas também de desigualdades jurídicas e sociais reais. Porque a autoridade relapsa que teme cumprir seu dever de assegurar que ninguém deixará de ser tratado como pessoa e que ninguém será tratado como coisa contribui efetivamente para anular os direitos que os legisladores, por mandato popular, reconheceram como legítimos de todos e de cada um. Como os anula arbitrariamente o arbítrio e magistrado que, para favorecer amigos, cúmplices e protegidos, e a pretexto de cumprir a lei, escamoteia esta em detrimento de direitos sagrados que a sociedade por consenso tácito, concedeu até à pessoa mais humilde de remotas regiões do país .

Sob o controle de governos militares, parceiros dos empresários nacionais e internacionais, o Estado negou ou ignorou a condição de escravo, ou seja, corroborou a exploração e servidão de milhares de trabalhadores livres. Numerosos foram os casos de denúncia de trabalho escravo ou escravidão por dívida, sobretudo entre anos 70 e 90, no sul do Pará, norte do Mato grosso, sul do Maranhão e, em menor proporção, em Goiás. Conforme Figueira (1999), os registros dos arquivos da CPT de Conceição do Araguaia apresentam que, entre 1969 e1997, ocorreram 185 denúncias de trabalho escravo em 117 propriedades, de trabalhadores contratados em onze estados. Além dos já citados, incluíam Bahia, Piauí, Ceará, Pernambuco, Minas Gerais e

Paraná. O maior número de pessoas era recrutado no Maranhão e Tocantins.98 Conforme Girardi (2008), dados do Ministério do Trabalho Emprego e CPT (2012) de 1996 2006 apontam que MA (8%) e TO (7%) estavam entre os quatro primeiros no ranking dos estados com maior incidência de trabalho escravo. Ficavam atrás do Pará (48%) e Mato Grosso (15%).

O fenômeno da escravidão contemporânea estudado por Esterci (1999), Martins (2009), Vilela e Cunha (1999), Figueira (2004), Girardi (2008) apontam que a reincidência desses estados com envolvimento de trabalho escravo é indissociável da pobreza, do desemprego rural e da concentração de terra na região de origem. Estes são entraves ao desenvolvimento das potencialidades produtivas dos trabalhadores. Impelem-nos a migrar em busca de alternativas de trabalho e renda para sustentar a família. Além disso, fatores como escolaridade e formação profissional levam à contratação em serviços braçais e áreas nas quais os camponeses se tornam mais vulneráveis ao aliciamento, mais sujeitos à condição de trabalhadores escravizados.

Os estudos sobre trabalho escravo contemporâneo permitem entender práticas recorrentes dos agropecuaristas e empresários rurais para manter mecanismos de poder e dominação na estrutura social. Revelam tensões e limites a que foram submetidas as classes subalternas. Capturam as possibilidades reais de mobilizações campesinas para lutar pela sua reprodução social.

Nessa conjuntura política e econômica de relações de troca de favor e apoio do governo a empresários agropecuaristas (beneficiários da política de Estado que lhe confiou o papel de “desenvolver” a região, que lhes deixou livres para inserir as relações contratuais no jogo do mercado e se exonerarem de responsabilidades derivadas desse sistema injusto e violento), estavam inseridos os camponeses “descamponeizados” ou proletarizados do sertão goiano, convivendo com a dominação material e simbólica, dispersa nas práticas de sujeição por dívida. Em um universo social marcado pela dominação, violência e coerção das classes subalternas, por desigualdades sociais e por descaso do Estado com as necessidades da população, o que restava aos camponeses? Como romper com limites impostos pelos latifundiários na relação de sujeição da força de trabalho constituída pelo monopólio da terra e pelo flagelo da fome no espaço agrário do antigo norte goiano?

“Relações de forças objetivas” e “aspirações subjetivas” — diria Bourdieu (2002b, 1983) — contribuíram para a apreensão do mundo social e tomada de posição dos camponeses visando escapar das formas repulsivas de trabalho e exploração após a chegada do capital agrário e a alteração na ordem social da estrutura agrária da região. Bourdieu (1983; 2007; 2011) argumenta que a percepção do mundo social implica o poder de apreender

98 Dados de Figueira (2004) sobre a escravidão por dívida no Brasil expõem o caso de peão de 17 anos de idade que, residente em Colinas do Tocantins, foi aliciado por “gatos” do Pará em 1997 e envolvido em relações de trabalho escravo na fazenda Flor da Mata, sul paraense. Após presenciar tortura de criança de 10 anos de idade, fugiu. O caso está relatado no livro Trabalho escravo no Brasil contemporâneo (1999).

esquemas de percepção e apreciação via sentidos corpóreos e mentais e conforme a posição ocupada na estrutura social, que permite perceber, pensar e agir visando transformá-la ou conservá-la. Dito de outra forma, a luta política — a passagem de uma “classe no papel” para uma classe mobilizada — requer tempo para maturar as condições objetivas, compreender o jogo social que se desenrola e a posição nele ocupada e permitir aos indivíduos ou grupos construir pontos de vistas e estratégias para manter ou transformar o espaço social.

Perante o quadro que se delineia — de opressão, subjugação e proletarização a que foram submetidos —, os camponeses aceitaram, a princípio, a “ordem das coisas”. Lutar contra a expropriação e exploração seria a batalha inglória da “formiga contra o novilho” — diria dona Benedita Soares Santos. A região ainda estava sob domínio militar, tutelando ações de proprietários com a repressão violenta de forças sociais favoráveis ao direito ao aceso a terra. A fala dela alude à expansão da pecuária bovina em suas terras de trabalho e expressa o conhecimento prático ou senso prático (BOURDIEU, 2011) dos camponeses sobre sua posição ocupada na estrutura social e as condutas necessárias para sobreviver nesse espaço agrário.

Os camponeses ansiavam pelo chão. Mas o receio das práticas violentas de repressão dos fazendeiros mediadas pela ação de pistoleiros e polícia enrijecia-os, inibia as possibilidades de estratégia para garantir o acesso a terra, tão necessário à sobrevivência da família. Eram necessárias condições sociais objetivas que engendrassem as possibilidades de mudança de percepção e as práticas campesinas para empenhar probabilidades reais de sucesso nas empreitadas de lutar.

As transformações políticas e sociais que ocorreram no Brasil em meados dos anos 80 — após o fim o governo militar e o movimento de redemocratização impulsionado por organizações sociais e partidos políticos de bases populares — e o arrefecimento dos subsídios financeiros governamentais para projetos agropecuaristas na Amazônia alteraram o espaço agrário da região do médio Araguaia. Com a contração das políticas estatais de incentivos fiscais, a elite latifundiária perde o interesse de investir na região, e muitos projetos ainda não consolidados99 de todo são deixadas ao abandono. As fazendas se tornaram áreas improdutivas. Enfraqueceram-se localmente os mecanismos de dominação das empresas rurais e fazendeiros agropecuaristas. Ampliaram-se as tensões sociais no campo na Amazônia Legal, eclodidas em meados de 70 por posseiros contra a expulsão de suas terras. Abriram-se brechas para novos focos de resistência camponesa pelo direito de acesso a terra em áreas do

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Conforme Sader (1986), o governo brasileiro, através da lei 5.174/66, dava isenções fiscais de até 50% para estabelecimentos já estavam instalados até a data de publicação da lei e até 100% para empreendimentos instalados até 1971.

norte goiano,100 tais como Bico do Papagaio, São Geraldo e Juarina, TO; Conceição do Araguaia, Redenção, Marabá e Xambioá, no sul do Pará;101 e o norte de Mato Grosso.102

Segundo dados da CPT, entre 1985 e 1986 ocorreram 113 conflitos de terra em Goiás, atingindo 4.184 famílias — 20.907 pessoas. Nesses dois anos, 23 pessoas foram assassinadas, 46 foram presas e 15 foram feridas — dentre estas, 6 foram torturadas, 79 foram ameaçados (as ameaças somaram 67 casos em 1986), 10 sofreram algum tipo de violência policial e 12, a de pistoleiros e jagunços (COMISSÃO PASTORAL DA TERRA, 1985; 1996).

Dos entrevistados, escolhemos declarações de dois onde é perceptível a compreensão desse novo cenário sociopolítico nacional e a antecipação prática das condições objetivas nas quais se orientaram para engendrar estratégias de luta e garantir o direito a terra. É o que se lê nos relatos de Jovelino Silva, assentado do vale do Juari, sobre o processo de ocupação da fazenda Juari. Ele explica que circulava informação entre os camponeses de que era improdutiva e não tinha registro documental; portanto, era suscetível de desapropriação. A narrativa de Francisco Reis (71), residente do assentamento Progresso, ex-fazenda Monte Alegre, diz que ficou atento à fazenda por dez anos a fim de saber se podia ocupar. “Ela era uma fazenda já largada”. Havia uma apreensão tácita de oportunidades se delineava mais densamente após a criação do primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), pelo governo José Sarney, em meados dos anos 80. Era o efeito das probabilidades reais de desapropriação de fazendas para fins de reforma agrária.

A análise de Ana de Souza Pinto — a Aninha,103 agente pastoral CPR de Araguaia, TO — acompanha os conflitos na região de Conceição do Araguaia na década de 80 e corrobora a percepção dos trabalhadores sobre as transformações políticas que incidiram na estrutura agrária da região, ampliando conflitos pela posse e fortalecendo a luta campesina:

Nesse período da década de 80, tava caminhando para o fim da ditadura militar e para a redemocratização do país. O Sarney assumiu como presidente da República com o discurso de que faria a Reforma Agrária, foi lançado o primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária. Então, esse ambiente político a nível nacional do discurso do Sarney nas rádios: “Agora vai a reforma agrária. Vai se realizar e tal”. No contexto da existência de grandes fazendas improdutivas e largadas aí pelos grandes fazendeiros e muita gente sem terra, acabou tendo esse processo bem generalizado de ocupações dessas áreas. [...] Na década de 80, aqui na região sul do Pará,

100 Sobre os conflitos de terra no norte de Goiás, ver Sader (1986); dentre os mais recentes, ver Mechi (2012), Lima (2015), Chaves (2015) e Lima (2015).

101 Entre vários trabalhos, apontamos Ianni (1978), Martins (1980; 1981; 2009); trabalhos mais recentes incluem os de Pereira (2015)

102 Ver Esteci (1987), Picolli (2006) e Martins (1980; 2009).

dados que a CPT tem registrados, indicam que tinham aproximadamente 80 conflitos de terras nos vários municípios. Do outro lado do rio [Araguaia], também tinha grandes fazendas e nesse contexto todo a CPT da diocese de Conceição tinha também a tarefa de tá acompanhando Couto de Magalhães, no Tocantins. A partir desse acompanhamento, apoiamos a criação do STR lá. Nesse contexto, houve a reocupação na verdade, da fazenda Juarina [1983]. Dados históricos mostram que desde 73 houve tentativas, mas o fazendeiro Carlito Memberg, muito articulado em termos econômicos e políticos, jogou pesado para garantir a concentração da terra nas mãos dele (PINTO, 2015, entrevista).