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3 EXPEDIÇÃO À TERRA DO CONGO

3.2 CHEGANDO À “TERRA DE NINGUÉM”

Passeando pelos escritos históricos de Cariacica, podemos experimentar uma história muito viva e recheada de casos curiosos, um exemplo é o fato de que Cariacica distribuía água tratada nos domicílios 15 anos antes do que a Capital, claro que isso se deve à facilidade hidrográfica46 que o município possui. Mas, hoje, já não é tão claro entender por que tantos bairros ainda não são atendidos por esse saneamento básico e por tantas outras políticas sociais.

Esta é a história de Cariacica! Cheia de entraves, vitórias, encantamentos, contradições, explorações, massacres... E não se encerra por aqui, alguns recortes foram feitos, outros diferentes serão. Mas o que queremos continuar ouvindo de Cariacica são os sons da percussão do congo que nos contagiam, mas que não se separam dos outros sons que ecoam de lá. Os ruídos da violência, os murmúrios de indignação e muitos outros sons são abafados por outros interesses.

Cariacica já não festeja mais a passagem do trem; hoje tem suas casas entrecortadas pelos trilhos. Muitos moradores, ao saírem de casa, pulam os trilhos do trem para chegar até a rua e, por conta desse trajeto, são vítimas de incontáveis acidentes. Como meio de evitar acidentes ao longo das vias férreas, uma equipe do

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Foi considerada como um marco na história local, por registrar a origem do saneamento básico no Espírito Santo.

projeto “Dica que Vale” 47

fez abordagens educativas em Cariacica e em Fundão, nas imediações da Estrada de Ferro Vitória-Minas. Realizaram uma palestra próximo à antiga estação de passageiros no bairro Flexal, voltada, principalmente, para motoristas e pedestres (GAZETA ON-LINE, 2008).

Esse tipo de medida pouco eficiente e paliativa é muito comum nesse município e camufla os verdadeiros problemas da região. Em uma entrevista com uma ex- conselheira tutelar, chama-nos a atenção, em uma de suas falas, esse mesmo tipo de prática em relação ao restaurante popular localizado em Campo Grande:

Dois restaurantes popular para quê? Se o povo tem que ir lá pagar. Só come quem estiver cadastrado. São só 300 pessoas, então pra mim isso não ajuda em nada. Na Vila Rubim tem um restaurante que você pode comer sem ser cadastrado. Aqui não. Tem senhoras que vem lá de Caçaroca para ir no médico, que pega dois ou três ônibus, chega aqui e fica no médico de quatro horas da manhã até às duas horas da tarde. Se quiser vir aqui almoçar não pode. Isso serve pra você? Porque pra mim não resolve, não! Isso pra mim é história pra boi dormir.

Paviani (1998), quando discute a lógica da periferização, destaca que essa forma de funcionamento faz com que haja uma propagação de uma prática administrativa

marcadamente assistencialista, pontualizada e que fragmenta a ação

governamental. Essas ações são revestidas de uma roupagem de operância e dinamismo dos gestores urbanos.

Cariacica, que é caracterizada por essas práticas adversas, possui traços muito marcantes. Além de ser parte integrante da Região Metropolitana da Grande Vitória, é o segundo município mais populoso do Estado com 356.536 habitantes, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2007), terceiro maior município com os maiores desafios sociais, políticos e econômicos. Conforme os microdados do Censo 2000 do IBGE (2007), cerca de 1/3 dessa população era composta por jovens de até 17 anos, a maioria, jovens de dez a quatorze anos. Por conta da constituição histórica, social, política e econômica do município, é possível perceber uma polarização de territórios, onde se contrastam áreas mais nobres com áreas mais empobrecidas. Campo Grande é o bairro considerado como

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O “Dica que vale” é um projeto da empresa Vale que tem por objetivo evitar acidentes nas linhas do trem nos bairros de Cariacica.

a área mais nobre. É o ponto que centraliza atividades comerciais em sua principal via. O bairro possui uma longa avenida com grande fluxo de pessoas que trabalham e consomem os produtos desse polo comercial. Há, ainda, nos arredores de Campo Grande, outros bairros que também compartilham dessa boa estrutura física. O outro polo seria o dos espaços desvalorizados pelo mercado imobiliário e que se constituem territórios de segregação e marginalização.

Atualmente, apesar desses impasses, podemos acompanhar um movimento de crescimento econômico em Cariacica. Os jornais do Espírito Santo que, durante as décadas anteriores, apenas mencionavam o município como palco de problemas sociais relacionados com a pobreza, a marginalidade e os escândalos políticos, começam a veicular investimentos no crescimento da cidade:

Obras abrem novos caminhos para Cariacica: as obras de drenagem e pavimentação realizadas em Cariacica são um atrativo para novos investimentos na cidade e para mais qualidade de vida. A prefeitura aplicou R$ 128,7 milhões para garantir facilidade de locomoção e melhor infra-estrutura (A TRIBUNA, 27-6-2008, p. 27).

Cariacica, cidade logística: Cariacica tem vocação para a logística e transporte, alimentos e bebidas, metalmecânica, indústria moveleira, indústria têxtil e comércio (A TRIBUNA, 27-6-2008, p. 25).

Cariacica vem recebendo muitos investimentos e, com o Orçamento Participativo,48 tem realizado obras que são votadas e definidas pela própria população. Para os investidores, o Poder Público municipal vem promovendo ações de infraestrutura e tem buscado o desenvolvimento das empresas e de novos negócios que, de forma direta e indireta, contribuem para a melhoria da vida dos moradores do município. Paralelamente a essas ações governamentais, vale lembrar os processos de luta pela melhoria das condições de vida efetuados historicamente pela própria população cariaciquense. Heckert (2007) nos alerta lembrando que a infraestrutura de alguns bairros de Cariacica foi organizada a partir de intensos processos de reivindicação. Entretanto, essas ações são muitas vezes ignoradas pelos meios de comunicação.

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Orçamento Participativo é um mecanismo governamental que permite aos cidadãos influenciar ou decidir sobre os orçamentos públicos, geralmente o orçamento de investimentos de prefeituras municipais, por meio de processos de participação cidadã. Esses processos costumam contar com assembleias abertas e periódicas e etapas de negociação direta com o governo (CARIACICA, 2008).

Tais ações, tanto por parte dos poderes públicos, quanto as provenientes dos movimentos sociais, são importantes, na medida em que evidenciam outras formas possíveis de funcionamento. Durante anos, o Poder Municipal foi exercido por pessoas oriundas de algumas poucas famílias da região, o que ratifica a conservação de políticas coronelistas caracterizadas por corrupção e populismo. Essa forma de governo autoritário e hierarquizado produziu efeitos danosos na esfera das políticas públicas que permaneceram marcadas pela desestruturação dos serviços de saúde, educação e outras áreas sociais.

Ao circular por Cariacica, inevitavelmente, somos carregados por nossas experiências. Somos passageiros, curiosos, pesquisadores, consumidores ou moradores. Adentramos inúmeras vezes esse terreno levando em nossa bagagem o estigma de “bolsão de miséria” que, de tão pesado, muitas vezes nos impede de enxergar os intensos movimentos de luta pela vida que não deixam de acontecer. Quando trazemos a história, não queremos justificar o que encontramos hoje no município; não é esse o uso que queremos fazer da história. Estudá-la é uma condição para apreendermos a atualidade com uma produção possível, dentre tantas outras que poderiam ter se dado.

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