• Nenhum resultado encontrado

4 O QUE OUVIMOS DAS HISTÓRIAS

4.6 A HISTÓRIA DE JÚLIO: O MENINO APRIOSIONADO

4.6.2 Pensando a história de Júlio

Quando conhecemos a história de Júlio, deparamo-nos, a todo instante, com um certo aprisionamento. Esse aprisionamento não é apenas de seu corpo físico, mas de sua vida. Por todos os espaços em que circula, vê-se limitado, contido e disciplinado.

No decorrer da história, a criança foi constituída como objeto de intervenção higiênica e disciplinar. Donzelot (1980) fornece diversos exemplos em que o Estado vai, progressivamente, a partir do século XIX, oferecendo-se para dar suporte às mães populares para que mantenham seus filhos dentro da lei e da ordem. Diferentemente das intervenções nas famílias abastadas, as famílias populares passam por outros canais que não pelos livros ou pela aliança entre a família e o médico, passam a dispor de outros espaços que tratam de controlar a criança. O que, aparentemente, parecia tratar-se de garantir a conservação das crianças das classes populares, na verdade, eram ações que objetivavam a vigilância direta dessas crianças.

Sobre esse aspecto, Foucault (1994, p 379) discute:

[...] essa proliferação das tecnologias que irão investir sobre o corpo, a saúde, as formas de se alimentar e de morar, as condições de vida, o espaço completo da existência, a partir do século XVIII, nos países europeus. Técnicas que, no seu ponto de partida, encontram seu polo de unificação naquilo que então se chamava de polícia: não no sentido restritivamente repressivo que lhes atribuímos atualmente, mas segundo uma acepção, mais ampla englobando todos os métodos de desenvolvimento da qualidade da população e da potência da nação.

A família, ao mesmo tempo, constitui-se rainha e prisioneira do social. As transformações e crises da família estão ligadas às determinações das sociedades. Ambas partilham do caráter policiado.

[...] a família é uma instância cuja heterogeneidade face às exigências sociais pode ser reduzida ou funcionalizada através de um processo de flutuação das normas sociais e dos valores familiares. Assim como se estabelece, ao mesmo tempo, uma circularidade funcional entre o social e o econômico (DONZELOT, 1980, p. 13).

Na história de Júlio, o REAME aparece como um dos espaços que pretende tirá-lo da rua e mantê-lo ocupado com atividades consideradas produtivas. Embora o termo “menor” tenha sido banido da legislação, ainda persiste no vocabulário e na prática de muitos. Tanto a imprensa quanto a sociedade em geral o utilizam, expressando uma visão que em si deprecia o adolescente e a criança pobre.

Londoño (1991) esclarece sobre o início do uso do termo no âmbito jurídico. No século XIX, a palavra menor, como sinônimo de crianças, adolescente ou jovem, era usada para assinalar os limites etários, que os impediam de ter certos direitos, como emancipação paterna ou assumir responsabilidades civis. Depois, foi utilizada pelos juristas na determinação de idade para definir responsabilidade penal. Para tal, utilizavam diferentes critérios. Em alguns casos, a pessoa ficava submetida ao pátrio poder até os 21 anos, enquanto sua responsabilidade penal podia começar aos sete ou nove anos, dependendo do juiz.

Entretanto, ainda segundo esse autor, na virada do século, esse termo deixou de ser associado à idade. A partir de 1920 até hoje, a palavra passou a se referir à criança e indicá-la em relação à situação de abandono e marginalidade, além de definir sua condição civil e jurídica e os direitos que lhe correspondem. Assim, a condição de desamparo material e moral definia, diferenciava e fazia das crianças que viviam nessas circunstâncias pessoas que deviam ser tratadas e protegidas pelo Estado. Ainda sobre o REAME, Scheinvar e Nascimento (2007) discutem que atualmente as organizações não governamentais têm funcionado como potentes aliadas dos Conselhos Tutelares. Essa associação do Conselho Tutelar com a filantropia, muitas vezes, torna o atendimento das situações de violação de direitos um espaço de barganha, o que pode promover um esvaziamento das reivindicações. Esses espaços filantrópicos respondem às questões urgentes, de maneira individualizada e muito específica, sem, contudo analisar a questões sociais em jogo.

Na história de Júlio, a rua também ganha visibilidade. Para Ana, esse é um lugar ameaçador que pode seduzir Júlio para caminhos incertos. Entretanto, não é só o REAME que se encarrega dessa função. Ana ainda conta com a igreja, o Conselho Tutelar e com a psicóloga, que ajudam a controlar o comportamento de Júlio. Esses agentes interventores, com suas devidas peculiaridades, são os dispositivos que

Foucault (2008b) denominou de saber/poder, os quais investem sobre o corpo de Júlio por meio da disciplina, controlando seu tempo, suas atividades, seus movimentos. Qualificam seus comportamentos como normais ou anormais, punem e rotulam.

O Conselho Tutelar, como um desses agentes interventores, encontra-se com a família de Júlio de formas diferenciadas: em alguns momentos coloca-se como um órgão aliado, em outros, direciona o modo como Ana deve agir com o filho e, ainda, em outras situações, utiliza-se de falas que ameaçam a liberdade de Júlio: “A conselheira chegou a falar que ia levar ele para Casa de Custódia se ele não melhorasse, porque ele estava terrível”.

Como “amoladores de faca” e a partir dos recursos, tanto técnicos quanto subjetivos que disponibilizam, os conselheiros, parecem deixar de lado os pequenos, mas importantes detalhes da vida de Júlio, transformando-o apenas em mais um caso individual:

O fio da faca que esquarteja, ou o tiro certeiro nos olhos possui alguns aliados, agentes sem rostos que preparam o solo para esses sinistros atos. Sem cara ou personalidade, podem ser encontrados em discursos, textos, falas, modos de viver, modos de pensar que circulam entre famílias, prefeitos, artistas, padres, psicanalistas etc. Destituídos de aparente crueldade, tais aliados amolam a faca e enfraquecem a vítima, reduzindo-a a pobre coitado, cúmplice do ato, carente de cuidado, fraco e estranho a nós, estranho a uma condição humana plenamente viva. Os amoladores de faca, à semelhança dos cortadores de membros, fragmentam a violência da cotidianidade, remetendo-a a particularidades, a casos individuais. Estranhamento e individualidades são alguns dos produtos desses agentes. Onde estarão os amoladores de faca? (BAPTISTA, 1999, p.46).

O aprisionamento de Júlio só o faz calar. Cala-se diante da mãe, diante da escola e diante da entrevista. Sua voz se cala, mas seu corpo fala, escreve rimas, apropria-se de objetos de outros, foge para a rua. Seu aprisionamento vai além da metáfora, torna-o estático no lugar em que foi colocado. É por esse caminho que segue mais um dos meninos77 pobres de Cariacica, como tantos outros...

77 Não no sentido de generalização, mas com a ideia de outros também compartilharem esse modo

Documentos relacionados