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4 O QUE OUVIMOS DAS HISTÓRIAS

4.4 A HISTÓRIA DE FÁBIO: O MENINO MEDICALIZADO

4.4.2 Pensando a história de Fábio

O que nos chama a atenção na história de Fábio é o fato de que mais uma vez, o Conselho tem sido convocado para resolver questões que não são de sua alçada. Quando dizemos isso, estamos nos referindo às definições de suas atribuições deliberadas pelo Estatuto. Nessa história, Nádia sente necessidade de obter ajuda quanto à criação de seu filho, porém nenhum dos direitos de Fábio foi violado. Na realidade, a procura pelo Conselho se dá com o objetivo de receber atendimento psicológico. Scheinvar (2001) nos alerta que a principal questão não é avaliar se o

Conselho Tutelar atende ou não a todos os casos de sua atribuição, mas problematizar o que tem chegado como “caso”, como “problema” ou ainda como direito violado e, principalmente, a forma como o conselheiro tutelar operacionaliza o encaminhamento desses casos.

Uma das questões destacadas na história de Fábio é o lugar que o pai ocupa dentro da família. Para ele, seu pai deveria ser o provedor da casa, porém é Nádia quem se coloca nesse lugar em virtude da doença do marido. De acordo com Costa (1999), a pedagogia médico-higiênica, além de tirar os filhos dos cuidados dados pelas escravas e levá-los para dentro de casa, definia também os papéis sexuais. Numa sociedade feita e pensada por homens, as concepções higienistas vieram explicar cientificamente as características supostamente típicas de cada sexo e apresentá- las como imperativos da natureza.

Badinter (1980) diz que, a partir do século IV, em consequência da influência da teologia cristã, a mulher passou a ser entendida com uma malignidade natural, por conta disso era maltratada e desconsiderada, o que colocava o homem em posição de superioridade e domínio sobre sua esposa. Mas, foi a partir do século XIX que as mulheres passaram a viver cada vez mais encerradas em seus papéis de progenitoras: gestação, parto e amamentação resumem sua existência, sem deixar- lhes alternativas ou espaço para outras aspirações. Dessa maneira, o valor dos cuidados maternos ganha nova dimensão em detrimento da liberdade da mulher. Outro aspecto que podemos ressaltar é a forma como os diversos profissionais vêm se relacionando com as famílias atendidas. Fábio se vê cercado da fala de especialistas “competentes”71 que geram em Nádia um sentimento de incompetência ao lidar com as atitudes do filho. Coimbra (1988) discute sobre os especialismos técnico-científicos, dizendo que esses discursos fazem com que os indivíduos considerem a própria vida desprovida de sentido, quando não obedecem às prescrições desses profissionais. Esse sentimento de incompetência é ainda

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“O discurso competente é um discurso instituído. É aquele no qual a linguagem sofre uma restrição que poderia ser assim resumida: não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância. O discurso competente confunde-se, pois, com a linguagem institucionalmente permitida ou autorizada, isto é, com um discurso no qual os interlocutores já foram previamente reconhecidos como tendo o direito de falar e ouvir, no qual os lugares e as circunstâncias já foram pré-determinadas para que seja permitido falar e ouvir e, enfim, no qual o conteúdo e a forma já foram autorizados segundo os cânones de sua própria competência” (CHAUÍ, 1981, p. 7).

reforçado diante do desconhecimento de como esse saber foi produzido. Nesse sentido, acreditam que, como não possuem esse conhecimento, tido como competente, não terão direito a expressar suas opiniões, dúvidas ou indignações. Costa (1999) também trabalha com a ideia de que esses discursos científicos produzem verdades dotadas de poder que determinam como se deve sentir, falar, vestir, pensar e viver:

A regulação é o mecanismo de controle que estimula, incentiva, diversifica, extrai, majora, ou exalta comportamentos e sentimentos até então inexistentes ou imperceptíveis. Pela regulação os indivíduos são adaptados à ordem do poder não apenas pela abolição das condutas inaceitáveis, mas, sobretudo, pela produção de novas características corporais, sentimentais e sociais (COSTA, 1999, p. 50).

Outro ponto relevante é o fato de Fábio, desde tão cedo, tornar-se usuário de medicamento controlado. Atualmente, temos contemplado o uso de remédios como uma constante na resolução de diversos casos que, a princípio, poderiam ser resolvidos de forma mais leve e ampliada. O não aprender, a agitação, a desobediência, a desatenção e o desinteresse têm recebido soluções médicas bastante pontuais e individuais que têm apenas instrumentalizado o fracasso escolar.

Concordamos com Patto (1999), quando diz que os questionamentos devem girar em torno da problematização dos processos de produção do fracasso escolar, pois, na maioria das vezes, eles têm caminhado no sentido da individualização- privatização, em vez de considerar o fracasso como efeito da produção de práticas educacionais e/ou psicológicas.

Essa medicalização que vem ocorrendo visa a conter não apenas o fracasso escolar, mas também a vida como um todo, pois é indicado, para cada caso, um remédio diferente. Segundo Foucault (1999), esse saber incide concomitantemente sobre o tempo, sobre o corpo, sobre o organismo, sobre os processos biológicos e imprime efeitos disciplinares e reguladores.

Coimbra (1998) destaca que muitos profissionais têm utilizado técnicas e métodos voltados para uma melhor aprendizagem, que enfocam as crianças consideradas

“problemas”. Dessa maneira, tem sido promovido um intenso psicologismo, pragmatismo e tecnicismo que vem marcando a prática pedagógica. Com isso, os problemas educacionais são reduzidos às dificuldades meramente técnico- psicológicas, incumbindo os especialistas de resolvê-los.

Ainda quanto à história de Fábio, apropriamo-nos da fala de Costa (1999, p. 15), quando diz que a nossa “[...] dúvida consiste em saber se os remédios propostos ao invés de sanarem o mal não vão perpetuar a doença”.

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