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CIÊNCIA, A RAZÃO INFERIOR; SABEDORIA, A RAZÃO

Deve-se ressaltar, como já referido anteriormente, que os dois aspectos do homem agostiniano citados aqui não correspondem diretamente à ciência e à sabedoria, porém nas entrelinhas vê-se uma aproximação do homo exterior com a scientia e homo interior com a

sapientia, e estes constituem o germe inicial a todo conhecimento, uma

espécie de estágio primeiro do que se pode classificar ou denominar de “homem racional”, que busca o conhecimento por meio da ciência e da sabedoria. As raízes estão nos sentidos, passando ao “sentido interno”, onde “acontece” a ciência. Em seguida, num movimento ascendente, chegar à sabedoria. Portanto o conhecimento tem início na alma por meio das coisas sensíveis, é despertado nas pessoas pelos sentidos, sintetizados e compreendidos pelo “sentido interno”.

Nesse rumo, o pensamento, no ato de conhecer encontra o inteligível em de vez de criá-lo, pois o perceptível está no mundo como: cores, tamanhos, formas geométricas, entre outras, as quais despertam o homem, que encontra em sua própria mente o conhecimento abstrato seja das diferentes tonalidades, relações de grandezas, distâncias, harmonias, belezas e outras mais que poderiam ser citadas aqui.

Os níveis do conhecimento, a ciência e a sabedoria, acontecem no homem interior. O primeiro possui certa semelhança com o homem

exterior, pelo fato de ser algo mais voltado às coisas materiais e

necessárias à manutenção da vida, enquanto a segunda assemelha-se mais ao homem interior.

Ambos acontecem na razão, porque tudo o que se sabe, entende- se pela razão. Os sentidos corporais percebem unicamente as coisas corporais. O sentido interno percebe os corporais, e também a si. A razão conhece a todos, exercendo um conhecimento que jamais se tem pelos olhos, ou ouvidos e nem mesmo pelos sentidos interiores, reconhecendo, por exemplo, a impossibilidade de os olhos ouvirem ou de os ouvidos sentirem odores, exercendo, assim, um discernimento que se encontra fora do alcance dos sentidos. Ademais, se os sentidos

externos sentem os corpos e os internos, os externos, a razão, por sua vez, exercendo a ciência, conhece todos e a si mesma: do contrário, desprovidos de razão, sequer saber-se-ia que se tem razão.

Isso evidencia ainda mais a hierarquia dos sentidos com base no princípio de subordinação, pois a razão supera os anteriores pelo fato de ser capaz de julgá-los, sendo que:

[...] todas as realidades inferiores a ela (a razão): os corpos, os sentidos exteriores e o próprio sentido interior, quem, pois, a não ser a mesma razão nos declara como um é melhor do que o outro, e o quanto ela mesma ultrapassa-os a todos? E quem nos informará sobre isso a não ser a mesma razão?37

A razão exerce seu domínio sobre as realidades corpóreas por meio dos conhecimentos que é capaz de formular mediante seu juízo. No homem interior se encontra o exercício da razão, e este se põe acima da exterioridade dos sensíveis e dos sentidos mesmos.

[…] é uma função mais alta da razão julgar a respeito das coisas corpóreas, segundo razões incorpóreas e eternas, as quais se não submetessem a seu jugo algo nosso, não poderíamos julgar segundo elas aquelas coisas corporais. Ora, julgamos os corporais a partir da razão das dimensões e figuras, as quais nossa mente conhece imutavelmente.38

Novaes Filho39 comenta que a razão interna se “submete” à outra razão que lhe dá o sentido ascende até os inteligíveis. Elementos estes que a razão interna recebe por iluminação, uma vez que não a possui. Isso também aponta para certa ligação entre a razão humana e um centro

emanador, uma realidade imutável, uma espécie de razão suprema, o

37 O Livre-Arbítrio, II, 6, 13.

38 [...] sublimioris rationis est iudicare de istis corporalibus secundum rationes incorporales

et sempiternas; quae nisi supra mentem humanam essent, incommutabiles profecto non essent, atquae his nisi subiungeretur aliquid nostrum, non secundum eas possemus de corporalibus iudicare. Iudicamus autem de corporalibus ex ratione dimensionum atque figurarum, quam incommutabiliter manere nens nouit. A Trindade, XII, 2, 2.

que demonstra mais uma vez a supremacia da razão, visto que somente ela consegue estabelecer tal ligação.

É verdadeiro que a verdade sempre está ao nosso alcance, graças ao Mestre interior que ensina para nós, basta somente prestar atenção ao que ele nos ensina [...] A cogitatio agostiniana é tão somente o movimento pelo qual na nossa alma colige, reúne e recolhe, para poder fixar seu olhar sobre eles todos os conhecimentos latentes que ela possui sem ainda tê-los discernido.40

O propósito de Agostinho é investigar se há alguma coisa superior à razão, ainda que seja fora dela. Para tanto, lançará mão dos números para relacionar a grandeza, ou a unidade das coisas que não são percebidas pelos sentidos, mas somente captadas pela razão. Exemplos de “leis” da sabedoria, norma que, segundo ele, são tão necessárias e universais

[…] a sabedoria é definida como a verdade na qual se contempla e possui o bem supremo. Entretanto, a inserção do conceito de sabedoria... requer que o autor esclareça que a sabedoria se encontra no patamar das razões eternas e universais, ao lado das leis dos números, isto é, acima da razão humana e segundo a qual esta razão pode julgar aquilo que ela subjuga. É preciso, portanto a Agostinho provar que as normas da sabedoria são tão necessárias e universais quanto às leis dos números: universalidade e imutabilidade.41

Roland Teske,42 no artigo: Augustine´s Philosophy of Memory, comenta que no De Libero Arbitrio Agostinho faz sua definição de

sapientia, atrelando esta à noção de bem supremo. Nisto não há

contradição em relação a De Trinitate (ciência das coisas divinas): o que acontece nestas duas obras é que Deus é apresentado como sumamente

40 GILSON, 2006, p. 155-156.

41 RAMOS, Angelo Zanoni. O Conceito de Justiça na Cidade de Deus de Santo Agostinho.

São Paulo: Editora da USP, 1998. p.119.

42

TESKE, Roland. Augustine´s Philosophy of Memory. In: STUMP, Eleonore; KRETZMANN, Norman. The Cambridge Companion to Augustine. Cambridge, United Kingdom, 2001. p. 148-159.

bom e sábio, e o que se evidencia mais ainda é que esta sabedoria está presente no interior de uma cosmologia a qual cada indivíduo está propenso e a partir desta noção esclarece que as leis da sabedoria possuem os atributos, universais e verificáveis, semelhantes à noção dos números, ou das virtudes, que possuem alcance universal e, quando a mente humana as consulta, está buscando nelas orientações para viver bem, visto que todos os seres humanos possuem a noção do agir corretamente em cada situação, isto é, a virtude. O mesmo ocorre com os números, quando se fala 6 + 5= 12,43 a razão parece ir fora de si para verificar a veracidade da resposta que possui alcance universal e quando a mente as consulta está buscando nelas orientações para agir corretamente.

As certezas a se confirmar são de caráter eterno, são as regras as quais ele denomina “luminares das virtudes” e afirma que “[...] tudo o que chamamos de regras e luminares das virtudes pertencem à sabedoria, uma vez que, quanto mais alguém se utiliza delas para dirigir a vida, tanto mais vive e procede sabiamente [...].”44

O processo de aquisição da sabedoria encontra-se no esforço por alcançar regras ou leis universais que penetrem no íntimo do homem, daí ser possível comparar a sabedoria com a questão dos números e mesmo com a noção de bem ou virtudes; para que isso seja possível faz-se necessário que o homem desvie suas atenções de coisas materiais que são transitórias, sujeitas ao tempo e ao espaço, para se voltar às razões ou ideias imutáveis que naturalmente levam a Deus.

Como já frisado, a relação homo exterior e homo interior, deve ser de subordinação, o que desemboca na ação e contemplação, visto que para isso, de certa forma, a razão acaba fazendo algo semelhante a “passeios”, pois ela estabelece com isso um duplo movimento, parte dos mutáveis e ascende aos imutáveis, à luz da iluminação, para em um segundo momento voltar-se aos mutáveis e, assim, poder julgá-los.

Ambos os movimentos são desempenhados pela razão humana, concluindo-se que há duas funções da razão, motivo pelo qual ela pode ver o inteligível e julgar o sensível de acordo com o inteligível.

Portanto, quando discorremos sobre a natureza da mente humana, discorremos sobre uma espécie de realidade una, e não as dividimos nos dois aspectos que mencionei senão em virtude das suas

43 Aqui o resultado do cálculo é proposital. 44 O Livre-arbítrio, II, 10, 28.

funções [...] não separando a ação racional nas coisas temporais da contemplação das eternas [...].45

Não são duas razões na mesma alma, somente uma com duas funções diferentes, e a partir de uma delas, a razão superior, no qual acontece a sabedoria, a alma se dirige ao que lhe é superior às realidades eternas, as contemplatio aeternorum, diferenciando-se da actio

racionalis in temporalibus, a razão inferior. Poderíamos exemplificar

esta concepção com o pássaro, que é provido de duas asas, na falta de uma delas não pode alçar voo, lembra igualmente o Mito de Andrógino descrito no Banquete de Platão.

1.6 OS TRÊS ROMPIMENTOS DA IMAGEM DE DEUS NO