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1. O estudo de um joguinho inigualável

1.1 Revisão bibliográfica

1.1.2 Ciências Sociais e Historiografia

As Ciências Sociais só olham para a capoeira como objeto de estudo na segunda metade do século XX. Os anos 1960, nos Estados Unidos, são fortemente marcados pela crise do modelo racial, que incita uma ampla revisão da historiografia sobre a escravidão no continente americano como um todo. No entanto, essa onda demora alguns anos para chegar ao Brasil.

94 Vf. EDMUNDO, Luis. No tempo dos vice-reis (1763-1808). Revista do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, v. 163, tomo 109, 1932, p. 49-52.

95 Ibid., p. 24.

96 “São os negros escravos chapinhando nas sobras da água, berrando ameaças, gingando capoeiragens,

discutindo, gesticulando; tipos fortes e espadaúdos, reluzentes e nus, tendo apenas pendente da cintura, à guisa de velário, em pregaria escassa, uma tanga.” (EDMUNDO, ibid., p. 24.)

97 Ibid., p. 82.

Um das primeiras obras de porte desse movimento de revisão é a de Mary Karasch, que, em 1972, defende sua tese de doutorado99, um extenso trabalho sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro do século XIX. Karasch monta um panorama da vida cultural, econômica e social dos escravos na cidade, descrevendo as nações africanas que aqui chegavam, o mercado de escravos, a vida social desses homens, seus costumes, danças, doenças, funções, religião, fuga etc.

Sobre a capoeira, a autora afirma que era uma dança associada a escravos do sexo masculino e que “(...) suas origens devem ser buscadas em uma ou mais danças guerreiras e formas de luta estilizada de Angola, ainda encontradas no Sul da África”100

. Mesmo não apontando para uma origem única, Karasch ressalta a ligação da capoeira com o mundo do trabalho ao relacionar o nascimento do jogo em meio aos trabalhadores das ruas, praias e mercados, que “aprenderam a proteger suas mercadorias e a si mesmos dando golpes (...) com os pés e a cabeça”101.

Já Gerhard Kubik, etnólogo e estudioso da musicalidade africana, defende que a capoeira foi desenvolvida por escravos angolanos nas fazendas da Bahia durante os séculos XVIII e XIX, uma vez que sua música teria uma forte herança angolana102. Ele encontra semelhanças entre a estética musical e harmônica da capoeira moderna e as tradições melódicas dos povos africanos anteriores à chegada dos europeus a partir do berimbau – símbolo da capoeira no século XX.

Confrontando Kubik e Karasch, ele supõe que a capoeira fora originada nas plantações do estado baiano, enquanto ela já aponta o caráter urbano da prática. No entanto, os dois concordam no sentido de que é mesmo entre as danças de guerra e rituais tradicionais dos povos da África Austral que os estudiosos poderiam encontrar sinais das raízes remotas da capoeira, principalmente em Angola.

Dentre os estudiosos brasileiros, existiria a possibilidade de se estender e falar sobre os trabalhos de Júlio Cesar Tavares103 (1984), um dos pioneiros na temática da

99 KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Tradução de Pedro Maia

Soares. 2. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2000 [1987].

100 Ibid., p. 331. 101 Ibid., p. 331.

102 KUBIK, Gerhard. Angolan traits in black music, games and dances of Brazil: a study of African

cultural extensions overseas. Lisboa: s. ed., 1979.

103 TAVARES, Júlio Cesar de Souza. A dança da guerra: arquivo-arma. 1984. Dissertação (Mestrado

capoeira; Luiz Renato Vieira104 (1990); Maria Ângela Borges Salvadori105 (1990); Leila Mezan Algranti106 (1988), que desvenda novas facetas da capoeira como cultura urbana na era joanina; Luiz Carlos Soares107 (1988); Marcos Bretas108 (1991), que analisa a repressão à capoeira durante o governo provisório republicano e inova ao afirmar que a extinção das maltas de capoeiras teria acontecido antes da promulgação do Código Penal de 1890; e Letícia Vidor de Souza Reis109 (1993), dentre outros, mas optamos por focar nas cinco obras que mais ajudaram e guiaram esta pesquisa. Seus autores são Thomas Holloway (1989a e 1989b), Alejandro Frigério (1989), Carlos Eugênio Líbano Soares (1994), Luiz Sérgio Dias (2001) e Antônio Liberac Cardoso Simões Pires (1996).

Thomas Holloway, em artigo110 publicado na Revista do Centro de Estudos Afro-Asiáticos em 1989, procura estudar as relações entre o sistema policial do Rio de Janeiro e a sociedade urbana no período imperial. As práticas dos capoeiras, para Holloway, no século XIX, constituíam-se em formas de resistência. Ele inova ao lançar mão de documentação policial nos estudos da capoeira através de uma perspectiva histórica e, no trato das fontes, define alguns cuidados metodológicos que devem ser levados em consideração – uma vez que no presente trabalho também fizemos amplo uso de fontes policiais:

[...] começamos a recuperar, através dessa documentação, não propriamente a vida dos escravos e outros grupos afetados, mas antes o funcionamento das instituições colocadas na primeira linha da guerra social travada entre a classe dominante, que criou o sistema, e as classes a serem dominadas, nos campos de batalha que vinham a ser as ruas, praças e outros lugares públicos111.

104 VIEIRA, Luiz Renato. Da vadiação à capoeira Regional: uma interpretação da modernização

cultural no Brasil. 1990. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade de Brasília, Brasília,

1990.

105 SALVADORI, Maria Ângela Borges. Capoeiras e malandros: pedaços de uma sonora tradição

popular (1890-1950). 1990. Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de História,

Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1990.

106

ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Vozes, 1988.

107 SOARES, Luiz Carlos. Urban slavery in nineteenth-century Rio de Janeiro. 1988. Tese (Doutorado

em História) – University College London, Londres, 1988.

SOARES, Luiz Carlos. Os escravos de ganho no Rio de Janeiro no século XIX. Revista Brasileira de História, v. 8, n. 16. São Paulo: ANPUH, Editora Marco Zero, 1988.

108 BRETAS, Marcos Luiz. O império da navalha e da rasteira. Estudos Afro-Asiáticos, n. 20, Rio de

Janeiro, jun.1991, p. 239-256.

109

REIS, Letícia Vidor de Souza. Negros e brancos no jogo da capoeira: a reinvenção da tradição. 1993. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1993.

110 HOLLOWAY, Thomas H. “O saudável terror”: repressão policial aos capoeira e resistência

escrava no Rio de Janeiro no século XIX. Revista de Estudos Afro-Asiáticos, n. 16, Rio de Janeiro, 1989b.

Holloway procura avaliar o significado mais amplo da capoeira no século XIX na cidade e os esforços policiais para controlá-la, voltando-se para o tema da transição e consolidação institucional durante o que ele chama de “independence era” – de 1808, através da década de 1820 e particularmente seguinte à abdicação de Pedro I, em 1831. Através de processos judiciais de escravos, o autor delineia as características de um sistema de controle social, assim como a relação entre as autoridades públicas do emergente Estado brasileiro, os direitos privados de donos de escravos sobre suas propriedades e a raiva e a resistência sob a superfície daquela sociedade escravocrata.

Holloway desvenda, entre as muitas razões para a repressão às classes baixas do Rio de Janeiro, as especificidades da capoeira do início do século XIX, como sua divisão geográfica em maltas, rivalidades territoriais, ataques em tavernas112 etc. Comprova o medo incutido pelos capoeiras em seus “oponentes sociais, e a necessidade que ambos os lados sentiam de retribuir o uso violento da força com uma resposta similar”113

. É ele também quem aponta pela primeira vez que nas primeiras décadas do século XIX, a capoeira era uma prática majoritariamente identificada a escravos urbanos, assim como a ex-escravos e alguns poucos homens livres de cor114, e que com o decorrer do século foi gradativamente tornando-se atividade de um número cada vez maior de pessoas livres:

Cada vez mais, a adesão às maltas conectava aqueles na base da sociedade, escravos e livres, em oposição às forças da ordem e ao poder do Estado. De maneira interessante, entretanto, entre os capoeiras era possível encontrar membros das fileiras de instituições tais quais o exército, a polícia, a guarda nacional, os bombeiros [?].115

Holloway demonstra como a capoeira pode tanto ser vista como um problema de controle social e segurança pública quanto uma bem sucedida técnica de

112 Veremos no capítulo relativo à análise dos processos criminais que esse aspecto das brigas em bares

envolvendo ou não o proprietário do estabelecimento permanece recorrente no período enfocado por esta pesquisa.

113 Tradução livre de “[These observations do, however, reiterate the fear capoeiras instilled in their]

social opponents, and the need both sides felt to meet violent force with similar response” (HOLLOWAY, Thomas H. “A healthy terror”: police repression of capoeiras in nineteenth-century Rio de Janeiro. The Hispanic American Historical Review, v. 69, n. 4, nov. 1989a, p. 662. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/2516095>. Último acesso em 09 jul. 2012).

114 Tradução livre de “few free people of color”.

115 Tradução livre de “More and more, membership in the maltas connected those on the bottom of

society, slave and free, in opposition to the forces of order and state power. Interestingly, however, among the capoeiras were to be found members of the rank and file of such institutions as the army, police, national guard, and fire prevention service” (HOLLOWAY, op. cit., 1989a, p. 664-665).

resistência e estabelecedora de autonomia. No entanto, possivelmente refutável quando se pensa que mesmo quase 50 anos após a abolição, e mesmo que houvesse iniciativas de exaltação e de esportivização, a prática da capoeira permanecia sendo reprimida pelas mesmas forças policiais do início do século XIX. Cumpre, ainda, em uma tentativa de contraponto ao autor, levar em consideração que a história não se dá apenas em duas vias de atuação: ou a exaltação ou a repressão da prática; não, entre esses dois polos opostos, existe uma escala não predeterminada de atuações da capoeiragem e para com ela que reflete ações historicamente contextualizadas e interessadas. A manifestação da capoeiragem e as manifestações que a envolvem, dela consequentes, são ambíguas, sim, mas não meramente enquadráveis em maniqueísmos interpretativos.116

Por outro lado, Holloway também propõe uma reflexão interessante em se tratando do período por ele abordado:

Pelo fato de a escravidão ser universalmente condenada no mundo moderno, é comum e compreensível para aqueles que estudam a instituição falarem positivamente de qualquer evidência de defesa, contra-ataque e revolta por parte dos escravos como uma resistência justificável a uma condição intolerável. Ingressar em maltas de capoeiras, defender seus territórios, atacar membros da população livre, e envolver-se ativamente em conflitos com a polícia são exemplos de tal atividade. É menos comum para os historiadores comentarem em tom de aprovação a violência de gangues e atos criminosos cometidos por pessoas livres. Se a escravidão é um raciocínio automático para a resistência, o status de não escravo automaticamente elimina essa justificativa particular para quebrar as regras.117

Para este trabalho, portanto, é possível concluir que a escravidão não é raciocínio automático para a resistência. Aliás, nada pode ser pensado como um “raciocínio automático” para a resistência, incorrendo no perigo de se justificar quaisquer “quebra de regras”. A chave para entender a capoeira como um fenômeno social é a relação entre as maltas ou praticantes e a sociedade na qual se incluíam, levando em consideração escravos, mestiços, homens negros livres e homens

116 Para um entendimento similar com relação ao samba, vf. HERTZMAN, Marc A. Making samba: a

new history of race and music in Brazil. Durham e Londres: Duke University Press, 2013.

117 Tradução livre de “Because slavery is universally condemned in the modern world, it is common

and understandable for those who study the institution to speak positively of any evidence of defense, counterattack, and rebellion by slaves as justifiable resistance to an intolerable condition. Joining

capoeira gangs, defending their territory, attacking members of the free population, and actively

engaging in battles with the police are examples of such activity. It is less common for historians to comment approvingly on gang violence and criminal acts commited by free people. If enslavement is an automatic rationale for resistance, nonslave status just as automatically eliminates that particular justification for breaking the rules” (HOLLOWAY, op. cit., 1989a, p. 673).

pobres118. “O que quer que capoeiras faziam deve ser interpretado amplamente mais como uma atividade social do que estritamente como um comportamento criminoso.”119

Também em 1989, surge um artigo de Alejandro Frigério, “Capoeira: de arte negra a esporte branco”120, que tenta entender exatamente o que se passou com a prática na primeira metade do século XX, fazendo um paralelo com a umbanda. A capoeira, para ser legitimada e se integrar ao sistema, precisou perder várias das características que eram próprias a ela, “em virtude de sua origem étnica”, e adquirir outros traços para poder ser aceita aos olhos das classes dominantes. A capoeira regional teria sido, por essa perspectiva, um “embranquecimento” da capoeira tradicional, a angola.

Frigério, assim como Pires121 afirma que Tavares o fez, também cai em uma racialização dos argumentos: para ele, a capoeira enquanto “fruto da criação coletiva de um grupo social determinado”, “as camadas populares negras do Brasil”, deveria refletir as características mais gerais desse grupo – a malícia e a picardia122.

Estar sempre atento, para aproveitar a menor oportunidade e tirar vantagem (e evitar ser vítima disso), são traços próprios de quem deve esmerar-se na arte de sobreviver com os magros recursos a seu alcance, traços que se observam ainda hoje nas atitudes cotidianas dos setores populares baianos. A picardia se expressa tanto no samba como na capoeira, na conquista de uma mulher como nos brincalhões duelos verbais, tão peculiares a este setor. É um estilo étnico próprio (Kochman, 1981) que se reflete nas diversas modalidades da cultura grupal.

Nos anos 1930, teria se iniciado o processo de legitimação social da capoeira, em paralelo à sua descaracterização enquanto “tradicional e autêntica luta baiana”, em direção à esportivização, que teria início na década de 1960 com sua difusão pelo país. Por fim, Frigério propõe uma gradação entre as academias de capoeira “mais tradicionais” e “menos tradicionais”: as mais tradicionais seriam as de capoeira angola, situadas na Bahia e geridas pelas classes populares negras. As menos tradicionais seriam as academias situadas mais ao sul do Brasil, onde os praticantes seriam brancos e de classe média.

118 HOLLOWAY, op. cit., 1989a, p. 674. 119 Ibid., p. 675.

120 FRIGÉRIO, Alejandro. Capoeira: de arte negra a esporte branco. 1989. Disponível em:

http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_10/rbcs10_05. Último acesso em 26 fev. 2013.

121 PIRES, op. cit., p. 18-25. 122 FRIGÉRIO, op. cit., p. 4.

Frigério busca desconstruir certa naturalização da transformação da capoeira de arte negra a esporte branco: esse processo não é natural, mas político, diz ele. Naturalizar essa transformação seria mascarar uma “relação assimétrica de poder existente na sociedade” e justificar “(mediante uma ideologia racista e evolucionista) a apropriação da arte de um grupo étnico por outro e a mutilação e perda da memória e da identidade desse grupo”123

.

Entretanto, é possível constatar que, apesar de ser uma visão amplamente difundida ainda hoje entre praticantes do jogo124, Frigério carregou nas tintas do discurso tradicionalista. O autor, ao defender uma suposta pureza da capoeira angola frente à regional, reendossa um estereótipo, ignora as transformações inevitáveis de uma manifestação cultural – mesmo naquela que ele considera como a mais autêntica – e ignora que aqueles que defendem a legitimidade da capoeira angola também se inserem nesse jogo político de disputa pelo reconhecimento oficial.

Diante das reflexões de Frigério, trazer à luz o conceito de “circularidade cultural” de Carlo Ginzburg125

faz com que seja possível questionar esse movimento de mão única, de “embranquecimento de uma prática negra”: ora, não existiria aí também um “enegrecimento” daqueles que incorporaram a capoeira como um esporte nacional?

Outro aspecto passível de questionamento na análise é que Alejandro Frigério nem ao menos menciona a capoeira carioca, frisando o movimento também de mão única que a capoeira teria feito já na segunda metade do século XX da Bahia em direção aos estados mais ao sul do país. Esse ponto de vista já foi refutado algumas vezes pela historiografia e o presente trabalho vem apenas para corroborar a presença da prática no Rio de Janeiro antes e em concomitância às investidas dos mestres baianos nos anos 1930. A falha de Frigério é ter caído no “campo dos discursos dos praticantes”126

: ao trabalhar com fontes orais, não se pode tomar discursos como verdades127.

Nesse mesmo contexto de uma onda revisionista relativa à historiografia da escravidão por ocasião do centenário da abolição, Carlos Eugênio Líbano Soares

123

FRIGÉRIO, op. cit., p. 12.

124 Informação retirada de minha experiência pessoal em grupos de angola e regional nas cidades do

Rio de Janeiro, Nancy (França) e Lyon (França), entre 2004 e 2010.

125 Vf. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido

pela Inquisição. Tradução de Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 [1976].

126 PIRES, op. cit., p. 26.

identifica uma fragmentação na abordagem da capoeira, buscando incorporar o que de mais avançado e inovador se produzia à época no campo da história da escravidão negra no Brasil. Ele traz, então, o debate para o estudo da cultura e da resistência escrava no Rio de Janeiro, caracterizando-as como um mecanismo heterogêneo, matizado pela dinâmica cultural e possuidor de vários significados.

Eugênio inova, através de um trabalho128 com fontes (processos judiciais, noticiário jornalístico, registros da Casa de Detenção), ao fazer uma interpretação da vasta documentação que ainda não estava compilada sobre a capoeira no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX, estudando a formação e as práticas políticas das maltas, os rituais da capoeira, seus aspectos simbólicos e identificando os capoeiras como integrantes da cultura popular de rua.

O trabalho, que pode ser considerado uma “avaliação histórica da organização da capoeira no Rio de Janeiro ao longo do século XIX”129, analisa as fichas dos capoeiras presos na Casa de Detenção da corte para poder chegar a um quadro sobre a composição social dos praticantes da capoeiragem entre as décadas de 1860 e 1890 através de seus padrões ocupacionais e de moradia, dados de raça e faixa etária, variantes sociais etc.

Eugênio faz uma radiografia das maltas, desde sua formação, apontando seus rituais e conflitos, suas festas e composição, até a identificação da presença de imigrantes portugueses na prática da capoeira, relacionando-os aos fadistas lusos130, e a presença dos capoeiras como capangas da vida político-eleitoral na cidade. Ainda, traça o cotidiano dessas maltas e das duas grandes nações de capoeiras que, em permanentes correrias pelas ruas, alteravam a ordem e a tranquilidade da cidade na segunda metade do século XIX.

Soares foca sua pesquisa neste período, até 1890, data da promulgação do Código Penal da nova República vigente. O autor dá nome e profissão aos praticantes da arte da rasteira: “e como é importante mostrar que muitos praticantes (...) possuíam profissão. Se as exerciam regularmente em um mercado assinalado pelo aviltamento do trabalho e, em consequência, pela ‘viração’, era outra questão”131

. Nesse momento,

128 SOARES, op. cit., 1994. 129

Luiz Sérgio Dias no prefácio ao livro de SOARES, op. cit., 1994, p. xv.

130 Carlos Eugênio segue a pista de Marcos Luiz Bretas (op. cit.). 131 SOARES, op. cit., 1994, p. xvi.

a análise de Soares se aproxima do estudo de Sidney Chalhoub132 sobre a nascente classe operária carioca na belle époque, quando a questão do mundo do trabalho passa a ser o pano de fundo da discussão acerca da capoeira – pano de fundo este com o que também deparou-se na realização desta pesquisa.

O autor também ressalta um aspecto contraditório da prática que, se não perdura até hoje, certamente o fez até pelo menos os anos 1930. Ao longo do século XIX, as maltas de capoeira mantiveram um relacionamento ambíguo com os interesses políticos dos liberais e conservadores.

Desafiadora da ordem pública e, ao mesmo tempo, agente de manutenção da ordem social. Essa foi, talvez, uma imagem que a capoeiragem cunhou por sua prática no Rio de Janeiro durante o século XIX. Tal imagem contrasta com outra, aquela que a representa como instrumento da resistência negra. As duas, em realidade, não se eliminam, não se excluem. Ao contrário, devem ser avaliadas como fruto das transformações sofridas pela sociedade brasileira, particularmente na capital, por força da transição da hegemonia do trabalho escravo para o trabalho livre.133

Contemporâneo à pesquisa de Soares, uma boa surpresa bibliográfica e peça