• Nenhum resultado encontrado

2. A letra da lei

2.3 O capítulo XIII e seus artigos

Em seu capítulo XIII, “Dos vadios e capoeiras”, o Código Penal de 1890 punia a vadiagem, nos artigos 399 a 401, e a capoeiragem, nos artigos 402 a 404. Entre primeira prisão e reincidência, as penas variavam de quinze dias a três anos para o caso de vadiagem e de dois meses a um ano para os capoeiras. Através de informações extraídas dos relatórios de chefes de polícia – refere-se Neder –, é possível dizer que a vadiagem foi, nesse início do século XX, a contravenção mais reprimida.

Os mendigos, bêbados e vadios descritos pela lei eram aqueles indivíduos que escolhiam a miséria e o vício, uma afronta à moral e aos bons costumes. Não eram colocados na cadeia os pobres em geral, mas os pobres que não tinham ‘optado’ pelo trabalho e pelos bons costumes. Já os capoeiras representavam a opção pela rebeldia. A prática da capoeiragem envolvia guardas nacionais, praças do exército e da armada, artesãos, e indivíduos oriundos das diversas camadas sociais. Ela foi considerada crime porque representava uma ameaça à segurança física dos demais cidadãos.225

223

NEDER, op. cit., p. 106.

224 SANTOS, op. cit., 2004, p. 139. 225 Ibid., p. 146.

Enquanto a vadiagem226 podia ser considerada como uma das ameaças mais contundentes àquela ordem que se instalava, a repressão à capoeiragem foi também uma das primeiras medidas tomadas pelo novo regime republicano: “A República teve uma atenção particular em relação aos classificados como ociosos e contrários aos hábitos disciplinares, que seriam próprios de uma sociedade moderna e como imaginavam os ideólogos republicanos”227. Ao tornar a ociosidade e a capoeiragem puníveis e considerá-las contravenções sujeitas a penas, o mecanismo jurídico republicano definia a contravenção como um fato passível de punição, isto é, uma violação das disposições legais, uma não observância da existência da lei. A violência desmedida passava a ser combatida com a violência de uma abrangência maior, só que legitimada pelo aparato jurídico-legal.

O capítulo referente aos vadios e capoeiras tornava abrangente o direito de punição a práticas que já tinham se tornado costumeiras, mas que, até então, haviam resistido em um campo nebuloso de interpretações esquivas. A ordem republicana chegava não somente como uma alteração no sistema político, econômico e social, mas também com anseios subjacentes que continham projetos caracterizados por uma perspectiva centrada na violência. Havia uma demanda crescente por mais ordem e a República prescindia de regras disciplinadoras e de adestramento para se consolidar.

Portanto, a desordem – a negação de uma ordem republicana – “levou progressivamente à montagem de um amplo leque jurídico que colocava as ‘massas despreparadas para viver em liberdade’ (...) a enquadrar-se na nova realidade”228

. Nesse perfil, enquadrava-se a imagem do capoeira: por princípio, avesso ao trabalho, disposto à desordem e sempre predisposto ao crime, ou seja, um “eterno disponível”. Já o vadio representava uma outra preocupação para a ordem estabelecida: formado por um contingente de livres pobres, assustava. Esse

226 “Article 399 inspired a larger anti-vagrancy campaign that was based around two explicit goals: to

ensure societal order and to transform libertos and vagrants into workers (trabalhadores). To these stated objectives may be added three implied intentions. First, the campaign’s architects sought to preserve long-standing hierarchies while simultaneously attempting to leave slavery behind. Second, by outlawing livelihood through any ‘occupation prohibited by law or manifestly offensive to morals and good customs,’ lawmakers sought to draw a line between licit and illicit means of making money. In practice, the line was exceptionally blurry and constantly moving, a flexibility that lent the law extra power. Third, through police techniques like fingerprinting, physical examinations, and compulsory identification, authorities sought to identify and monitor dangerous sectors of the population” (HERTZMAN, op. cit., pp. 37-38).

227

ALVES, Paulo. A República e a construção da ordem. História. São Paulo: Unesp, 1989, n. especial apud DIAS, op. cit., p. 80.

contingente de despossuídos, desempregados crônicos e empregados eventuais – oriundos de uma oferta abundante de trabalhadores – afigurava-se aos olhos das autoridades como possíveis (e prováveis) agitadores.

Para que seja possível compreender quem era o vadio, deve-se caracterizar aquele que não era vagabundo ou agitador. Luiz Sérgio Dias menciona um relatório de 1893, do chefe de polícia Cardoso de Castro, em que ele afirma que o Rio de Janeiro era uma cidade essencialmente pacífica, não conhecendo “povo de índole mais ordeira que o nosso”. Era uma suposta minoria não pacífica a responsável pelas agitações na cidade, “espíritos inquietos, amigos da agitação e da desordem”, espíritos que não faziam parte, então, do povo.

A penetração da ideologia do trabalho aparece enquanto tentativa de normatizar a sociedade de classes que está se estruturando, acompanhada pelo seu contrário, a malandragem, que vai açambarcar todos aqueles que não se enquadram nesta nova norma. Mais do que isto, vemos a malandragem como a própria expressão da predominância das relações sociais de produção capitalista, pelo menos no eixo Rio-São Paulo, quando a resistência à ‘ordem’ é definitivamente individualizada na figura temida, repudiada e mitificada e até heróica do malandro.229

As conclusões de Gizlene Neder, referentes ao início da era republicana, podem ser ajustadas a uma conjuntura posterior, aqui enfocada. Quando o trabalho é a lei suprema da sociedade, a ociosidade é uma ameaça constante à ordem – ociosidade e manutenção da ordem são incompatíveis.

Ociosidade deve ser combatida não só porque negando-se ao trabalho o indivíduo deixa de pagar sua dívida para com a sociedade, mas também porque o ocioso é um pervertido, um viciado que representa uma ameaça à moral e aos bons costumes. Um indivíduo ocioso é um indivíduo sem educação moral, pois não tem noção de responsabilidade, não tem interesse em produzir o bem comum nem possui respeito pela propriedade. Sendo assim, a ociosidade é um estado de depravação de costumes que acaba levando o indivíduo a cometer verdadeiros crimes contra a propriedade e a segurança individual. Em outras palavras, a vadiagem é um ato preparatório do crime, daí a necessidade de sua repressão.230

Outro aspecto da repressão à vadiagem que foi encontrado nos processos enquadrados nos artigos de capoeiragem é o relativo à habitualidade da prática e que Sidney Chalhoub pensa que seja uma relação entre pobreza e ociosidade. Para que o delito de vadiagem se configurasse, havia duas condições elementares: o hábito e a

229 NEDER, Gizlene. Criminalidade, justiça e constituição do mercado de trabalho (1890-1927). Tese

(Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1987, p. 315 apud DIAS, op. cit., p. 140.

indigência, “especialmente a última”231. O problema, claro, não era que o indivíduo fosse apenas ocioso; se ele tivesse meios de garantir a sua sobrevivência, isso não poderia ser considerado de nenhuma maneira um crime. “Só a união da vadiagem com a indigência afeta o senso moral, deturpando o homem e engendrando o crime.”232

Ser vadio era, portanto, sinônimo de ser pobre e era essa classe pobre – e perigosa – que deveria se enquadrada, reprimida e moldada à engrenagem do sistema. Por fim, para que se possa refletir sobre os processos que serão apresentados, seria interessante pensar com Sidney Chalhoub sobre a ociosidade e o crime como elementos constitutivos e necessários à ordem – o que talvez justifique a existência desses processos por capoeiragem até quase o final do período em que o Código Penal de 1890 vigorou. Não haveria um dualismo, uma oposição entre dois mundos diferentes, não há um mundo do trabalho e outro da ociosidade, da vadiagem e, consequentemente, do crime, em que os indivíduos considerados como contraventores se ponham à margem do sistema. Há, na verdade, apenas um mundo, em que ociosidade e crime são elementos constituintes e fundamentais da ordem e para que que certo tipo de sociedade se reproduza.

Há que se questionar a visão tradicionalmente veiculada pelas classes dominantes brasileiras – tanto no passado quanto no presente – que a vadiagem e o crime, que são noções cuja produção social por si só já constitui um importante campo de análise, são contradições dentro do sistema, simples consequências indesejáveis de suas deficiências. Em suma, a hipótese que se quer lançar aqui é a de que a existência da ociosidade e do crime tem uma utilidade óbvia quando interpretada do ponto de vista da racionalidade do sistema: ela justifica os mecanismos de controle e sujeição dos grupos sociais mais pobres.233

231

CHALHOUB, op. cit., p. 75.

232 Ibid., p. 75. 233 Ibid., pp. 79-80.

3. “Peças fora da engrenagem”: os presos por capoeiragem e seus processos criminais

Nas décadas de 1920 e 1930 praticamente inexistem prisões por capoeiragem, o que nos leva a pensar que a incorporação do ideário nacionalista começa a fazer efeito, também, sobre os órgãos de repressão.234

A citação acima é de Izabel Ferreira, que também sustenta que, ao passo que a capoeira baiana tornava-se hegemônica no país, a partir da ascensão de Getúlio Vargas ao poder, a prisão de capoeiras tornou-se praticamente inexistente235. Não há como afirmar o que a autora gostaria de defender quando fala em “prisões praticamente inexistentes” – Poucas? Muito poucas? Algumas? –, mas foram levantados 29 processos criminais enquadrados nos artigos 402 e 403 do Código Penal de 1890 de data maior ou igual a 1930 somente daquelas pretorias já catalogadas pelo Arquivo Nacional. É possível – e provável, uma vez que há pretorias criminais geograficamente centrais ainda não catalogadas pela instituição – que existam mais processos desses artigos. Ou seja, claro que não se pode comparar o número de prisões feitas a partir da segunda década do século XX com o daquelas efetuadas logo após a promulgação do Código, no entanto, é possível comprovar que essas prisões continuaram existindo.

De maneira geral, o que se tem dos registros e das pesquisas sobre o tema é que a repressão à capoeira liderada por Sampaio Ferraz conseguiu impor, nos primeiros meses do Governo Provisório, um refluxo à prática236 – uma praga que, se não estava extinta, havia, pelo menos, sido minimizada:

Após o impacto inicial sofrido pela capoeiragem, por força da ação do chefe de polícia, o balanço foi-lhe bastante desfavorável. Nos primeiros quarenta dias, segundo seu biógrafo, pelo menos 1.300 capoeiras foram enviados para Fernando de Noronha. Dessa forma, é difícil deixar de aceitar que as nações e as maltas estivessem praticamente desbaratadas.237

Luiz Sérgio Dias também fala da “resistência” da capoeira em ser dizimada no período de transição entre os dois séculos, inclusive cogitando que, em paralelo ao processo de repressão, houve um outro, de alteração no caráter do temor social à

234 FERREIRA, Izabel, op. cit., p. 57-58. 235 Ibid., p. 18.

236

DIAS, op. cit., p. 130.

237 Ibid., p. 132. A obra a que Luiz Sérgio Dias faz referência no trecho é FERRAZ, Mário de

prática: progressiva e lentamente, a preocupação com os capoeiras foi suplantada pelo crescente medo da vagabundagem238. A análise dos processos neste capítulo pode atestar essa asserção. Mas, afinal, seria possível que uma manifestação popular de peso e importância na vida da cidade fosse passível de ser eliminada apenas com a repressão policial sob os mandos de um único chefe de polícia? Essa é uma lacuna ainda deixada pela historiografia.

Mesmo com todas as críticas existentes239 ao uso de documentação policial, esse tipo de fonte apresenta um outro discurso para o estudo do tema da capoeira. Pode ser complexo tentar fazer uma história social “vista de baixo” lançando-se mão de um corpus documental composto por processos judiciais, no entanto, não se deveria renunciar à tentativa simplesmente porque as fontes foram produzidas por instituições oficiais. Fala-se em uma história “vista de baixo”, porque é claro que não se está principalmente interessado aqui em versões ou discursos construídos pela oficialidade acerca da capoeira – apesar de que tais versões são úteis como contrapontos ao que se deseja acessar. O que se quer é tentar ouvir as vozes que, se dependessem daquelas mesmas instituições policiais, não teriam sobrevivido. Mas essas vozes estão lá, falam e, quando não, gritam. O desafio está em saber escutá-las através dos ruídos espaciais, temporais, materiais, formais etc.240

É, portanto, a partir de uma inquietação causada pela ausência de estudos mais profundos acerca da capoeira, que utilizassem as fontes propostas e que cobrissem esse espaço e esse tempo já “tradicionalmente” negligenciados pela historiografia, que se tomou a decisão de voltar-se para o estudo dos processos criminais. O intuito de início era de que a documentação principal fosse constituída pelos processos-crime enquadrados nos artigos 402, 403 e 404 do Código Penal de 1890241 entre 1920 e 1940. Nenhum documento relativo ao artigo 404 foi encontrado e o último processo disponível com que se trabalha data de 1938.

238 DIAS, op. cit., p. 134.

239 Vf., por exemplo, CHALHOUB, op. cit., p. 39-42, em que o autor faz um breve panorama dessas

críticas feitas à utilização de documentação policial como fonte histórica.

240 “Apesar das mediações introduzidas pelos interrogatórios do delegado e do juiz e pelas anotações

dos escrivães da delegacia e da pretoria, os personagens de carne e osso que protagonizam efetivamente a trama em questão berram bem forte, e os ecos distantes de suas vozes fazem vibrar os nossos tímpanos” (CHALHOUB, op. cit., p. 36).

241 Essa lesgislação assim como o capítulo XIII, “Dos vadios e capoeiras”, encontram-se nos Anexo I,

Como foi dito no segundo capítulo, havia uma legislação complementar que regulava esses artigos do Código Penal242 – que com frequência é mencionada na documentação analisada – e que produziu uma grande quantidade de processos criminais, que se começou também a levantar no Arquivo Nacional. No entanto, para este trabalho, fez-se uso somente daqueles processos enquadrados nos artigos mencionados do Código. Esses processos referentes à legislação complementar, além de classificados pelos artigos principais dos instrumentos legais, são, dentro desses, separados pelos parágrafos de tais artigos.

No Arquivo Nacional, tal documentação está, naturalmente, classificada apenas pelos artigos do instrumento legal (dos decretos), e não por parágrafos específicos dentro do texto. Para a análise dessas fontes, seria preciso fazer o levantamento de todos os processos enquadrados em determinados artigos desses decretos e, então, refinar a documentação pelos parágrafos relativos à capoeiragem. Como já foi exposto, chegou-se à conclusão de que o exame de fontes tão específicas seria pretensioso – principalmente por conta do grande número de processos. Dessa forma, optei por focar a análise apenas nos processos dos artigos 402 e 403 do Código Penal.