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Todos falam dele: o “Cavanhaque de Aço” e o “extermínio”

2. A letra da lei

2.1. Legislação anterior ao Código Penal de 1890

2.1.1 Todos falam dele: o “Cavanhaque de Aço” e o “extermínio”

Finalmente, pouco depois da proclamação da república em novembro de 1889, o chefe de polícia João Batista Sampaio Ferraz lançou um esforço continuado contra as maltas de capoeira. Recebendo poderes ilimitados para lidar com o problema pelo próprio presidente provisório Deodoro da Fonseca, Ferraz deportou sumariamente muitos daqueles presos em diversas levas para a colônia prisional na ilha de Fernando de Noronha, quebrando efetivamente a força das maltas.183

Notaram-se, ao longo da pesquisa, algumas narrativas recorrentes na produção literária acerca da capoeira, como a famosa luta entre Ciríaco e o japonês lutador de jiu-jitsu Sado Miako, em 1909; a participação de capoeiras na Revolta dos Mercenários no Rio de Janeiro, em 1828; na Guerra do Paraguai, em 1870, e na formação da Guarda Negra. Além, é claro, das narrativas referentes aos mestres e à capoeira da Bahia. No entanto, a que mais chamou a atenção e que foi, em parte, motivadora e ponto de partida deste trabalho foi a referente a um chefe de polícia da cidade do Rio de Janeiro, João Batista Sampaio Ferraz. Alguma bibliografia aponta para a importância de sua atuação como responsável pela extinção da capoeira da cidade.

As quatro passagens abaixo, por exemplo, constituem algumas referências da recorrência com a qual circula a crença em uma extinção da capoeira da cidade do Rio de Janeiro depois da ação do chefe de polícia tanto no meio acadêmico, quanto no jornalístico ou no dos próprios capoeiristas contemporâneos.

181 HOLLOWAY, op. cit., 1989a, p. 669.

182 Tradução livre de “Like his predecessors following similar efforts, the chief declares capoeira

‘nearly extinct, except for an isolated act here and there’. Relatório do Chefe de Polícia da Corte, 1878, pp. 31-32, Annex to Relatório do Ministério da Justiça, 1878”. Vf. nota 65, HOLLOWAY, op. cit., 1989a, p. 670.

183 Tradução livre de “Finally, soon after the proclamation of the republic in November 1889, Police

Chief João Batista Sampaio Ferraz launched a sustained effort against the capoeira gangs. Given discretionary powers to deal with the problem by Provisional President Deodoro da Fonseca himself, Ferraz summarily deported many of those arrested in several dragnets to the prison colony on Fernando de Noronha Island, effectively breaking the strenght of the maltas” (HOLLOWAY, op. cit., 1989a, p. 671).

E assim, Sampaio Ferraz cumpriu o seu juramento, prestando desse modo um dos maiores serviços à cidade do Rio de Janeiro – a extinção dos capoeiras.184

[...] Foi o sr. Sampaio Ferraz, há muitos anos falecido, quem extinguiu os

capoeiras do Rio, dando-lhes ativa caça. Cada malta tinha a sua

denominação e a sua zona, sendo frequente travar-se entre elas sanguinolentos encontros.185

A capoeira do Rio foi desbaratada pela perseguição policial que veio com a Proclamação da República (1889), mas deixou sua herança: o malandro carioca, com sua navalha, sua ginga, seu conhecimento da vida de rua, sua facilidade de ‘conversar’ e sua ‘psicologia’. Cantado nos sambas, principalmente entre 1900 e 1930, o malandro é um mito que vive na imaginação – e no imaginário – carioca, e influiu na maneira de ser do brasileiro.186

Mas o mal se perpetuará, e só na República, ninguém o ignora, serão os famosos ‘capoeiras’, sucessores dos vadios da colônia, eliminados da capital.187

Essa perspectiva, entretanto, já foi revisada e a questão não é mais ponto pacífico entre os estudiosos. Notou-se a falta de algum trabalho historiográfico efetivo que tratasse desse período e o estudo de Antônio Pires188 é valioso nesse sentido. Marcos Bretas, por exemplo, defendeu a ideia de que a repressão desencadeada por Sampaio Ferraz servira para aniquilar as maltas de capoeiras – o que um pouco mais tarde foi refutado por Antônio Pires ao constatar o “grande número de presos no artigo 402”189

encontrado no período.

Joel Rufino dos Santos, no prefácio do livro de Luiz Sérgio Dias, diz:

[...] aprendemos neste livro como a capoeira chegou ao apogeu, aí por 1880, foi estrangulada pelo Cavanhaque de Aço, uma espécie de Robespierre de direita, para sobreviver, na pessoa do ‘bamba’, até se transformar num esporte nacional, tranquilo e decente como a feijoada e o samba.190

Carlos Eugênio Líbano Soares, ao contextualizar a produção literária de Mello Moraes Filho, afirma que tal cronista escrevia “quando da repressão movida pelo governo provisório de Deodoro da Fonseca, nos primórdios do regime republicano, e

184 Hermeto Lima. “Os capoeiras”, Revista da Semana, edição 00042, 10 de outubro de 1925, p. 28. 185 “Gíria portuguesa (continuação)”, Correio da Manhã, edição 09773, 28 de novembro de 1926, p. 10. 186

CAPOEIRA, Nestor. Capoeira: pequeno manual do jogador. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 48.

187 PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1957, p. 282

apud DIAS, op. cit., p. 23.

188

PIRES, op. cit.

189 Ibid., p. 44.

que passaria à história como a ‘morte’ da capoeira no Rio de Janeiro”191

. Izabel Ferreira também faz alusão a um movimento de dispersão que teria se dado por conta dessa possível desarticulação das maltas nas primeiras décadas da República – ao passo em que se iniciava um movimento calcado na propagação de um ideário nacionalista, “em que a capoeira surge como o movimento cultural aglutinador das raças formadoras da nacionalidade, amparada pelo movimento em defesa do folclore e de uma cultura genuinamente brasileira”. A autora atribui a certo projeto de divulgação da cultura baiana, levado a cabo pelo governo da Bahia e difundido por seus intelectuais – “Jorge Amado, Gilberto Freyre e Édison Carneiro” –, um deslocamento no imaginário nacional da capoeira do Rio de Janeiro para o estado nordestino.

É sabido que, na segunda metade do século XIX, a aliança entre nagoas e os conservadores, de um lado, e entre guaiamus e os liberais, de outro, significava que a repressão aos capoeiras pelas autoridades usualmente era parcial e, portanto, ineficiente – isto é, a repressão acontecia sempre de acordo com o interesse do partido que estava no poder192. O partido republicano, fundado em 1870, foi uma das poucas organizações políticas do Império que se opôs abertamente às maltas. Inspirado pelo fervor revolucionário jacobino, decidiram erradicar tal flagelo social. É nesse momento que entra em cena o procurador público, João Batista de Sampaio Ferraz, “reputadamente um praticante da arte ele mesmo”193

, que foi nomeado chefe de polícia imediatamente após a instauração da República e que teve carta branca para adotar medidas mais radicais contra os capoeiras: “Em apenas uma semana, de 12 a 18 de dezembro, 111 indivíduos foram presos por serem alegadamente capoeiras. Durante os meses seguintes, centenas mais foram detidos”194

.

Izabel Ferreira afirma que o papel desempenhado por Sampaio Ferraz foi essencial para a formação da sociedade carioca e principalmente para a história da

191 SOARES, op. cit., 1994, p. 10. 192

“Outra hipótese, defendida por autores diversos, era que o conflito político-partidário entre liberais e conservadores acabou se cristalizando como a clivagem mais importante entre as maltas de capoeiras, que assim se ligaram indelevelmente ao destino dos dois partidos principais do sistema político do Império [...]. Para os cronistas da Primeira República, essa divisão das duas principais maltas entre os maiores partidos do Império definia uma estratégia específica, que garantia a perene permanência das maltas contra as investidas frequentes da ação policial. Transformados em braços armados dos dois polos principais do poder do regime, nagoas e guaiamus garantiam sua própria sobrevivência frente às intempéries políticas do Segundo Reinado [...]” (SOARES, op. cit., 1994, p. 41).

193 Tradução livre de “reputedly a practitioner of the art himself” (ASSUNÇÃO, op. cit., p. 90). 194

Tradução livre de “In just one week, from 12-18 of December, 111 individuals were arrested for allegedly being capoeiras. During the following months, hundreds more were detained” (ASSUNÇÃO, op. cit., p. 90).

capoeira, tendo sua atuação política sido marcada pelo arbítrio e pelo autoritarismo. Militante republicano, partidário da ideologia jacobina da Revolução Francesa, discípulo e amigo de Silva Jardim195, com quem partilhava os ideais da filosofia positivista, é unanimidade na bibliografia levantada que o advogado foi chamado pelo general Deodoro da Fonseca para assumir o cargo de chefe de polícia do recém- constituído Distrito Federal.

Ferraz agia através de uma rede de informantes e buscava dar prioridade à prisão dos chefes de maltas, os capoeiras mais velhos e experientes e que, por isso mesmo, eram núcleos articuladores da prática196. O que não quer dizer que outros grupos também não tenham sido alvo da perseguição: policiais adeptos da capoeiragem197, assim como o próprio Juca Reis, filho do Conde de Matosinhos, também foram presos. Ninguém foi poupado e a regra era simples: se era capoeira, deveria, então, ser detido e enviado para Fernando de Noronha.

Sampaio Ferraz procurou limpar o Rio de Janeiro da ralé que infestava as ruas. De sua ordem positiva estavam excluídos ‘prostitutas, curandeiros, vigaristas, capoeiras, desertores, feiticeiros, toda a imensa fauna do

basfond fluminense do fim do século foi alvo da onda moralizadora da

gestão de Sampaio Ferraz’198.

A atuação do chefe de polícia passou-se quase toda arbitrariamente, uma vez que durante o período em que empreendeu as prisões, a capoeira ainda não era legalmente criminalizada. Como visto, isso só acontece em 11 outubro de 1890, com a promulgação do Código Penal da República através do decreto n. 847. Ferraz deixa o posto em novembro do mesmo ano, tendo sido capaz de em pouco tempo causar uma grande alteração na organização da capoeira no Rio de Janeiro.

Dias chama a atenção para a importância da concentração em determinados bairros ou regiões da cidade na repressão à prática: “As primeiras investidas voltaram-se principalmente para certos bairros considerados perigosos pelas autoridades e concentradores de capoeiras. Gamboa, Saúde, Cidade Nova, Mangue,

195 Antônio da Silva Jardim (1860-1891) foi um advogado, jornalista e ativista político brasileiro,

formado na Faculdade de Direito de São Paulo. Teve atuação nos movimentos abolicionista e republicano, particularmente no Rio de Janeiro, na defesa da mobilização popular para que tanto a abolição quanto a República produzissem resultados efetivos em prol da sociedade brasileira.

196 FERREIRA, Izabel, op. cit., p. 46-47.

197 “Ficam presos: o soldado da 8a comp. Manuel Vieira, por ter alterado e ameaçado uma patrulha que

prendera um indivíduo seu afeiçoado...” (AGPMRJ, Ordens do detalhe do Corpo Militar da Polícia no Município Neutro, 1889-1890, 14 dez. 1889 apud FERREIRA, Izabel, op. cit., p. 47 apud SOARES, 1994, p. 297).

Mata-Cavalos, Lapa, entre outros (...)”199. Como será possível comprovar no próximo capítulo, essa concentração de atuação dos capoeiras não se altera entre os anos 1920 e 1940. Os bairros centrais do Rio de Janeiro continuam sendo reduto de atuação de capoeiras – ou, no mínimo, local para o qual a repressão se dirigia com mais força, vide a quantidade de processos oriundos das 3a e 5a Pretorias Criminais, que abrangiam as freguesias de Santo Antônio, Sant’Anna, Espírito Santo e Engenho Velho.

Sampaio Ferraz, no período de sua atuação e mesmo posteriormente, passou a ser visto como herói, como “o coveiro da capoeira”200

, como o responsável pela definição da morte da capoeira. O ano de 1890, aparentemente, assistiu à progressiva destruição da “natureza associativa” da prática – leia-se as maltas –, que há tempos resistia e desafiava a sociedade e as autoridades cariocas.

Essa suposta mudança organizacional da capoeira foi a principal motivação desta pesquisa. As perguntas fundamentais que nortearam a investigação foram: que fim teria levado aquela capoeira que marcou violentamente o cotidiano do Rio de Janeiro do século XIX? Teria realmente a atuação de um único homem conseguido dar cabo da prática? O que norteou este trabalho foi a tentativa de rastrear a presença da capoeira na cidade nas duas últimas décadas em que vigorou o Código Criminal de 1890, isto é, a partir dos anos 1920 até a aprovação do novo Código Penal brasileiro, em 1940, em que o artigo que criminalizava a capoeiragem já não mais existia.

Um pouco por teimosia – uma manifestação de tal importância pode ser controlada apenas com repressão policial? –, mas também pela ciência do trabalho de Antônio Pires, que já começara a demonstrar documentalmente a inconsistência da tese da extinção da capoeira por Sampaio Ferraz, optei, então, por recorrer também às fontes criminais e tentar identificar esses sujeitos que ainda estavam sendo detidos pela prática da capoeiragem. Quem eram esses indivíduos, por que estavam sendo presos e qual a diferença entre eles e aqueles que começavam a se denominar capoeiristas e que eram positivamente noticiados na imprensa?

No início do século XX, acontece, portanto, uma profunda mudança na prática da capoeiragem, com sua transformação em ‘cultura negra’ e em símbolo de nacionalidade, além de seu posicionamento no campo desportivo das lutas marciais. Interessa-nos esse momento de transição e, por isso, a opção de recorte cronológico

199 DIAS, op. cit., p. 129. 200 Ibid., p. 134.

foi feita de tal maneira. Contudo, faz-se imprescindível, antes de ater-se de fato aos processos criminais, primeiro, voltar a atenção à letra da lei dos artigos 402, 403 e 404 do Código – e ao capítulo XIII como um todo –, ou seja, ao discurso que criminaliza um comportamento e seu contexto de entrada em vigor.