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O conceito de cidadania reproduz, através do seu próprio instrumento conceptual, marcas históricas de desigualdade. Ao mesmo tempo, a cidadania é uma categoria simbólica profundamente contestada por diferentes grupos de interesse, e necessitamos de uma nova agenda em que uma visão da cidadania inclua os diversos eixos de desigualdade e opressão (Arnot, 2003). Neste sentido, é necessário reivindicar direitos de igualdade, ao mesmo tempo exigindo o direito de continuar a ser diferente.

Mas a questão da cidadania não se pode confinar a direitos e deveres que, ditos desta forma, parecem ter um carácter normalizador e generalizado para todos os cidadõas/ãs, sem respeito pelas especificidades de cada ser. É certo que não podemos ter decretos personalizados mas também não podemos cruzar os braços e esperar que tudo aconteça. Pugnar por uma maior igualdade de oportunidades, por justiça social, de forma a que ninguém fique e se sinta excluído de ser cidadão/ã de "primeira".

Não sairemos da crise de injustiça com o conceito de cidadania que nos "impingem", rotulado como promotor de igualdade e de justiça. Novas perspectivas se vão abrindo, mostrando caminhos para que novos conceitos de cidadania se inventem em prol da concretização da justiça social.

Então, que cidadania esperamos nós encontrar? Quando nos referimos à cidadania, percebemos imediatamente que este conceito só serve para alguns, e que muitos "outros" não cabem neste modelo. Como tal, as pessoas portadoras de deficiências serão então, neste contexto de cidadania, consideradas como "os/as outros/as" ficando, por isso, habitualmente excluídos.

Através das narrativas destas mulheres portadoras de deficiência, percebemos que, para concretizar a sua autonomia, é necessário confrontar-se com situações que são difíceis e embaraçosas para todas as pessoas, mas ainda mais constrangedoras para as pessoas portadoras de deficiência, pois a sociedade, no caso, portuguesa, conserva ainda uma mentalidade "tradicional" que não ajuda em nada a sua inserção na "vida activa".

E por muito que se esforcem, a verdade é que a opinião dos/as outros/as é muito importante, e as dificuldades são múltiplas, como por exemplo, a dificuldade em arranjar emprego e a de realização pessoal e afectiva.

As narradoras sentem que é urgente uma mudança de mentalidade e de atitude, uma vez que ninguém é perfeito, por isso, será necessário uma maior abertura às diferenças.

Sobretudo, é preciso entender que todos/as são importantes e todos/as têm um papel relevante a desempenhar.

Só um conhecimento informado das vidas e reflexões de quem vive na diferença, nutrindo, frequentes vezes, um alento vivencial que fracassa em encontrar lugar socialmente justo, poderá aceder a experiências que desdizem, de modo pungente, o fatalismo incapacitante que a deficiência evoca. Concretamente, a antiquíssima história de desprestígio dessa diferença, a estrutura social imune às transformações que seriam passíveis de conduzir a uma igualdade de oportunidades e as formas estreitas de valorização social dos sujeitos.

A literatura feminista recente desenvolveu o conceito de cidadania e explorou os modelos que demonstram a centralidade das mulheres como cidadãs. Por exemplo, Lister (1997) cita o processo de negociação entre as instituições do estado de bem estar como o principal exemplo das suas sínteses entre as tradições dos direitos livres individuais iguais e o envolvimento público activo, apontando que a responsabilidade por este processo largamente cai sobre as mulheres. Mais ainda, vemos que são as mulheres, em geral, que têm que lidar com as questões levantadas pela deficiência. Lloyd (2001), no entanto, argumenta que a perspectiva da deficiência está largamente ausente na literatura feminista contemporânea sobre cidadania.

Focar a contribuição da perspectiva feminista sobre os direitos da pessoas portadoras de deficiência para os debates da cidadania pode servir tanto como uma ênfase correctiva como um enriquecimento conceptual.

Género e deficiência: experiência "simultânea" de discriminação

Podemos, então, argumentar que as actuais construções do modelo social reflectem a agenda dos homens portadores de deficiência e ainda não providencia uma abordagem adequada para a experiência simultânea das mulheres, enquanto pessoas portadoras de deficiência e como mulheres (Lloyd, 2001).

No interior de cada um destes dois eixos primariamente usados para formular o modelo social de deficiência, a discriminação sócio-económica, a medicalização da deficiência e a sua relação com os cuidados de saúde, os problemas referenciados pelas mulheres portadoras de deficiência podem ser perspectivados tanto devido ao seu género como à sua deficiência. Igualmente, as mulheres deficientes têm-se descoberto largamente

ignoradas pelas feministas e a sua perspectiva, ou é perdida, ou é uma variante da análise feminista. Assim, as mulheres portadoras de deficiência têm sido apanhadas no cruzamento, por um lado, de uma análise e um movimento no qual têm sido invisíveis como mulheres e, por outro, no qual a sua deficiência tem sido ignorada no grupo dos deficientes.

Na medida em que as frustrações e aspirações das mulheres portadoras de deficiência são exploradas, vemos diferentes perspectivas face às dos homens portadores de deficiência. As mulheres portadoras de deficiência estão preocupadas em explorar questões da sexualidade ou da identidade sexual, desafiar as imagens estereotipadas e opressivas e constrangedoras e os costumes opressivos relacionados com a maternidade e com o cuidar das crianças, e em identificar criticamente os imperativos dominantes à volta do aspecto físico e social da auto apresentação. Esta é uma agenda partilhada por todas as feministas. No entanto, as questões levantadas pelas mulheres deficientes mostram divergência e muitas vezes oposição à perspectiva dominante do feminismo. A mulher portadora de deficiência tem primeiro que lutar contra o preconceito que a exclui da realização do estereótipo. Para muitas, atingir e manter os papéis e as funções femininas tradicionais é o exercício dos seus direitos como seres humanos e cidadãs aos quais elas aspiram (Lloyd, 2001).

Há questões para as mulheres deficientes que as colocam à parte da agenda feminista dominante, como por exemplo, os modelos alternativos do feminismo sobre a imagem corporal e estética das mulheres, que podem ser libertadores para a maioria das mulheres, mas são inatingíveis para as mulheres portadoras de deficiência. Senão vejamos, a enfatizada mulher de carreira, mantém como "normal" níveis de energia e aspectos de apresentação que estão para lá daquilo que pode ser atingido pela maior parte das mulheres portadoras de deficiência.

A identidade sexual de uma mulher deficiente é mais provável ser reconhecida quanto mais perto ela se possa aproximar das noções estereotipadas de feminilidade, incluindo a fragilidade do "sexo fraco".

Por comparação a filosofia inclusiva, mais uma vez, prestou pouca atenção ou nenhuma aos desejos e necessidades das mulheres portadoras de deficiência.

Assim, quando o longo discurso feminista se notou na construção da maternidade como um fardo para o direito das mulheres a fazerem escolhas sobre e na maternidade ou acerca da maternidade, às mulheres deficientes foi negada a possibilidade de exercitar essa escolha até que elas possam provar que são capazes de preencher o papel e a

função estereotipada de mãe. A prática mais comum, na situação das mulheres portadoras de deficiência que porventura tenham um relacionamento afectivo com um parceiro, é o forçar para a esterilização.

Para as narradoras, as questões de género passam quase exclusivamente pelo "machismo" e pelas desigualdades de direitos entre homens e mulheres, isto é, o que é permitido aos homens não é permitido às mulheres, em particular em contextos rurais. Para eles, a vida pública, para elas, a vida doméstica.

As questões de género não fluíam naturalmente nos seus discursos e, por isso, e porque compunham o nosso objecto de estudo, provocávamos o deslizar da conversas neste sentido, o que sortia pouco efeito. Por vezes, chegámos mesmo a ser directas, formulando perguntas. Tecemos várias suposições, em redor destes silêncios, sem atingirmos argumentos que nos convencessem. O artigo de Lloyd (2001) trouxe-nos a possibilidade de clarificar, ou talvez interpretar estes silêncios. Remetemos este facto para a ausência de consciência das discriminações de género, mas rendemo-nos completamente aos argumentos apresentados noutras investigações que confirmam que as teorias feministas mainstream também são constrangedoras para as mulheres portadoras de deficiência, como já tivemos oportunidade de referir, e a necessidade de uma reconceptualização da agenda feminista, considerando a contribuição da perspectiva dos direitos e da experiência simultânea de mulheres e portadoras de deficiência.

O "corpo" no eixo dos sentimentos de exclusão

Nesta pesquisa, ressaltam as questões do corpo, onde as experiências e subjectividades das narradoras salientam como a primeira impressão de alguém para com outrem fica sempre marcada pela experiência do corpo; este ocupa sempre o lugar de destaque, isto é, umas vezes de aproximação, outras de rejeição, na primeira apresentação. Neste caso, mesmo que de forma indirecta, é através do corpo que experimentam muitos constrangimentos e sentimentos de exclusão.

As narradoras não foram muito explícitas em relação aos constrangimentos em relação ao seu corpo, quando se referem a ele, mas vão dizendo que se os seus corpos não apresentassem deformações, sentir-se-iam muito mais aceites.

Assim, as narradoras contam experiências pessoais em que vivenciaram sentimentos de exclusão. Estes sentimentos surgem logo na infância pelo facto de não poderem experimentar as mesmas coisas que as/os seus pares, quer pelas limitações físicas, quer pela forma como são olhadas pelos outros/as.

E depois, na emergência da adolescência, a importância do sentimento de não pertença ao grupo de pares parece agravar os sentimentos de exclusão, na medida em que não se sentem "chamadas" a pertencer ao "grupo". Por vezes, são mesmo alvo da "chacota" dos colegas que lhes "chamavam nomes".

Os sentimentos de ser excluídos/as pelas/os outros/as vão sendo interiorizados ao ponto de se transformarem em auto-exclusão e, por vezes, o evitamento da sociabilidade, levando a não aceitar convites para eventos sociais (festas, jantares, encontros) por não se sentirem confiantes. E simples actos da vida quotidiana transformam-se em obstáculos sentidos como intransponíveis, como a simples tarefa de cortar a carne ou o peixe à mesa de um jantar "social".

Os sentimentos de exclusão vividos na infância e na adolescência prolongam-se e repetem-se na idade adulta e acompanham-nas durante toda a sua vida. Sentem que o olhar excludente parece vir mais de pessoas que elas expressam como pertencentes a uma classe social diferente (superior) da sua.

Quando se referem à questão dos namorados, declaram mesmo sentimentos de medo e têm a noção de que as relações afectivas são um assunto complicado para qualquer pessoa, sendo que, para elas, "é ainda pior". Há, de facto, mais dificuldades de aproximação e menos possibilidades de estabelecer conhecimento.

Mas, por vezes, mesmo sabendo que correm alguns riscos, entre eles o do desprezo, têm sentimentos como qualquer outra pessoa, são permeáveis à atracção, ao fascínio, ao desejo ou mesmo à necessidade de amar e ser amadas, e também se apaixonam. Apesar de se tratar de duas narradoras solteiras, consideram que a sua felicidade não está dependente do casamento, mas por alguma razão sentem necessidade de o referir. Sonham com a possibilidade da realização afectiva, mas evitam-na, uma vez que estão conscientes de que os seus direitos reprodutivos são uma das principais discriminações experimentadas pelas mulheres portadoras de deficiência que surge não das expectativas sociais delas como mulheres esposas e mães, mas da negação da sociedade do seu direito e da sua capacidade para preencher exactamente esses papéis, enfrentando a ignorância e desaprovação em relação ao seu desejo e capacidade para uma relação sexual, ficam-se pela resignação de que o "casamento não é tudo".