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Pretende-se, nesta investigação, tal como já afirmámos na introdução deste capítulo, produzir conhecimento no campo das Ciências da Educação e dos estudos sobre as mulheres, nomeadamente sobre mulheres portadoras de deficiência. Sobretudo, pretende ser um olhar, uma perspectiva sobre as experiências e subjectividades de mulheres portadoras de deficiência. A primeira questão que se coloca é: quem vamos ouvir? Não tínhamos definida uma tipologia da deficiência e, pelo contrário, gostaríamos de perceber as convergências e divergências vividas por cada uma delas, sabendo que a realidade de cada deficiência é demasiado complexa para que se pretenda abordá-las a todas num só trabalho, também não era a especificidade técnico-científica de cada uma das deficiências (visual, auditiva, motora e mental) mas sim o efeito de ser deficiente num mundo que só agora começa a dar os primeiros passos no sentido de os/as incluir como pessoas.

Pensámos em entrevistar uma mulher portadora de deficiência visual, outra portadora de deficiência motora, outra de deficiência mental ligeira e outra portadora de surdez mas que fizesse leitura labial e usasse linguagem oral e gestual. Pretendíamos mulheres na faixa etária entre os 20 e os 40 anos, uma vez que mulheres com mais idade, provavelmente, não teriam a experiência de ter passado pela escola uma vez que as 2 No sentido que Young compreende a acção comunicativa como envolvendo uma reciprocidade

primeiras experiências de integração remontam aos anos 1980 e mais novas também não teriam, provavelmente, experiências de vida tão ricas e complexas como seria desejável. E foi com este ponto de partida que começámos a efectuar os contactos com as entrevistadas. Não era difícil saber onde e como encontrá-las, uma vez que vimos muitas destas mulheres crescer, desenvolver-se e criar a sua própria autonomia.

Foi assim que elegemos a Sónia, portadora de deficiência visual, tem 30 anos, completou o 12° ano, frequentou um curso de formação profissional de geriatria e teve algumas experiências como profissional. Começámos as nossas conversas, gravámos algumas delas, mas não conseguimos dar uma unidade a essas entrevistas que não chegaram a formar uma história de vida. O tom de voz nem sempre era perceptível e tornava-se muito difícil a sua transcrição. A Ana tem 36 anos, é portadora de deficiência auditiva, é surda mas como a surdez foi adquirida depois da linguagem oral a Ana fala e lê linguagem labial. Encontrar alguém com estas característica nem sempre é fácil. Fizemos alguns contactos através de mensagens, agendámos alguns encontros mas nenhum se tornou possível. A Sandra tem 26 anos, é portadora de deficiência mental ligeira, é muito reivindicativa, tem um contexto familiar que não a diminui, mas pelo contrário a estimula, respeita e leva em consideração a sua opinião, talvez por isso a Sandra tem noção dos seus direitos e da resistência que encontra na sua concretização, principalmente no plano afectivo. Começou muito entusiasmada a primeira etapa das entrevistas, entretanto alguém, provavelmente não tão bem intencionado, disse à Sandra que eram entrevistas só para pessoas portadoras de deficiência e a Sandra não gostou, não gosta de se sentir incluída nesse grupo minoritário e desanimou. A sua linguagem não é muito clara e também não era fácil a transcrição das entrevistas. Elegemos a Emília, portadora de deficiência motora, porque tinha feito um bom percurso académico e seria muito produtiva a sua experiência sobre as questões da educação, para além de que a sua formação académica era também na área da educação.

Em termos operacionais tínhamos apenas uma entrevistada capaz de prosseguir com esta tarefa e por questões de ordem prática escolhemos outra mulher portadora de deficiência motora, a Filomena, com passagem pela escola e experiência profissional, estava sempre disponível para conversar o que facilitou a pesquisa. E foi assim que chegámos à Emília e à Filomena.

Construindo histórias de vida

Na elaboração de cada história de vida, seguimos o caminho epistemológico apontado por Araújo (1993) e Ferrarotti (1983), procedendo à "leitura horizontal e vertical da biografia e do sistema social, movimento heurístico de vai e vem da biografia ao sistema social, do sistema social à biografia" (Ferrarotti 1983: 59). Este "duplo movimento significa a reconstrução completa das «totalizações» recíprocas que exprimem a relação dialéctica entre a sociedade e o indivíduo específico. O conhecimento integral do homem torna-se o conhecimento integral do outro".

A construção de uma narrativa auto/biográfica, como refere Magalhães (2005), é também um momento em que simultaneamente se cruzam dois processos, por um lado, o processo de composição e, por outro, o de compostura, onde emerge alguma coerência que a memória ajuda a elaborar.

As narrativas auto/biográficas que construímos são o que as mulheres nos contaram e o que nós ouvimos, produto da intersubjectividade estabelecida e da própria re/construção textual das narrativas, em que as histórias de vida se constituem como "relatos descontinuamente contados que expressam o nosso sentido do self, explorando as complexidades dos significados variados, significados pessoais e colectivos dos silêncios que dizem repeito a certos assuntos, da defensiva e negação de outros.

"Limpar o texto" na organização da narrativa final

O trabalho de organizar o texto da narrativa final consiste, segundo os critérios de Poirier et ai (1993), essencialmente, em agregar pedaços de relatos sobre assuntos, factos, experiências que, por vezes, surgem em diferentes diálogos e até em diferentes entrevistas, por critérios que permitam devolver à narrativa final a lógica interna da subjectividade da narradora. Articula-se assim, em cada caso, o critério de organização temática e / ou cronológica, permitindo a nós próprias, à narradora, e a eventuais leitoras/es, um acesso mais facilitado às suas experiências e subjectividades. Este processo é também, em maior ou menor grau, realizado com a narradora. Quando voltámos a encontrar-nos com cada uma delas, levávamos já uma versão provisória de como iria ficar a narrativa.

A mediação temporal permite, assim, que alguns dos temas percam a excessiva ênfase e fiquem equilibrados com outros. A construção da história passou, assim, por diversos dilemas, entre os quais a polémica questão da 'limpeza do texto'.

Apesar das especificidades das falas, há necessidade de limpar, ou seja, não transcrever, mas traduzir para a linguagem escrita, as vozes das mulheres, quer pelas características da ruralidade de ambas e sobretudo pelo discurso "embrulhado" e pouco fluente de uma delas.

A relação de interacção - implicação

Optámos por não ter um guião de entrevistas, exactamente na medida em que procurávamos as singularidades das experiências e das subjectividades de cada mulher. O uso de entrevistas estruturadas, segundo Magalhães (2005), na qual a entrevistadora trabalha sistematicamente a partir de uma lista de questões, é rejeitado pelas historiadoras orais porque faz pouco para conseguir agarrar a experiência única do sujeito, a quem nunca é dada oportunidade para se tornar narradora da sua própria história de vida.

Este tipo de motodologia de histórias de vida implica de alguma forma aceder ao "mundo privado" da vida, não fazendo sentido, numa postura de respeito total pela integridade de cada uma, fazer perguntas directas. Os temas foram avançados pela narradora e apenas se e quando a interacção o permitia se tomou a iniciativa de questionar alguns detalhes da vida íntima, ou tentou desviar a entrevista para questões mais dirigidas ao nosso objecto de estudo.

Sendo o resultado de uma interacção dialógica, o processo da construção de histórias de vida integra alguns riscos. Um deles diz respeito ao próprio processo de interacção estabelecida com as pessoas. Como afirma Ferrarotti, existe "«a dificuldade característica» do método biográfico" que reside no facto de que "exige um contrato imediato, de confiança recíproca, entre objecto da pesquisa e o pesquisador" (Ferrarotti 1983: 14). Nesta medida, "o conhecimento torna-se então o que o método sociológico sempre quis evitar que seja: um risco".

Um dos riscos enfrentado diz respeito ao psicologismo, na medida em que a recolha dos testemunhos se fez numa interacção entre a investigadora e uma mulher, sobretudo,

como no caso desta investigação em que já existia uma relação anterior entre investigadora e narradoras e de alguma forma, também representamos, para algumas entrevistadas, as instituições, o estado, o saber.

Sobre este risco de psicologismo, como referem (Magalhães, Fernandes e Oliveira 1991), convém não esquecer que a memória é um terreno movediço, no sentido em que algumas recordações podem reviver e reavivar feridas anteriores.

Dessa data até aqui, a distanciação face ao psicologismo resvalante de uma investigação que consiste grandemente em diversos diálogos a duas, prolongados no tempo, tem também a função de explicitar a recusa de qualquer forma ou modelo clínico / terapêutico neste trabalho. Ferrarotti afirma:

"... a possibilidade de «reviver» a experiência existencial e histórica em termos de «interconexão interior» não é garantia face ao subjectivismo psicologizante e ao idealismo voluntarista" (Ferrarotti 1983: 47).

Há ainda um outro risco, e relacionado com o anterior, o de nos servirmos das pessoas para provar o nosso ponto de vista; para falarmos através delas, aquilo que (Araújo e Magalhães 1999) designam de ventriloquismo, isto é, colocar nas palavras das entrevistadas o que gostaríamos que elas dissessem.

A decisão de colocar por inteiro as histórias de vida no início da tese tem também o objectivo de permitir observar o global de cada história e confrontar com a análise e articulação que se fez nos restantes capítulos. Pode, então, ser visível que tentámos restringir-nos aos materiais auto/biográficos que obtivemos, exercitando continuamente

a "vigilância crítica" sobre nós próprias.

É claro que todas estas mulheres merecem que as suas biografias apareçam com visibilidade pública, mas esse objectivo teria necessariamente que estar desde o início e impediria a presença de algumas experiências e subjectividades que, se conhecidas mais publicamente, podem afectar directamente a narradora em causa. Optámos pela confidencialidade.

Assim, utilizámos nomes fictícios, eliminámos algumas expressões e alguns relatos que de alguma forma pudessem dar origem à identificação das biografadas e, sempre que possível, tentámos fazer este processo com elas.