• Nenhum resultado encontrado

A cidadania desde o período da Revolução Francesa até os dias atuais

2 OS FUNDAMENTOS PARA A BUSCA DE UMA DIMENSÃO AMBIENTAL DA

2.1 Definição histórica e atual de cidadania

2.1.2 A cidadania desde o período da Revolução Francesa até os dias atuais

No período imediatamente anterior à Revolução burguesa ocorrida na França, o regime político vigorante era o absolutismo monárquico, também chamado de “ancien regime”. Durante essa época, o rei era dotado de poder praticamente ilimitado e incontestável, uma vez

que sua condição de governante era sustentada pela crença em um direito divino de ocupar o trono e, portanto, deter o poder. Todo esse poderio era justificado por teóricos como Hobbes e Maquiavel89.

O pensamento expressado no período absolutista era fruto de um contexto histórico anterior de pulverização do poder político nas mãos dos senhores feudais e, paralelamente, de um enorme poder universal da Igreja Católica, a cujos membros mesmo os reis tinham de se curvar. Nesse tempo, os monarcas estavam desejosos de centralização do poder em suas mãos e a burguesia nascente, de uma unidade política e um poder firme que favorecesse o desenvolvimento do comércio, que era dificultado pelo particularismo político e jurídico do feudalismo, conforme ensina Cáceres90.

Na sociedade de direito divino dos reis, o despotismo monárquico retirava qualquer liberdade do indivíduo, que era considerado um súdito, mero seguidor das regras estabelecidas pelo governante, que, como visto, não podia ser contestado nem deveria prestar contas a ninguém senão uma autoridade divina. Também imperava a desigualdade, uma vez que a sociedade era nitidamente estratificada, com direitos, deveres e privilégios específicos para cada uma das classes. Havia, assim, uma pluralidade de ordenamentos jurídicos, cada um dirigido a um estrato social diferente. A nobreza e o clero detinham privilégios mantidos à custa do trabalho das classes inferiores, fazendo surgir nestas a sensação da injustiça e a vontade de mudanças. Ao mesmo tempo, a classe burguesa, já economicamente favorecida, não possuía poder político, e esperava a oportunidade de consegui-lo.

Dentro desse contexto histórico, eclodiu a Revolução Francesa de 1798. Seus ideais, expressos na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, consistiam numa reação ao despotismo monárquico e aos privilégios do clero e da nobreza. A partir desse momento, declarou-se que todo indivíduo era titular de certos direitos perante o Estado, baseados na tríade básica da revolução: liberdade, igualdade e fraternidade.

Da Declaração que constitui fruto do movimento liberal-burguês na França extraem-se três informações importantes. A primeira delas, expressa no artigo 1º, determina que todos os homens nascem livres e iguais em direitos, o que significa dizer que, antes mesmo de ingressar em qualquer sociedade política, o homem é dotado de certos direitos que ao Estado

89 CÁCERES, Florival. História Geral. 4 ed. São Paulo: Moderna, 1994, p. 198. 90 Ibidem, p. 195.

é proibido violar. Em segundo lugar, a Declaração determina que o destino da associação política, seu objetivo por excelência, é a conservação desses direitos naturais ao homem; constitui-se o Estado, portanto, para assegurar a liberdade e igualdade do cidadão, e não para escravizá-lo. Por fim, o terceiro artigo da Declaração afirma que a representação é una e indivisível, ou seja, vedam-se as distinções entre classes ou ordens na representação do povo.91

A partir de então, ocorre uma mudança na ordem das coisas, pois não é o homem que existe para a sociedade, como antes se pensava, mas é a sociedade, ou melhor, o Estado que existe para o homem, para conferir realização aos direitos que lhe são inerentes. Altera-se a relação entre poder e liberdade, pois o homem, ao invés de objeto do poder, se transmuda em titular de garantias perante esse mesmo poder, limitando-o. Oliveira e Guimarães92 afirmam a conseqüência dessa alteração:

Tal inversão atribui à cidadania mais uma dimensão. A cidadania do Estado liberal deixa de ser entendida apenas como o gozo dos direitos políticos, passando a compreender, outrossim, a realização dos direitos fundamentais de primeira dimensão. O cidadão vai, nesse momento, ter um valor ímpar. Ele ganha o direito de participar ativamente da vida de seu Estado, decorrendo essa participação da realização dos direitos de liberdade.

Percebe-se aí, a primeira alteração no caminho evolutivo do conceito de cidadania. O que era entendido como o exercício de prerrogativas políticas, pois na sociedade greco- romana a cidadania era a possibilidade de participação na tomada de decisões nos assuntos públicos por uma pequena parcela da sociedade, ganhou, após as revoluções liberais, um significado de garantia de determinados direitos perante o Estado.

No entanto, com o passar do tempo, passou-se a entender que, na prática, a mera garantia formal de liberdade e igualdade não era suficiente para a efetiva realização dos direitos do cidadão, pois o pensamento liberal pregava a abstenção do Estado na esfera individual do cidadão, ou seja, a liberdade; o cidadão deveria buscar seu desenvolvimento pleno através, unicamente, das suas próprias forças, o que, na esmagadora maioria das vezes, se mostra impossível. Ademais, a atribuição de uma simples igualdade jurídica escondia as

91 Oliveira, Flávia de Paiva M de; Guimarães, Flávio Romero. Op. cit. p. 85. 92 Ibidem, p. 85.

desigualdades sociais e econômicas que existiam, de fato, entre os cidadãos, levando à exploração dos não afortunados pelos detentores do poder econômico.

Nessa perspectiva, Bertaso93 afirma a necessidade de superação da cidadania concebida em sua versão unicamente liberal, encarada sob um prisma individualista da titularidade de direitos e privilegiando a simples igualdade formal. Para este autor, a cidadania liberal moderna era expressa em uma dimensão ligada à nacionalidade, ou seja, cidadão é aquele que é nacional ou filho de nacional, sendo-lhe atribuída esta condição pelas normas constitucionais vigentes; a cidadania teria, ainda, uma dimensão política de legitimação do poder pela dotação ao nacional de direitos políticos; por fim, ressalta que a dimensão de cidadania por ele denominada como jurídica ou meramente normativa é uma construção do direito que atribui um status ao nacional que lhe proporciona um substrato para o exercício de direitos políticos vinculados à democracia representativa, possuindo um caráter dogmático de regulação. Conclui o autor citado que a cidadania deve ser vista encarando o indivíduo como protagonista dentro da sociedade civil numa perspectiva de realização dos direitos humanos, além de representar um status legal de exercício de direitos.

A partir do século XX, então, ciente de que a atribuição de direitos de liberdade não conduzia à participação política efetiva do cidadão numa prática emancipatória, passou-se a afirmar que a cidadania pressupunha a conferência de uma vida digna ao cidadão. De fato, a esse respeito afirmam Oliveira e Guimarães94:

A consciência da importância cidadã de cada indivíduo cede diante de problemas estruturais como o do emprego, o da fome, o da falta de condições de vida digna, ou seja, a consciência cidadã cede ante a exclusão social e o aprofundamento da pobreza que aparece como decorrência da não-realização dos direitos econômicos, sociais e culturais, tão amplamente consagrados e tão pouco realizados.

Dessa forma, a não efetivação de direitos básicos do ser humano impossibilita sua interferência real nos rumos da sociedade política de que faz parte para a efetivação de seus próprios direitos, gerando um círculo vicioso que aprofunda cada vez mais as desigualdades econômicas, sociais e culturais, gerando um contingente de indivíduos excluídos dos espaços de decisão acerca de seus próprios interesses. Esse quadro, importa observar, dificulta

93 BERTASO, João Martins. Op. cit. p. 26-27.

bastante a efetivação da cidadania nos países ditos em desenvolvimento, como é o caso do Brasil.

Para o rompimento desse círculo vicioso, fez-se necessária mais uma dimensão da cidadania, a partir de então entendida, também, como a realização dos direitos fundamentais. Ressalte-se que os direitos fundamentais devem ser encarados pela sua universalidade e atributo da unidade, na medida em que os direitos que concretizam a dignidade da pessoa humana têm de ser considerados em seu conjunto, pois, por serem interligados, não se pode realizar apenas alguns e não os demais. Destarte, afirmam Oliveira e Guimarães95 sobre a concepção hodierna de cidadania:

A cidadania ganha uma nova versão. Ser cidadão, na concepção atual, significa ser partícipe na vida política como decorrência direta e imediata do acesso efetivo aos direitos fundamentais, sejam eles de primeira, de segunda, ou de terceira dimensão.

Pode-se afirmar, então, que a cidadania possibilita a saída do indivíduo da condição de objeto do direito e do poder, alçando-o à condição de sujeito do processo político.