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Cidade, ambiente e política – problematizando a Agenda 21 local

Ana Carneiro*

“Salvar o Planeta”; garantir “o futuro” às novas gerações; promover “a consciência ambiental”; pro-teger “os recursos naturais”. Repetidas como clichês, as boas intenções auto-evidentes do discurso ambien-talista não dão brecha ao dissenso, protegendo-nos assim de qualquer reflexão crítica. Sobre o consenso, entretanto, há muito a pensar. É o que fazem os auto-res do livro “Cidade, Ambiente e Política: Problema-tizando a Agenda 21 local”, ao esmiuçar efeitos práti-cos e discursivos de noções que, à força da repetição, tornaram-se tão abstratas quanto apolíticas. A valiosa tarefa analítica tem por mote um evento significativo na difusão desta crença na realidade objetiva e no va-lor auto contido do repertório de “metas” em favor do

“meio ambiente”. A saber, o surgimento de Agendas 21 locais, pautadas pela Agenda 21 que se elaborou durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, a Rio-92. Ali se pregou o léxico ecologica-mente correto sintonizado com o modelo identificado por Rancière como “pós-democracia consensual”, conforme citação do livro (p.23).

RESENHA

RESENHA: Cidade, ambiente e política – problematizando a Agenda 21 local

ACSELRAD, Henri. MELLO, Cecília Campello do Amaral. BEZERRA, Gustavo das Neves. Cidade, ambiente e política – problematizando a Agenda 21 Local, Garamond, 2006, Rio de Janeio, 133 p.

BOOK REVIEW: City, envioronment and policy - questioning the Local Agenda 21

ACSELRAD, Henri. MELLO, Cecília Campello do Amaral. BEZERRA, Gustavo das Neves. City, envioronment and policy - questioning the Local Agenda 21. Garamond, 2006, Rio de Janeio, 133 p.

A Agenda 21 é um documento em que se apre-sentam as diretrizes para o “desenvolvimento sus-tentável” no mundo. Tendo sido assinada por 170 países, foi, ela mesma, exemplo das tecnologias de formação de consenso que prega: fóruns, conselhos e outros formatos “participativos” surgem ali como um campo de soluções para os problemas sócio-ambientais. Mas até que ponto estes novos espaços decorrem em resultados concretos?

Dentre as propostas elaboradas então, a de cria-ção de Agendas 21 locais apareceu como expressão de uma arvorada nova institucionalidade política.

De acordo com a Conferência de 1992, as Agendas 21 locais a serem formuladas pelos municípios res-tituiriam, no plano “local”, o que a desregulamenta-ção do capital vem destruindo no nível nacional, isto é, a integração de interesses diversos da “sociedade civil” na constituição do espaço público. Assim, di-ferentes atores sociais encontrariam, pelo diálogo, soluções para o impasse entre “desenvolvimento econômico” e “sustentabilidade ambiental”,

consi-derando-se que os efeitos danosos do primeiro sobre o segundo têm na “sociedade” sua principal vítima.

Ma,s se esta depende por sua vez do constante “de-senvolvimento”, o dilema entre uma “natureza” en-tendida como limitada e uma expansão econômica necessariamente ilimitada, se resolve antes nos ter-mos de “reduções de danos” do que de transforma-ção efetiva. A expectativa otimista em relatransforma-ção a es-tas novas coletividades, portanto, apresentam já de saída os limites de uma preocupação que, por fim, é com a “sustentabilidade” do fluxo de capitais.

A proposição da Agenda 21 parte do princípio de que a unidade municipal é onde a sociabilidade e a ação política ocorrem “efetivamente”; onde o cidadão comum, mais próximo das esferas do po-der público, pode de fato atuar. Note-se, entretanto, que este contexto “local” condiciona-se a instân-cias decisórias de escala bem mais ampla, justa-mente a do fluxo internacional de capitais, assumi-do por organismos multilaterais como BID, FMI e Banco Mundial. Quando, a partir dos anos 80, os Estados nacionais viram reduzir-se sua área de atu-ação, e a gestão dos recursos, tidas como de ordem meramente gerencial, foram grandemente atribu-ídas a tais organismos (em nome da “boa gover-nança”), não só as instituições privadas ganharam fôlego. Figuras híbridas entre Estado e sociedade, os chamados “parceiros” formados na experiência de ONG’s, conselhos, comissões e fóruns, apresen-taram-se como alternativa promissora.

Estes formatos “participativos” definem-se pelo consenso a que devem, por princípio, chegar, redu-zindo assim seu potencial dissonante, transforma-dor. O litígio, campo de disputa necessário a toda ação política, é encoberto por uma série de ino-vações discursivas – categorias como “diálogo”,

“consenso”, “boas práticas”, “enfoque sistêmico” e

“visão de futuro” – supostamente neutros. Diluin-do a experiência da diferença, anuncia o venceDiluin-dor antes de iniciar a batalha. Além disto, as Agendas locais têm, como efeito do discurso que lhes dá for-ma, a criação de coletivos que sequer têm poder decisório, pois, conforme as diretrizes da Rio-92, entende-se que a “participação” dos “parceiros”

consiste em uma atuação “lado a lado”. Com isto, as instâncias de debate apoiadas pelas Agendas limitam-se a mecanismos de persuasão sobre o po-der público e os setores empresariais e financeiros.

Como o primeiro é cada vez mais dependente dos

últimos, a lógica de convencimento é uma lógica de mercado; sustenta-se na idéia de que as práti-cas sustentáveis são “um bom negócio” para as cidades. Estas, entendidas como território “local”

onde se concentram os problemas socioambientais, constituem o principal foco do modelo proposto, e devem aproveitar-se da dimensão simbólica de seu comprometimento com a causa, para concorrer à entrada de investimentos financeiros.

Conforme demonstra Henri Acselrad no pri-meiro capítulo do livro (“Território, Localismo e Política de Escalas”), a competição interurbana engendra um “urbanismo de resultados”, de mer-cantilização e desregulamentação. O “local” é “ora invocado como o locus de uma política alternati-va de resistência, ora como arena de assimilação e adaptação ao discurso econômico dominante” (p.

14). A falta de regulações levada a cabo pela gestão urbana diminui custos de relocalização das empre-sas oferecendo-lhes maior mobilidade e força eco-nômica. As grandes corporações portanto ganham força política em detrimento dos atores menos móveis, como governos locais e sindicatos (p.31).

Esta forma de transferência de poder é uma ten-dência geral do processo no qual o localismo terri-torial se associa à desterriterri-torialização do capital, a descentralização do poder do Estado corresponde à centralização do poder financeiro, garantida pelo próprio Estado, e a ação coletiva desemboca na fragmentação espacial de setores sociais diversos.

São estes os modos de captura pelos quais as redes locais criadas em torno da questão ambiental, re-vestidas por uma política consensualista, ao negar o conflito, acabam por negar a própria política.

A análise deste quadro, prenúncio da explosão da “crise global do capital financeiro” que ora co-nhecemos, é tão mais potente quando não se vê como denúncia de um “complô” ou de uma força

“arquitetada” por atores sociais que, por ventura, se oponham à construção de um mundo social e ambientalmente mais justo. O processo é mais complexo, como demonstram os autores ao ob-servar que os fluxos, definidos pelo que se chama grosso modo “globalização”, não são apenas finan-ceiros e econômicos, como também discursivos.

Se a própria noção de “natureza” é um constructo, seus usos enunciativos têm efeitos tão materiais, ou “reais”, quanto a imagem que se faz dela. É nes-te sentido que a exposição da primeira parnes-te do

li-vro é enriquecida pela observação detalhada que se empenha nos dois outros capítulos. Nestes, temos acesso a exemplos concretos dos “efeitos de po-der” próprios à dinâmica dos enunciados, pois que o mundo social não se faz sem estes. Seja através da lista de termos que se transformaram em senso comum nas temáticas socioambientais (Capítulo 2 – “Agenda 21 local – um glossário analítico para o debate”, por Cecília Campello do Amaral Mello), seja dos casos específicos de implantação de Agen-das 21 locais no Estado do Rio de Janeiro (Capí-tulo 3 – “Consensualismo e competição interterri-torial: a experiência da Agenda 21 no Estado do Rio de Janeiro”, por Gustavo das Neves Bezerra), os movimentos nem sempre coerentes da produção discursiva mostram-se fundamentais à reflexão so-bre o exercício político. Como diz Rancière1 em citação no livro, a “política” não é um dado per-manente, mas “uma maneira de conduzir conflitos e de fazer disso o próprio centro da vida comunitá-ria” (p.86). Neste sentido, Jean Pierre Leroy (1991, p. 9-11) destaca a importância desta rara reflexão sobre os modos e efeitos da aplicação, fora do meio acadêmico, dos instrumentos teóricos criados pelas ciências sociais.

Conforme mostra o glossário analítico do se-gundo capítulo, o discurso em favor da justiça ambiental produz um efeito de teoria aparente-mente inquestionável. Contudo, ao listar termos de presença obrigatória no léxico socioambiental, analisando-os, interconectando-os, o livro nos faz pensar sobre os pressupostos de tais categorias.

E, para além dos verbetes não dicionarizados na

“agenda” socioambiental, há ainda idéias sorratei-ras que o glossário explicita, como as de “compe-tição” e “individualismo”. Assim, cabe questionar

“em que medida pressões democratizantes por parte da sociedade civil podem estar sendo respon-didas com propostas despolitizantes” (p. 90). No terceiro capítulo, a idéia de uma gestão consensual do ambiente esbarra no fato de que este mesmo não é neutro, mas apresenta “características sociocultu-rais múltiplas”. Baseando-se no estudo de caso de algumas experiências “participativas”, o autor nos dá a ver outras conexões; singulares, como em toda análise empírica. Ali, observamos com o autor que o “consenso” freqüentemente se mostra impossí-vel, e os resultados disto vão em sentido contrário ao otimismo pregado pela “política-espetáculo”

orientada pelas Agendas 21 locais. Mas será que isto testemunha apenas o poder de “estabilizar tensões” efetuado pela manipulação simbólica do discurso ambiental? Seria o caso pensar como as Agendas, a despeito de seu poder “estabilizador”, podem movimentar outras micropolíticas, não pre-vistas na agenda de intenções hegemônicas. O li-vro oferece-nos um poderoso arsenal de reflexão neste sentido.

Referências Bibliográficas

LEROY, J. P. Uma chama na Amazônia. Rio de Ja-neiro, Vozes/Fase, 1991.

RANCIÈRE, J. A História em Pedaços, Folha de São Paulo, 11/11/2001. Caderno Mais, p. 3 Ana Carneiro

*Doutoranda do Museu Nacional da UFRJ

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