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Cidade e Educação: a questão polissêmica

3 ARRUMANDO A BAGAGEM (BAÚ DE VIAGEM)

3.1 A CIDADE: TERRITÓRIO DE DIREITO E DE EDUCAÇÃO

3.1.2 Educação na Cidade

3.1.2.1 Cidade e Educação: a questão polissêmica

Dentre as diversas linhas de abordagem na relação entre cidade e educação, chama a atenção inicialmente a polissemia de nomenclaturas conceituais, muitas vezes usadas como semelhantes ou sinônimas e, algumas outras, como concepções distintas. Assim, nos deparamos, em destaque, com os termos Cidade Educadora, Cidade Educativa, Cidade que Educa e Educação na Cidade. Deste modo, cabe inicialmente distinguir tais categorias. Afinal, o conhecimento sobre a definição conceitual de cada termo e seu percurso de constituição histórica propicia uma compreensão mais ampla e uma decisão mais segura sobre a fundamentação teórica pretendida. Neste cenário, evidencia-se que o termo Cidade Educadora surge como ponto de partida para as demais concepções. Vários pesquisadores remetem sua origem ao relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), concluído em 1972 e publicado em 1973, na forma de um livro intitulado Aprender a ser, elaborado pela Comissão Internacional para o Desenvolvimento da Educação/Unesco, sob a coordenação de Edgar Faure, ex-Ministro da Educação Nacional da França (GADOTTI, 2010; GADOTTI, PADILHA, 2004; SILVA, 1979).

35 Apesar da expressão Educação na Cidade corresponder ao título homônimo de um livro escrito por Paulo Freire em 1991, neste não ocorre uma formulação conceitual sobre o termo. Nesta obra, Freire “[...] reflete a sua experiência, e a de Mário Sérgio Cortella, à frente da gestão da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo no período de 1989 a 1992” (PADILHA, 2009).

Assim, observa-se que Moacir Gadotti e Paulo Roberto Padilha registram em nota de rodapé o uso de “Cidade educativa”:

Foi Edgar Faure em seu Relatório preparado para a UNESCO no Ano Internacional da Educação (1970) e publicado em 1972 com o título “Apprendere a Être” que aparece pela primeira vez a expressão “cidade educativa” referindo-se a um processo de “compenetração íntima” entre educação e “vida cívica” (GADOTTI, PADILHA, 2004, grifo nosso).

Entretanto, contraditoriamente, em outra publicação, é o próprio Gadotti (2010) que traz a expressão “Cidade Educadora”, referindo-se ao mesmo relatório de Faure et al.: “[...] basicamente, a Unesco apontava como a educação do futuro o que chamava de educação

permanente e introduzia a noção de cidade educadora, chamando a atenção para os novos

espaços educacionais da cidade” (GADOTTI, 2010, grifo do autor).

Afinal, seriam os termos cidade educadora e cidade educativa sinônimos? Ou seria uma mera questão de tradução? A terceira parte da obra “Aprender a ser”, por exemplo, em sua versão em espanhol, intitula-se “hacia una ciudad educativa” (FAURE et al., 1973). Talvez, diante de tal ambiguidade, as pesquisadoras Vânia Siciliano Aieta e Aparecida Luzia Alzira Zuin, referenciadas em Maria Belém Caballo Villar (2001), tenham optado em registrar as duas denominações ao se referir ao supracitado relatório da Unesco: “cidade educativa ou

educadora para Faure” (AIETA; ZUIN, 2012, grifo nosso).

Mesmo diante dessa imprecisão, constata-se que, a partir de 1990, a expressão “cidade educadora” passa a se consolidar como designação de um movimento internacional de cidades, institucionalizado oficialmente, em 1994, como Associação Internacional de Cidades Educadoras (AICE), com sede em Barcelona, Espanha (AIETA, ZUIN, 2012). O evento inicial deste movimento foi o

Congresso Internacional de Cidades Educadoras, realizado em Barcelona, quando um grupo de cidades representadas por seus governos locais, pactuou o objetivo comum de trabalhar juntas em projetos e atividades para melhorar a qualidade de vida os habitantes, a partir da sua participação ativa na utilização e evolução da própria cidade e de acordo com a carta aprovada das Cidades Educadoras. Mais tarde, em 1994, o movimento foi formalizado como o III Congresso Internacional em Bolonha. (SOROCABA, [2011?])

Seria este movimento “herdeiro” direto do relatório coordenado por Faure? A resposta desta indagação é possível de ser extraída da obra de Jorge Manuel Salgado Simões (2010), em sua dissertação de Mestrado em Cidades e Culturas Urbanas, da Universidade de Coimbra, Portugal, onde concentra-se, primeiramente, em desvelar “o que está na origem dos movimentos associativos de cidades e as suas aproximações às questões que decorrem do contexto de

crescente urbanização” (SIMÕES, 2010, p. 27). Segundo Simões (2010), tal documento da UNESCO adquire um status orientador para a definição de políticas educativas em harmonia com a conjuntura política e de transformações que se verificavam naquele momento:

O relatório de Faure acaba por considerar também a crescente relevância das cidades e da vida urbana como factor mobilizador para novas políticas de educação, referindo- se às possibilidades da cidade educativa [...]

É este primeiro conceito de cidade educativa que será recuperado mais tarde pelo município de Barcelona, que se destaca por uma forte intervenção local em educação,

através do Instituto Municipal de Educação, com acções inovadoras neste campo desde a década 50 do século XX. Para além da competência central de gestão dos estabelecimentos de ensino, note-se o historial de projectos inovadores empreendidos em Barcelona, nomeadamente através de actividades, serviços e ofertas pedagógicas na área da educação não formal, de promoção da interacção entre a população e os vários equipamentos culturais da cidade, como as bibliotecas, os museus ou o próprio espaço público, como praças e jardins (SIMÕES, 2010, p. 27-28, grifo nosso). Simões (2010) identifica que o conceito de cidade educadora e a adoção intencional da

expressão “cidade educadora”, em substituição a de “cidade educativa” (de Faure et al.),

surge em Barcelona, com a organização e realização do I Congresso Internacional das Cidades Educadoras (1990), que juntou 63 (sessenta e três) cidades de 21 (vinte e um) países e cerca de 600(seiscentos) participantes. Os resultados dos trabalhos deste evento se materializam na Declaração de Barcelona, posteriormente chamada de Carta das Cidades Educadoras (SIMÕES, 2010, p. 29). “Esta Carta foi revista no III Congresso Internacional (Bolonha, 1994) e no de Génova (2004), a fim de adaptar as suas abordagens aos novos desafios e necessidades sociais” (ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE CIDADES EDUCADORAS, 2004).

As afirmações de Simões se fundamentam principalmente nas declarações de Pilar Figueras, secretária geral da Associação Internacional de Cidades Educadoras (AICE), em 2006. Figueras diz em entrevista concedida à Simões (2010, p. 30) que tal alteração de adjetivos

[…] não é apenas um pormenor […], revelando a vontade de criação de um quadro conceptual abrangente de todas as potencialidades educadoras da cidade, que congregasse todas as abordagens, conteúdos, actividades ou programas educativos, dispersos pela cidade.

Na observação síntese de Simões (2010, p. 30, grifo nosso),

[...] qualquer cidade é educativa, por inerência das competências que tem de desempenhar em matéria de educação. Mas para se considerar educadora, a cidade

deve assumir uma intencionalidade para lá dessas funções tradicionais e

regulamentadas, colocando-se ao serviço da promoção e do desenvolvimento integral dos seus cidadãos.

Ao refletirem sobre a relação entre “escola cidadã” e “cidade educadora”, Gadotti e Padilha indicam comungar também deste raciocínio:

A cidade educadora é, sobretudo, uma aprendizagem de planejamento urbano. Como a escola e os diferentes complexos educacionais, formais ou informais, existentes nos bairros ou nas vilas em que moramos, situam-se no contexto da cidade em que vivemos, a aprendizagem da elaboração do projeto político-pedagógico (PPP) dessas instituições pode se transformar num processo fundamental de exercício de cidadania, pois contribui justamente para organizar a intencionalidade educacional necessária

para que a cidade, de educativa, passe a ser, efetivamente, educadora (GADOTTI;

PADILHA, 2004, p. 137, grifo nosso).

Em uma nota de rodapé, o pesquisador Thiago Luiz Alves dos Santos (2013, p. 42, grifo nosso), em sua dissertação de mestrado, também confirma a evidência da intencionalidade educadora como o diferencial entre tais expressões:

Cidade Educadora e Cidade Educativa se diferenciam por causa da

intencionalidade, atualmente a literatura sobre o tema diz que toda cidade por natureza é educativa e faz se educadora na medida em que assume conscientemente uma

intencionalidade educadora.

Enfim, considerando o que foi tratado até aqui, na tentativa de superar os equívocos ou elucidar dúvidas quanto ao emprego dos termos em questão, percebe-se que:

a) cronologicamente e conceitualmente o termo “cidade educativa” (Relatório de Faure et al./Unesco) precede a expressão “cidade educadora” (I Congresso Internacional das Cidades Educadoras/AICE); e,

b) há o elemento da intencionalidade do uso da expressão e conceito de “cidade educadora”, como superação, em outro patamar, à condição de “cidade educativa”.

Diante deste último elemento, algumas questões ainda surgem e devem ser elucidadas. Em que aspectos a intencionalidade da “cidade educadora” se diferencia ou se aproxima, efetivamente, das formulações da “cidade educativa”? Há algum outro movimento ou corrente de pensamento científico ou político-ideológico que evoca ou faz uso da expressão “cidade educativa”? Neste caso, qual é sua conexão à concepção original contida no relatório coordenado por Faure? Há outras formulações conceituais que não se vinculam à “cidade educativa” ou à “cidade educadora”? Ou seja, na procura de uma objetividade conceitual mais precisa em contraposição à perpetuação da ambiguidade polissêmica, tais questões demandam aprofundar os estudos sobre os conceitos de “Cidade Educativa”, “Cidade Educadora”, “Cidade que Educa” e “Educação na Cidade”. O suporte para este trajeto, referencia-se no consistente estudo das pesquisadoras Simone Oliveira Thompson de Vasconcelos e Priscila de Souza Chisté (2018), sob o artigo intitulado Reflexões sobre Cidade Educativa, Cidade Educadora, Município que Educa e Educação na Cidade. Recorre-se também ao artigo de Priscila de Souza Chisté e

Antonio Donizetti Sgarbi (2015), intitulado Cidade Educativa: reflexões sobre educação, cidadania, escola e formação humana.