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3 ARRUMANDO A BAGAGEM (BAÚ DE VIAGEM)

3.2 CULTURA E IDENTIDADE

Em geral, na atualidade, o tema da identidade é visto sob um olhar culturalista, muito característico do que Ellen Wood (1996; 1999) chama de agenda pós-moderna. Segundo Wood (1999, p.15), o pós-moderno rejeita a ideia de processo e causalidade histórica inteligível, expressa como princípios a ênfase na natureza fragmentada do mundo e a impossibilidade de uma política emancipadora na visão “totalizante”, ou seja, apresenta um “ceticismo epistemológico e um derrotismo político profundos”. Entretanto, por outro lado, há processos importantes tangidos por este (identidades, opressões, poderes, política ambientalista, discursos, linguagem e cultura) que necessitam de uma abordagem materialista:

Não é preciso aceitar os pressupostos pós-modernos para enxergar todas essas coisas. […] Não há, com efeito, melhor confirmação do materialismo histórico que o vínculo entre cultura pós-moderna e um capitalismo global segmentado, consumista e móvel. Nem tampouco uma abordagem materialista significa que temos que desvalorizar ou denegrir as dimensões culturais da experiência humana. Uma compreensão materialista constitui, ao contrário, passo essencial para liberar a cultura dos grilhões da mercantilização (WOOD, 1996, p. 125).

Nesta perspectiva, Wood (1996, p.126) alerta especialmente para a percepção de que “[...] o capitalismo está se tornando tão universal, tão garantido, que passa a ser invisível”. Igualmente, Ahmad (1999) ressalta que é preciso estar atento para não cair neste campo movediço. Apresentando a crítica aos Estudos Culturais, observa:

Não podemos simplesmente incluir um pouco de economia aqui, um tanto de tecnologia acolá. Temos que ser capazes de localizar fatos isolados em um processo histórico complexo, e para isso precisamos de um considerável preparo teórico. Nos seus primórdios, os autores dos estudos culturais estavam plenamente conscientes de tudo isso, e alguns procuraram permanecer fiéis a tais origens, aliás bastante prosaicas. No todo, porém, os estudos culturais transformaram-se em um dos muitos estilos do capitalismo de consumo que eles se propunham a estudar (AHMAD, 1999, p. 107- 108).

Tais observações retomam um dos desafios da presente pesquisa: desvelar o olhar sobre a cultura e a identidade do povo tradicional pomerano para além dos mecanismos de sua mercantilização estereotipada ou estratificada em um passado nostálgico idealizado. Ou seja, precisa observar a contextualização histórica, as relações materiais de manutenção e reprodução da vida dos sujeitos desta localidade, em sua condição singular e, ao mesmo tempo, vinculada a universalidade humana.

Em seu sentido geral, a identidade remete para aquilo que dá distinção a uma situação, a uma coisa, a uma instituição, a uma pessoa ou grupo a ponto de individualizá-los. Ao aprofundar essa indicação, percebe-se que a identidade remete para o que faz com que algo ou alguém seja o que é. Por isso, vincula-se ao debate da essência, ao elemento nuclear que caracteriza o ser das coisas.

Longe de toda uma tradição que define a identidade de modo estático e apriorístico, sugere-se pensar a identidade de um grupo humano a partir de algumas contribuições marxistas. N’A ideologia alemã, Marx e Engels (2007) insistem que viver é produzir as condições e os meios para existir. Por isso, o modo como os seres humanos produzem esses meios não pode ser visto apenas como reprodução da sua existência física, mas como manifestação de suas vidas e, portanto, do que eles são em um dado momento:

Tal como os indivíduos exteriorizam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, pois, com sua produção, tanto com o que produzem como também com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção (MARX; ENGELS, 2007, p. 87).

Enquanto os demais animais são aquilo que são programados biologicamente a serem, o que o ser humano é depende do seu viver, do que ele produz para satisfazer suas variadas necessidades e de como produz, isto é, de todas as relações que estabelece para realizar essa produção (relação com a natureza, com outros seres humanos, com os instrumentos de trabalho, com o produto do trabalho etc.).

Sob essa lógica, a identidade remete à essa estrutura econômica. Aqui, entretanto, cabe seguir a observação de Karel Kosik: estrutura econômica não significa fator econômico. Enquanto este

remete para o mundo limitado da propriedade, da renda e do dinheiro ou da posse, aquele tem um sentido ontológico e aponta para o “[...] homem no processo de produção e reprodução da própria vida social” (KOSIK, 1995, p. 116).

O processo de produzir e reproduzir a sua vida e, assim, criar a sua identidade pessoal e coletiva tem como centro o trabalho, ação tipicamente humana. Em contraste com o sentido corriqueiro de emprego ou profissão, o trabalho como categoria marxista diz respeito ao “[...] processo de que participa o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. [...] Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza” (MARX, 1985, p. 211). O trabalho envolve uma dupla relação: com a natureza e com outro humano, pois não se transforma a natureza isoladamente.

Nas Teses contra Feuerbach, Marx considera que a essência humana não é abstrata nem está no indivíduo único. Nas suas palavras, “Em sua efetividade é o conjunto das relações sociais” (MARX, 1987, p. 162). Com essa afirmação, Marx demarca que o ser do humano não é dado antes do seu viver. Por seu turno, esse viver remete ao encontro do humano com duas alteridades: a natureza e o outro ser humano. Além disso, vincular o ser do humano ao conjunto das relações sociais indica o caráter histórico do fazer-se humano. O que é o ser humano é o que ele tem feito de si, o que e como tem construído o seu viver ao longo do tempo ou durante um mesmo momento histórico. Nesse sentido, a identidade humana é dada por uma diversidade de modos de se tornar humano. Em outros termos, a identidade é o que traz a singularidade de um grupo, em um determinado momento, ao produzir a vida (o modo de produção da vida), se relacionando com a universalidade da humanidade em seu conjunto.

Chama-se patrimônio cultural tudo o que é resultado do trabalho. Desse modo,

O mundo humano ou cultural consiste no conjunto das produções materiais e simbólicas criadas pelo ser humano em decorrência do seu trabalho. Nesse caso, o ser humano se coloca naquilo que ele produz, isto é, ele se objetiva, coloca o seu ser no produto. Portanto, toda produção cultural traz a marca do humano, materializa o nosso modo de existir em um determinado momento, o que produzimos e como produzimos nossa vida (DELLA FONTE, 2018, p. 49).

A depender das relações sociais a riqueza cultural produzida pode ser acessada por todos ou destinada a determinados grupos. Em uma sociedade desigual, a classe social indica o lugar a partir do qual se produz a vida, se acessa o patrimônio cultural e se tem consciência desse processo. A existência de classes sociais expressa uma sociedade em conflito. Não se trata aqui

de apontar costumes, modos distintos de experimentar a sexualidade, modos diversificados de se vestir ou de se alimentar, enfim, de formas de existir distintas, mas que podem conviver, complementar-se, enriquecer-se. A existência de classes sociais fala de contradições antagônicas:

[...] sociedades em que vigoram a propriedade privada fazem emergir grupos cuja multiplicidade não impulsiona o desenvolvimento compartilhado. Aqui a diferença se torna sinônimo de desigualdade. O diverso se transforma no desigual, no irreconciliável. Dessa maneira, instaura-se uma contradição antagônica entre classes sociais. Entre elas, existe o confronto e a incompatibilidade, pois, para que uma possa se desenvolver, a outra precisa ser explorada. À riqueza de uma corresponde a vida miserável da outra (DELLA FONTE, 2016, p. 218).

Dessas considerações, podemos extrair alguns desdobramentos para esta pesquisa. A identidade pomerana diz respeito aos modos de ser na produção material e simbólica da existência do povo tradicional pomerano, desde sua chegada ao Brasil e às terras capixabas até a atualidade.

Considerando o caráter histórico do viver do povo pomerano, essa identidade tem se transformado ao longo do tempo. Ao chegarem ao Espírito Santo, os pomeranos ocupam um lugar social muito específico. Originalmente, tinham profissões distintas, predominando a ocupação de agricultor.36 Contudo, ao chegarem em solo brasileiro, enfrentaram dificuldades

em comum. Para superá-las, estabeleceram relações mais horizontais entre si a partir do contexto rural (SCHMIDT, 2015, p. 31). No decorrer da história, o povo pomerano com seus traços culturais mais homogêneos sofre uma diversificação nas suas atividades produtivas (BERGAMIN, 2015).

O desafio de discutir a identidade pomerana na atualidade é perceber que se, por um lado, algumas marcas culturais se mantiveram e ainda dão coesão a esse grupo, por outro, a identidade de classe pode ter sido alterada. A possibilidade de fazer essa análise pela arquitetura pomerana parte do suposto de que, como produtos do trabalho humano, essas construções trazem a marca identitária do viver do povo pomerano em determinados momentos em seus conflitos.

36 “As levas de imigrantes, após 1871, eram provenientes de ações dos ‘armadores’, que constituíram empresas de imigração. [...] No contrato firmado entre o governo provincial e as empresas, estavam destacados alguns pré- requisitos. Entre eles, que os imigrantes fossem agricultores (tolerava-se apenas 10% de não-agricultores)” (THUM, 2009, p. 123).