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CINEMATOGRAFIA INDÍGENA

No documento CINEMA DE ÍNDIO (páginas 69-72)

3 ANTROPOLOGIA DA IMAGEM

3.1 CINEMATOGRAFIA INDÍGENA

O trabalho de pesquisa relacionado à produção de filmes pelos próprios índios segue estudos já elaborados por realizadores de filmes, autores e antropólogos que utilizam a imagem como metodologia de trabalho. Baseio-me no antropólogo Patrick Deshayes, em meu co-orientador, Edgar Teodoro da Cunha, assim como em David MacDougall, com o qual tive a oportunidade de assistir, na USP, a um minicurso sobre documentário etnográfico, em que se discutiu a abordagem etnográfica inserida na prática da realização fílmica.

Visando um aprimoramento da imagem, da relação entre ela e as comunidades indígenas, sua utilização no âmbito desses grupos, enfim, a intrínseca relação travada entre a imagem e os índios, é que busco, nesses autores, discussões e abordagens, os meios para a utilização das imagens, à medida que estão inseridas num contexto etnográfico, tratando-as dessa forma como “dados” e traduzindo-os para a linguagem comumente utilizada, ou seja, a escrita.

De acordo com Lagrou (2004), as imagens podem traduzir uma situação etnográfica e serem traduzidas para uma etnografia, num movimento de reflexividade.

A dissertação aborda aspectos culturais, sociais e políticos da utilização da câmera de vídeo, produtora de visões imagéticas diferenciadas, conforme o meio na qual está inserida, que pode gerar diálogos entre grupos variados, prestar-se à mediação cultural na luta e manutenção dos direitos, na disseminação educacional e em diversos outros benefícios para as comunidades que lançam mão desse recurso tecnológico de comunicação.

Também relata e analisa os passos de Siã Kaxinawá para chegar ao aprendizado e manejo da câmera de vídeo, ao roteiro de seus filmes, à edição, à

escolha das cenas, do tempo e ritmo delas, à passagem do conhecimento dessa tecnologia adiante, além do entendimento do significado de uma obra como a dele.

Os filmes de Siã Kaxinawá trabalhados aqui são Fruto da Aliança dos Povos da Floresta, de 1987, no qual Siã entrevista o líder seringueiro Chico Mendes, além de mostrar todo o processo político de formação da Aliança, e Os povos do Tinto René, realizado em 1991, que acompanha detalhes da rotina dos povos da floresta:

mostra a sua intimidade, traz brincadeiras e apresenta uma constante preocupação com a preservação da floresta e seus habitantes.

Com a utilização do filme para retratar a sua própria comunidade, assim como as comunidades indígenas vizinhas, seringueiros e ribeirinhos, Siã Kaxinawá afirma conceitos de sociabilidade, autonomia pessoal de seu povo e principalmente o respeito pela autonomia dos povos da floresta, fruto da aliança realizada, a Aliança dos Povos da Floresta.

Entre as importantes contribuições trazidas pelas imagens realizadas pelos índios, está inicialmente o afastamento da idéia de que equipamentos eletrônicos, TVs e câmeras de vídeo seriam símbolos de degradação da cultura indígena e de perda da identidade. Processos como esses provam, pelo contrário, que os índios estão aptos a compreender esse mundo tecnológico e utilizar seus produtos adequadamente, além de poderem elaborar um saber acerca da tradução e interpretação das imagens. (COLLIER; COLLIER, 1986, p. 108-115)

Collier constatou que os povos nativos, no contato direto com a natureza e o meio ambiente, vivendo num mundo que devem conhecer e respeitar para sua sobrevivência, têm percepções muito mais abrangentes e menos especializadas, o que faz deles grandes observadores.

Em contraste, as culturas urbanas são visualmente acuradas, extremamente precisas, em se tratando de assuntos específicos de cada área de atuação e especialização. Saindo do seu âmbito de desempenho, tornam-se visualmente limitadas, sem capacidade de enxergar além do cotidiano, pois são sociedades mecanizadas, que observam somente uma fração de seus arredores, a porção que

lhes compete utilizar para executarem seus papéis. (COLLIER; COLLIER, 1986, p.

6-7)

É importante notar que filmes de realizadores indígenas e não-indígenas têm estatutos diferentes. O que faz parte do repertório cultural de um realizador indígena não é o mesmo de um realizador não-indígena, influenciando consideravelmente a escolha, estratégias e visões de mundo que se expressam na captação de uma imagem, além dos vários significados que estarão implícitos na imagem e no extracampo da imagem.

O realizador indígena e sua comunidade são aqueles que se apropriam dos meios audiovisuais para poder expressar-se e comunicar-se com a sociedade envolvente, produzindo um conhecimento próprio.

Por sua vez, o antropólogo, ao longo do tempo, deixou de incorporar as imagens em sua pesquisa apenas como uma ferramenta de registro cumulativo de dados e informações, ou como uma técnica ilustrativa desses registros, tendendo atualmente a utilizá-las como meio de expressão, como os realizadores indígenas.

Sem apelar para um reducionismo, é importante ressaltar que, para realizadores indígenas e não-indígenas, as questões em pauta são de natureza histórica, política e epistemológica diferente. O caminho para a comunicação entre os filmes e o espectador vai depender da maneira como se construirá o roteiro e sua apresentação, assim como das técnicas cinematográficas para criar essa realidade construída e originar o interesse do público. (GALLOIS, apud FELDMAN-BIANCO, 1998, p. 310)

Frente a essa subversão no jogo do discurso, a objetividade da imagem é uma ilusão referencial (RENOV, 1993) que elabora uma narrativa ficcional na medida em que toda leitura de uma imagem depende do ponto de vista do sujeito observador. (XAVIER, 1993, apud PELLEGRINO, 2003, p. 14)

Portanto, o diálogo que se dá entre a antropologia da comunicação audiovisual e a apropriação dos meios audiovisuais pelos índios pode acontecer em alguns momentos. Mesmo com necessidades e tradições diferentes, ambos podem

ter pontos de contato e finalidades semelhantes, além de participar da construção de imagens em proveito de projetos políticos e culturais, captando e transmitindo seus significados.

Um exemplo é o vídeo A Arca de Zo’é, de Vincent Carelli e Dominique Gallois, realizado em 1993. Quando o vídeo sobre os índios Zo’é, do norte do Pará, é exibido aos índios Waiãpi, do Amapá, estes decidem se deslocar até a aldeia dos Zo’é para documentá-los. Naquele encontro, trocas foram estabelecidas entre os dois grupos: os Zo’é mostraram seu modo de vida, ainda ligado às tradições, por terem sido contatados tardiamente, e os Waiãpi contaram a eles sobre os brancos e a sociedade envolvente, ainda desconhecida para os Zo’é.

No documento CINEMA DE ÍNDIO (páginas 69-72)