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IMAGEM E CULTURA

No documento CINEMA DE ÍNDIO (páginas 111-116)

4 A ESCRITA DA IMAGEM

4.4 IMAGEM E CULTURA

Por volta de 1989, a CPI do Acre, com o apoio dos professores indígenas locais, formatou o projeto de um livro bilíngue português-hatxa kui, intitulado Shenipabu miyui ou História dos antigos, sobre mitos dos grupos de língua Pano, com o apoio financeiro da UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância – e apoio da Assessoria de Educação Indígena do Ministério da Educação. (CPI, 1995, p. 18-19)

Até o final do século XIX, os Kaxinawá eram um povo de tradição somente oral. Em função do contato regular com a sociedade envolvente e das frentes de

expansão extrativistas, que os incorporaram como mão-de-obra, sentiram-se carentes da obtenção imediata do conhecimento da escrita, mesmo sem muito domínio, mas que evitasse serem logrados pelas dívidas gigantescas que se acumulavam nos barracões de seus patrões e lhes permitisse participar das relações de troca comerciais a que estivessem expostos. A escrita foi utilizada como veículo de renovação da identidade étnica num contexto de reordenação sociopolítica de relações entre os índios Kaxinawá e a sociedade regional e nacional. A escrita também serviu para documentar e registrar na memória suas tradições e cultura, agora sob a perspectiva do próprio grupo. (CPI, 1995, p. 9-12)

A elaboração do livro passou por várias etapas, e parte da pesquisa foi realizada por Siã Kaxinawá. Em janeiro de 1989, Siã viajou, com sua câmera de vídeo e um gravador, por três meses, pelas aldeias Kaxinawá de Conta e Balta, no Peru. De acordo com Siã, o objetivo era pesquisar a cultura de seu povo, que no lado peruano se manteve longe do contato violento do sistema escravizador dos patrões seringalistas e, assim, mais apto a preservar os costumes e a cultura originais que os Kaxinawá do lado brasileiro. Naquele período, Siã gravou inúmeras histórias e cantos rituais dos antepassados, que foram transcritos para o livro (CPI, 1995, p. 13).

O registro visual de uma tradição predominantemente oral resguardou a história e os mitos tradicionais dos Kaxinawá peruanos e os tornou conhecidos dos Kaxinawá brasileiros, que puderam compará-los aos mitos e cantos que recordavam e obter novos conhecimentos do repertório cultural Kaxinawá. As imagens de Siã serviram de suporte para a elaboração do produto final, o livro, no qual os mitos e a língua hãtxa kui estão documentados e preservados num formato inteiramente novo, diferente do tradicional.

Os métodos de preservação da tradição se renovam de acordo com o intercâmbio que se dá entre culturas diversas, e a apropriação dos meios de comunicação de uma sociedade em prol daquela que absorve as novas tecnologias e as utiliza, fomenta novos desdobramentos no conjunto de práticas tradicionais. Por

exemplo, nas sociedades de tradição oral, geralmente as práticas rituais intensificam os contextos tradicionais, fazendo com que se conservem na memória e sejam transmitidos às novas gerações. No caso do audiovisual e da escrita, essas novas formas não substituem os arranjos já existentes, mas introduzem novas relações que operam com os costumes e arranjos tradicionais.

Não só no livro foi utilizada a documentação visual de Siã no Peru, mas parte do footage lá realizado foi incorporado à narrativa do filme Fruto da Aliança dos Povos da Floresta, construindo a identidade Kaxinawá a partir da alteridade.

Siã nos relata:

Como povo Hunikuin vivemos entre cinco cabeceiras de rios espalhados no Acre (Juruá, Jordão, Envira, Feijó, Tarauacá, Purus). Eu fui fazer uma visita ao nosso povo que vive no Peru. Lá tinha um projeto de pesquisa sobre a língua hunikuin; o alfabeto tinha três maneiras de escrever. Ao longo da minha viagem, eu documentei, tanto no Brasil como no Peru, o que eu achava o necessário: cantorias, fala, imagem. Por lá, encontrei uma liderança Hunikuin muito forte.

A minha viagem durou 90 dias e conversei com várias etnias. Além de Hunikuin, Kulina, Jaminawa, Marinawa, encontrei vários nawa que ainda restavam do extermínio e do massacre da sociedade brasileira. Ajudei um pouco na luta inicial dos Hunikuin do Cana Recreio... É fronteira de luta da demarcação de terra. Por lá foi escolhida uma nova liderança do povo Hunikuin.

Essa pesquisa saiu também num livro do Hunikuin que terminou esse trabalho. Foi Joaquim Mana, com ajuda dos técnicos da CPI/AC, e também no filme Aliança dos Povos da Floresta.36

A liderança muito forte encontrada no Peru por Siã era Curumpi, um shaneibu, que em Kaxinawá significa “chefe forte”. Era um mediador ativo entre a sociedade indígena e a sociedade dominante, e trabalhava com farmácia e odontologia profissional, mesmo sem ter concluído o ensino médio. Siã conta que ele morreu no ano passado, 2006, e que infelizmente “agora só está recuperando o outro lado do mundo”. Os filhos de Curumpi estudaram na capital, Lima.37.

A tradição ancestral que Siã foi buscar nos Kaxinawá do lado peruano se mescla à evolução gradual de trocas realizadas entre as sociedades indígena e envolvente, afirmando que o contato, tenha ele acontecido por meio da violência,

36 Comunicação eletrônica entre a pesquisadora e Siã, em agosto de 2007.

37 Comunicação eletrônica entre a pesquisadora e Siã, em outubro de 2007.

como no caso dos Kaxinawá do lado brasileiro e peruano, deixa sempre marcas e serve como ponto de partida para a inclusão das culturas tradicionais num novo sistema cultural. É exatamente o que Sahlins fala sobre o aniquilamento das culturas tradicionais por meio do contato, que faz surgir uma cultura de resistência, a que me refiro na Introdução dessa dissertação.

O livro38 foi também uma conquista nesse processo da apropriação do vídeo e da língua escrita da sociedade nacional, como meio multiplicador da cultura Kaxinawá e transmissor da história de suas origens, contada pelos mais velhos aos jovens em lugares onde se supõe que a 'cultura' esteja mais 'preservada'. Ele é o produto das reflexões e interações desenvolvidas e compartilhadas entre Siã Kaxinawá, com sua câmera, por meio do suporte oral de seus interlocutores, e os professores indígenas, idealizadores do projeto.

A apropriação do vídeo representou o caminho dialógico entre Siã e seus sujeitos, tornando seus discursos inteligíveis a um público mais amplo e fazendo de Siã um mediador desse diálogo.

Numa analogia com Rouch, o livro torna-se um representante da contradádiva audiovisual, pois, mesmo sem dar o retorno em imagens aos seus personagens, como nos filmes de Rouch, oferece-lhes um material palpável, no qual suas histórias tradicionais estão preservadas para sempre. (FELDMAN BIANCO, 1998, p. 295)

O vídeo está no limiar entre a tradição oral e a revolução da escrita, (CARDARELLO et al., 1998, p. 283-285), e o que Siã realizou como parte do processo de pesquisa e produção do livro torna suas imagens parte de um aparelho intertextual entre a estética, a história oral e a fonte de pesquisa para o produto resultante, o livro.

38 O livro Shenipabu miyui foi originalmente publicado em 1995 pela Comissão Pró-Índio do Acre. Em 2000, foi reimpresso pela editora da Universidade Federal de Minas Gerais e, no ano seguinte, a mesma universidade o incluiu na lista de leituras obrigatórias da prova de literatura de seu vestibular.

Para uma sociedade de tradição oral, o vídeo é uma nova ferramenta de comunicação direta com a sociedade local e dominante; no evento do livro, torna-se um instrumento de pesquisa e documentação para o próprio grupo pesquisado.

“A jibóia ensina a sabedoria dos nossos antepassados, a máquina pega a imagem ao vivo; esse é o ponto mais interessante que achei”.

“A imagem gravada pode comunicar com a pessoa analfabeta e também mostra a realidade”.39

Vale ressaltar, também, a importância de outra expressão cultural Kaxinawá, a tecelagem com os desenhos kenê. Tornou-se nova fonte de renda para os Kaxinawá e, sobretudo, o significado implícito na arte desses desenhos, símbolo de sua identidade cultural e signo de um mundo baseado nas tradições rituais, culturais e muito ligado à natureza, representados tanto na tecelagem quanto na pintura corporal.

Os kenê são desenhos abstratos que retratam a realidade dual própria dos Huni Kuin, que necessitam do outro para tornarem-se Huni Kuin.

As mulheres obtêm os desenhos, ou kenê, por meio de sonhos ou de canções e rezas que ensinam como desenhar, assim como de meditações do tear que as fazem ver e criar uma imagem do espiritual relacionada com a cosmovisão xamânica, com o mundo natural, cultural e sobrenatural. Já os homens relacionam-se com os kenê e com os donos dos derelacionam-senhos, os espíritos, por meio da ayahuasca, guiados pelos cantos xamânicos durante as várias fases do ritual (LAGROU, 1996, p. 209-222).

No filme Fruto da Aliança dos Povos da Floresta, há uma seqüência de entrevista com Dona Elena Buni, a mestra artesã mencionada no início desta pesquisa, que mostra algumas peças da arte da tecelagem kenê e, junto a ela, o próprio Siã descreve a importância dessa arte para a comunidade.

No filme Os povos do Tinto René, o narrador diz: “Nós temos orgulho da força do nosso artesanato, que nossos antepassados ensinaram a tecer com ciência

39 Comunicação eletrônica entre Siã e a pesquisadora, em agosto de 2007.

e sabedoria...”, e várias índias aparecem batendo os fios de algodão, preparando-os para serem tecidos com os motivos kenê. A narração enfatiza seu caráter de

“cultura” e de tradição, mas as imagens de Siã também o apresentam como um produto cultural sendo exposto para um público mais abrangente, visando talvez sua divulgação na sociedade circundante.

A festa do Mariri é também evocada nesse filme, como recurso tradicional para alcançar os objetivos visados, parte de um repertório de produtos culturais utilizados para a comunicação com a alteridade.

Mais uma vez, Siã recorre aos antepassados e às práticas e cantos tradicionais, evocando um estado de pureza, de natureza através da cultura.

Referindo-se aos contextos culturais, Siã inclui elementos que remontam às práticas tradicionais como produtos que possam gerar ‘bem-estar’, por meio do consumo ‘capitalista’. Isso não significa que Siã está se inserindo e, em conseqüência, introduzindo seu povo nesse novo sistema, mas que se utiliza dele para ampliar os poderes e valores tradicionais dos Kaxinawá, de acordo com Sahlins (1997ª, 14) e sua teoria sobre o culturalismo, citada anteriormente.

Também, Siã serve-se do artifício da cultura como meio de comunicação entre sua sociedade e a sociedade envolvente para travar um diálogo intercultural, instaurando um espaço que o outro não pode ocupar, da origem, daquele que detém o conhecimento primordial e utiliza-se dele para estabelecer a troca cultural, na qual lança mão dos meios do outro, despertando-lhe uma consciência preservacionista, para obter benefícios políticos, culturais e econômicos.

No documento CINEMA DE ÍNDIO (páginas 111-116)