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Política Através da Cultura

No documento CINEMA DE ÍNDIO (páginas 108-111)

4 A ESCRITA DA IMAGEM

4.3 IMAGEM E POLÍTICA

4.3.3 Política Através da Cultura

Siã Kaxinawá, no início de Fruto da Aliança dos Povos da Floresta, registra a festa tradicional Katxanawá, que é o ritual da fertilidade (LAGROU, 1998, p. 289).

Nessas imagens, os índios surgem vestidos com palha de jarina, uma palmeira, e representam os yushin da floresta.

Antes de prosseguir na análise desse trecho, devo introduzir, sem muito aprofundamento, o conceito de yushin, pois se trata de uma concepção muito ampla de significados para os Kaxinawá. A caracterização de yushin será descrita somente em relação ao yushin da floresta.

Entre os vários significados para yushin, um trata da qualidade ou energia que dá vida à matéria, sem a qual tudo viraria pó. Os seres humanos têm yushin, assim como os animais e plantas. Ele se encontra unido ao corpo, não necessariamente humano, e só adquire existência quando se separa dele. O yushin que se foi, através da morte, ou por meio do corte das árvores da floresta, é chamado pelos cantos rituais. Nem sempre os yushin descorporificados são ativos

somente pela morte ou abate, mas no topo das grandes árvores existem comunidades enormes de yushin. (LAGROU, 1998, p. 49-51)

Há vários yushin, conceituados conforme Deshayes (2000, p. 34-39) como

“substância”, quando se referem à floresta e à caça, e “espírito”, assim como “alma, reflexo, imagem”, até “gnomos da floresta, fotografias e cinema”.

Nas imagens de Siã, os yushin da floresta dançam ao redor do tronco oco da paxiúba, ou tau, pustu, katxa, em kaxinawá. O corte, descascamento e esvaziamento do tronco seguem uma ordem, de acordo com as metades. É a metade dos homens “invasores” que realiza esse trabalho na mata. O tronco oco, ou katxa, simboliza o útero onde foram criados os primeiros Kaxinawá.

Devo fazer uma breve introdução sobre a organização social relacionada às seções e metades entre os Pano, mais especificamente entre os Kaxinawá, cujo dualismo enfatiza a permeabilidade com a alteridade, sem perigo de heterogeinização ou desaparecimento de sua sociedade. (LAGROU, 1998, p. 123-125)

Comparativamente, os grupos são formados por seções doadoras de nomes, em que os nomes retornam a cada geração alternada, do tipo kariera, e uma relação complementar e simbólica entre as metades, intensificada na vida ritual e na disposição da representação do mundo. Enfatiza-se a complementaridade das metades entre os Kaxinawá.

Nos rituais, as metades masculinas, uma metade, inu (a metade da onça), desempenha o papel do estrangeiro, do inimigo, e a outra metade, dua (a metade do brilho), o papel de anfitrião, alternando-se. As metades femininas são inani (a parte feminina da metade da onça) e banu (a parte feminina da metade do brilho).

Na vida diária, as metades não diferem em suas funções, mas complementam-se. Exceto por algumas especializações, como o fato de dua desempenhar a função de xamã e de inu ser líder do canto e da aldeia, ambas são necessárias e complementares para originar novas aldeias.

Retornando às imagens do filme, os yushin da floresta, compostos pelo grupo de homens, todos da mesma metade, “invadem” a aldeia dançando e cantando, em uníssono, e são recebidos inicialmente pela outra metade, os anfitriões, que ali permaneceram. Logo após, todos dançam e cantam ao redor do katxa, como símbolo de agradecimento e esperança de uma nova safra abundante, com a ajuda dos yushin. Originalmente, no segundo dia, os papéis eram alternados.

No Katxanawá se dá a troca ritual de caça e peixe entre as metades, por meio da caça coletiva, entre cada metade, com duração de dez dias a duas semanas, alternando-se a troca em turnos matutino e noturno, bem como as metades que a realizam.

Numa seqüência do filme, um índio, falando em português, com pintura facial, apresenta a festa do bucho da paxiúba (fermentação da caiçuma), ou katxá, que é guardada durante seis dias no tronco para fermentar e bebida no sexto dia com os convidados de outras aldeias. Ele diz que o costume vai continuar, que querem a demarcação da área e da terra, e que a SUDHEVEA tem que reconhecer a chefia e a terra, pois ele tem provas de que lhes pertence.

Depois, os índios entram na cena em fileira, vestidos com folhas de palha de jarina. Estão cantando e dançando ao redor do tronco, ou katxá.

Então, o mesmo índio com a face pintada com motivos kenê intercala sua fala em Kaxinawá e português: “Três aldeias se reuniram para ver a nossa festa.

Agora estamos preparando a dança, para que todo mundo nos conheça e respeite os nossos direitos”.

Na mesma seqüência, homens e crianças cantam e dançam ao redor do katxá e acontece a primeira aparição das mulheres. O Katxanawá também tem conotação sexual, pois é a festa da fertilidade e complementaridade entre os sexos.

Finalmente, fecham o círculo iniciado pela festa tradicional com uma convocação à greve, numa demonstração de militância a favor da demarcação de suas terras.

A seqüência mencionada demonstra como os Kaxinawá utilizam a tradição cultural como meio de comunicação política. As imagens se atêm a algumas etapas da festa, entretanto, enquanto os discursos se apropriam dessa expressão para comunicar um conteúdo eminentemente político.

A pintura facial representa a marca da identidade cultural Huni Kuin, simboliza a alteridade como ponto de partida para um diálogo no qual o outro deve reconhecer essa diferença por meio de um signo e, assim, tratá-los com profunda deferência, tanto em relação à hierarquia interna local do grupo, ou seja, a chefia, como ao seu direito à terra.

Na continuidade do diálogo travado com a sociedade dominante - é com esse público que as imagens estão se comunicando -, a ênfase na apresentação de uma festa tradicional, Katxanawá, é um recurso de expressão para obter respeito.

A seqüência atesta, na voz do próprio índio, por meio da “escrita da imagem”, que, para o grupo, essa mídia tem alcance mais amplo, pois permite enviar a mensagem para o governo e a sociedade envolvente ao mesmo tempo.

Assim, uma cena que aparentemente visa mostrar uma representação da cultura Kaxinawá incumbe-se de passar uma mensagem política, quase didática e educacional, em defesa das terras demarcadas.

No documento CINEMA DE ÍNDIO (páginas 108-111)