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Clara e Sílvio: O amor proibido

No documento DIAS PERDIDOS (páginas 113-117)

3 A ANÁLISE

3.1 A MELANCOLIA NARRADA

3.1.4 Clara e Sílvio: O amor proibido

São várias, ao longo da narrativa de Dias perdidos, as alusões que poderiam nos sugerir um amor incestuoso entre Clara e Sílvio. Esta possibilidade nos remete ao projeto estético-literário de Lúcio Cardoso e às intratextualidades entre as suas obras. Como não fazermos uma conexão deste amor, que tentaremos desvelar, com o tema central da Crônica da casa assassinada: o incesto (que, ao final da trama, sabemos não ter sido consumado) entre André e Nina? Além disso, os temas, assim como o espaço ficcional criado, são recorrentes em toda a obra de Lúcio. Lembremos, também, que alguns personagens aparecem em mais de uma das ficções do autor. Isto tudo nos causa uma impressão de que a obra completa de Lúcio seria uma somatória de histórias que se repetem, apesar das suas tramas distintas, mas que fazem parte de um todo orgânico. Lembremos do termo por nós criado: o “arquitema”

cardosiano.

Vejamos como o amor de Sílvio e Clara é sugerido ao longo do romance em análise.

Cenas, sumários e intromissões do narrador colaboram para nossa empreitada.

Durante a infância de Sílvio, seu relacionamento com a mãe nos é mostrado como bastante conflituoso. Parecia haver uma hostilidade velada entre os dois. Clara culpava Sílvio pela sua miséria e achava os modos do menino insuportáveis. Constantemente, Clara atribuía tais manias de Sílvio à educação e às liberdades exageradas que recebera de Áurea. É com a volta de Jaques que mãe e filho selam um pacto, também não verbalizado, diante da ameaça que o causador de toda a desgraça que se abate sobre a família representava. Sílvio, agora, torna-se um aliado de Clara e a aproximação entre eles é inevitável. O caráter edipiano desta relação não nos deixa dúvidas.

Por acasião da morte de Camilo e do início do envolvimento de Sílvio com Diana, o narrador, por meio de um longo parágrafo no qual o seu foco está sobre Clara, nos esclarece o que se passa com ela, diante da imagem nova que Sílvio lhe apresenta. O sentimento de Clara é de identificação com o filho. Pois, como tinha acontecido com ela, em relação a Jaques, Sílvio já apresentava sinais de um sofrimento amoroso precoce. O que era oculto em Sílvio se revela com toda a força para Clara. É como se ela estivesse finalmente reconhecendo naquele menino o seu próprio sangue e aspectos da sua alma. Poderia tal identificação acarretar sentimentos mais intensos, através de um processo de desvirtuação de um afeto teoricamente maternal? Afinal, o narrador nos conta que Clara olhava para o filho com “súbito e apaixonante interesse”.

Indo além, Clara sempre tinha tido um sentimento ambíguo com relação a Diana.

Não achava que ela fosse a mulher adequada para o filho e tinha certeza de que a união dos dois mataria, no íntimo de Sílvio, a sua própia essência. Como poderia o filho ter se sentido atraído por um ser tão vazio e dissimulado, escondido atrás de uma aparência multifacetada?

Clara e suas “profecias”. Desta vez, ela não estaria errada ...

Quando Sílvio acompanha Diana à estação de trem, no dia de sua primeira partida, ele observa atentamente a mãe da sua namorada. Comparando as duas mulheres, e diante da fascinação que a figura da mãe lhe provocava, Sílvio se pergunta por qual das duas estaria apaixonado. Reconhecemos, aqui, uma provável transferência de um possível amor de Sílvio pela sua própria mãe, para um sentimento socialmente adequado. Estaria Sílvio vendo na imagem daquela mulher, mesmo que não de forma consciente, a imagem de Clara? Seria sua fascinação a constatação de que seu real objeto de desejo era sua mãe, transfigurada na imagem da mãe de Diana?

A seqüência narrativa que nos apresenta a iniciação sexual de Sílvio é, também, recheada de alusões significativas. Neste momento da trama, já sabemos da idealização que Sílvio cria sobre a figura feminina. Seu segredo é sua pureza. Como contraste, Esperança surge como a representação não só da tentação como do grotesco associado ao sexo. O asco de Sílvio é fisicamente aterrador. Além de reconhecer, no ambiente em que mora a prostituta, objetos semelhantes aos da casa de Clara, Sílvio também compara a mãe à sedutora. As roupas de Esperança fazem-no lembrar as de Clara. Tal comparação é exacerbada quando, em meio às carícias trocadas, Esperança o chamava de “meu filho”. Percebemos, agora, o pavor

que Sílvio sente em associar as imagens das duas mulheres. Receio de que o que ele realmente sente pela mãe – no caso, amor físico – seja tão irressistível a ponto de não conseguir se livrar da sua imagem, além de fazer comparações entre ela e uma criatura tão desprezível, aos seus olhos, como Esperança? O significativo está na insistência do narrador em nos revelar tais comparações, como se estivesse tentando nos levar a responder afirmativamente às perguntas acima.

O retorno de Jaques ao lar desencadeia sentimentos em Sílvio que revelam o tom edipiano da relação deste com Clara. A presença paterna, além de causar estranheza e angústia, provoca ciúmes em Sílvio. É nesta altura da narrativa que o filho consente na aliança com a mãe, contra o pai. Seu ciúme tranforma-se em ódio dirigido aos pais, pois a submissão de Clara, diante de Jaques, lhe parece imperdoável. Há, no entanto, uma certa inverossimilhança no narrado. Afinal, tal processo se dá quando Sílvio já tinha passado da idade em que a questão edipiana está habitualmente resolvida. Contudo, como o pai lhe era desconhecido até então, podemos suspender nossa descrença e aceitar que somente agora o sentimento arquetípico faça Sílvio sofrer diante dos sentimentos narrados.

Porém, com a piora da doença do pai, um sentimento de vergonha surge entre mãe e filho. Apesar do seu “idílio cotidiano”, como o narrador caracteriza a progressiva aproximação entre os dois, um acordo tácito é firmado. Sílvio, apesar do ciúme e da revolta contra os quais não consegue lutar, não fica imune, assim como sua mãe, à piedade que toma conta do ambiente. Prevendo um futuro atribulado, ambos decidem se recolher aos seus pensamentos sombrios.

Ao desprezar Esperança, Sílvio passa a freqüentar outra amante, Lina. Com esta, ele tenta recriar o seu relacionamento com Diana, mas a permanente dissimulação e superficialidade de Lina provoca um mal que acaba por se exprimir nas verdadeiras sensações que Sílvio sentia pelas mulheres com as quais já tinha travado conhecimento: Esperança, Lina, e sua própria mãe. É o narrador quem nos relata, em um só parágrafo, o furacão de idéias que atormentam Sílvio. Este sente, pelas mulheres citadas, desprezo, agressividade, insatisfação, e uma incapacidade de amar que não consegue entender. Esta aparente misoginia não poderia estar escondendo uma decisão inconsciente de Sílvio de não se relacionar com nenhuma outra mulher que Clara, já que as outras não o completavam como seria o desejado?

Áurea não está nesta lista, e assim procedemos de propósito. Pois, como sabemos , foi ela quem criou Sílvio e o relacionamento deste com Clara era algo novo para ambos. Neste sentido, seria Áurea a figura materna que adoramos e por quem não nos permitimos ter qualquer sentimento impuro? Logo, estaria a figura de Clara “liberada” para ser amada, mesmo que de forma inconsciente? Afinal, o que Sílvio procurava era o verdadeiro amor, e este insiste em lhe escapar.

O narrador colabora no desvendamento do pensamento de Sílvio, descrevendo suas idéias com relação ao sexo oposto. A mulher seria o que prende os homens, impossibilitando-lhes a liberdade a que aspiram. A força do feminino estaria sempre contrária a qualquer tentativa do homem de evadir-se. Sua presença causaria a extinção do fogo inerente ao macho. E, todas, “mães ou prostitutas” (segundo o narrador, e grifo nosso), seriam um impecilho intransponível aos desejos do homem.

Diante da vida desregrada do fiho, graças aos seus encontros com Chico e à influência que este exercia sobre Sílvio, Clara passa a ficar temerosa pelo filho, dirigindo-lhe cuidados maternos excessivos e uma ternura antes desconhecida. Sílvio sente esta transformação da relação com a mãe de forma plena. Duas intromissões do narrador nos fazem suspeitar de algo mais. A primeira revela que Sílvio suspeitava de “uma aventura em que ambos estavam comprometidos”. Que aventura seria esta? A degradação de ambos, por razões distintas, que os aproximava ainda mais, como se o destino de ambos fosse igual? Ou, uma existência na qual um amor velado não ousa expressar seu nome, deixando no ambiente um ar de suspeita que nos intriga e nos atrai à narrativa, querendo saber seu desfecho?

A outra passagem, na qual a voz onisciente provoca, novamente, uma lacuna que somos tentados a preencher, merece transcrição. Antes, porém, devemos notar que as constantes saídas de Sílvio causam reprovações de Clara. Esta, por sua vez, não tem coragem de repreender o filho, contentando-se com olhares furtivos.

Ela não respondeu, fingindo-se absorvida com seu trabalho. O vento da noite agitava docemente as folhas de papel de seda. E como Sílvio se despedisse, alegando súbito cansaço, compreendeu que durante todo este tempo temera que o filho viesse a perceber alguma coisa que ela desejava ocultar.

Então sentiu pesar mais fortemente aquele silêncio onde só palpitava o seu coração, pesado de uma falta que ainda não reconhecera. (DP, p. 202; grifo nosso).

Ao folhear um álbum de fotografias da família de Diana, já após a volta desta à Vila Velha, Sílvio depara-se com uma foto da mãe de Diana que revela o quão parecidas as duas eram. Não nos esqueçamos do sentimento confuso de Sílvio, quando da primeira partida das duas, em direção ao Rio. A imagem volta à sua mente. E, apesar de tudo o que ele desgosta em Diana, Sílvio passa a ter certeza do amor obsessivo que sente pela garota. Ou seria por Clara?

Quando Diana descreve a Sílvio como sua mãe era e as suas preferências, a identificação desta com Clara é reforçada. O silêncio, as opções por determinados tipos de roupas e perfumes, a predileção por conversas calmas, e, sobretudo, a fragilidade diante de sentimentos fortes não permitem outra reação da parte de Sílvio que o reconhecimento da personalidade da própria mãe. O amor de Sílvio encontra-se entre estes dois afetos de força idêntica: Diana e Clara.

E, para nós, leitores, uma certeza de que estas pinceladas do narrador, estrategicamente esparsas ao longo da história, só têm um objetivo. O de nos fazer enxergar o amor proibido, que contribui para aumentar o sentimento de melancolia de todos.

Completamos esta hipótese sobre a possibilidade de um amor incestuoso entre Sílvio e Clara, percebida nas entrelinhas do narrado, com a visita que Sílvio faz ao cemitério, antes de partir. Com o coração apertado e com as idéias confusas, Sílvio observa os dois montes de areia sob os quais seus pais “dormiam”, lado a lado. Com os olhos cheios de lágrimas, Sílvio tenta recuperar, na memória, a imagem da mãe e chega a chamar por ela. Não há resposta.

Somente o silêncio que carregava, inescrutável, o segredo oculto para toda a eternidade ...

No documento DIAS PERDIDOS (páginas 113-117)