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Lírica

No documento DIAS PERDIDOS (páginas 30-34)

1 O AUTOR E A OBRA

1.3.1 Lírica

Lúcio começa poeta, desde a adolescência. Já conhecemos a história. Augusto Frederico Schmidt lê poemas de Lúcio e os apresenta a Octávio de Faria. Este (mentor onipresente) fica entusiasmado pela verve poética de Lúcio. Porém, Octávio já percebe, na nota editorial do volume Poemas inéditos, que o romancista acabaria por ocultar o poeta. O crítico escreve:

Não foram muitos os que perceberam a importância de Lúcio Cardoso como poeta depois da sua revelação como romancista (...) Alegro-me de ter feito parte dos poucos que tiveram a graça e a honestidade de vislumbrar desde cedo, ao lado do grande romancista de A luz no subsolo, o poeta extraordinário que Lúcio Cardoso seria ao longo de sua vida. Desde Poesias (1941) e Novas poesias (1944) até agora, nesses Poemas inéditos.22

O amigo e crítico Octávio vê em Lúcio um todo só, no que diz respeito à sua arte:

poesias, romances, novelas, peças teatrais, quadros23, e escritos memorialísticos. Todas as produções artísticas de Lúcio seriam facetas de uma personalidade única. Octávio reconhece nos poemas de Lúcio as obsessões que permeiam toda a sua obra: a existência atormentada, o desespero ético, o Bem contra o Mal (no sentido bíblico, e não puramente maniqueísta), a

22 FARIA, O. Nota editorial. In: CARDOSO, L. Poemas inéditos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. 214 p.

(Coleção Poiesis). p. 11.

23 Lúcio sofreu o primeiro derrame em dezembro de 1962, ficando com o lado direito do corpo paralisado e afásico. Foi após esta época que Lúcio começou a pintar, com a mão esquerda. O segundo acidente vascular cerebral causa a morte de Lúcio em setembro de 1968.

angústia permanente, o padecer diário diante da luta entre a vida e a morte, e o constante sofrimento.

Octávio confessa que, diante da obra lírica de Lúcio, há vozes dissonantes que questionam tanto a forma como as idéias presentes na mesma. Contudo, o mentor toma partido, não sem ironia:

Discutam a ‘forma’ de certos poemas, a coerência de determinadas idéias, questionem os termos, as rimas, os que o quiserem, (...) Não eu. Porque recuso-me a conhecer regras e teorias e só sei sentir a pulsação humana. Seja no romance ou na poesia, no teatro ou nas artes plásticas. O eu que geme, que pulsa, que sofre. Ou nada. Arranjem-se os homens sábios e os doutores com a estrutura da obra.

Eu fico com o testemunho, a pulsação, a vida, o coração humano, o homem, o poeta ...24

Octávio de Faria foi responsável pela edição dos Poemas inéditos e optou por dividi-los em seções que contivessem poemas afins, seja quanto ao aspecto formal, pela intenção, ou pelos temas. Na primeira seção (composta de sonetos), o editor agrupou os poemas nos quais o eu lírico é soberano e onde ele cria o seu mundo poético com todas as suas obsessões. Na seguinte, o poeta ainda é onipresente, mas já há um contato do mesmo com o mundo objetivo. A quarta seção é a de maior relevância para o nosso trabalho, pois nela Octávio dividiu os poemas em quatro grupos, cujos títulos são bastante significativos. A saber: “I/A angústia do poeta”; “II/O mundo angustiado do poeta”; “III/Variações da angústia do poeta”; e “IV/ Fragmentos e variações”. Ao final, encontram-se textos de prosa poética.

Mario Carelli é a nossa segunda fonte crítica relacionada à lírica de Lúcio. Além disso, Carelli, como o biógrafo por excelência do autor, não poderia deixar de tratar da obra completa de Lúcio. Curiosamente, a exegese da produção ficcional de Lúcio, na biografia em questão, é muito semelhante à de Octávio de Faria. Não gratuitamente, Carelli escreveu um texto crítico intitulado “O romancista esconde o poeta?” (precisamente o título do capítulo IV da biografia de Lúcio), sugerindo um certo desprezo da crítica direcionado aos poemas de Lúcio. Carelli interpreta o fazer poético de Lúcio como se estivesse analisando um poeta simbolista. Ele chama atenção para a importância da poesia estar na observação aguçada das coisas, a apreensão incomum que o poeta tem do mundo (o que o diferencia do humano comum), a natureza que reflete as angústias existenciais do artista, e a necessidade fundamental que tem o poeta de descer aos infernos próprios como parte integrante da sua

24 FARIA, O. Op. cit. p. 13.

produção lírica. Carelli chega a cogitar a possibilidade de Baudelaire ter sido o grande mestre de Lúcio.

Ao analisar Poesias e Novas poesias, Carelli está preocupado em encontrar a origem do poeta, mapear sua poética, e listar os temas recorrentes na obra. Para o biógrafo, o material que Lúcio explora nos seus poemas está na infância e na crueldade da memória. Os poemas apresentam um fluxo contínuo e sôfrego. Fluxo este repleto de tons violentos, de clichês, de imagens sonoras e visuais, da recorrência da imagem alegórica das cores e de flores, e de uma filiação direta à poesia de cunho católico. Para Carelli, sua forma é conseqüência da emoção, deixando de lado o aspecto de artesão da linguagem. O objetivo de Lúcio estaria em contrapor o eu lírico ao próprio poeta.

Com o risco de nos tornarmos repetitivos, é importante afirmar que quanto aos temas, o que reforça o caráter de catarse que a escrita tinha para Lúcio, Carelli destaca: as questões não respondidas sobre a existência humana, o noturno e o sombrio que caracterizam o desespero do ser, a onipresença do desejo ligado à morte (sendo aquele invariavelmente carnal, pecado maior que o poeta tenta sublimar através de corpos anônimos e assexuados), a solidão como destino inexorável do ser, a vontade constante de fugir das criaturas dos poemas (sem saber o porquê e nem mesmo para onde), e o surgimento de questões metafísicas em uma atmosfera sombria (espaço privilegiado por Lúcio em sua obra). Carelli reúne todas estas questões no seguinte excerto: “Lúcio adere à primazia da inspiração, ao jorro das imagens transtornantes que se engendram umas às outras. E essas metáforas visuais, portadoras do tormento existencial, sustentadas pela amplitude do ritmo de seus versos, dão à imaginação plena liberdade.”25

Já José Guilherme Merquior afirma, ao analisar a edição dos Poemas inéditos compilada por Octávio de Faria, que os poemas de maior densidade poética são os “Poemas diversos”. O crítico não poupa elogios à lírica cardosiana, beirando a apologia grandiloqüente: “caso de alta voltagem poética”, “realização vulcânica do lirismo existencial-espiritualista”, “verso eminentemente agônico, num pathos de dilaceração íntima”, “a mais impressionante tanatomaquia da nossa musa contemporânea”. Merquior resume suas impressões da seguinte maneira:

25 CARELLI, M. Corcel de fogo: vida e obra de Lúcio Cardoso. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988. p.106.

(...) o homem é definido pela perene inquietação. Para Lúcio Cardoso, o coeficiente humano é a volúpia da vertigem, o arrebatamento da angústia, a atroz delícia de sentir o rapto do repente (...) Em cima dessa vivência fundamental do ego lírico, um sentimento bem cristão do inferno da carne, da irredutibilidade do espírito (...) e a velha vibração do ser-para-a-morte (...) Poesia do paradoxo, abundante em suas expressões verbais (...) e decidida a cantar, junto com a tensão do combate espiritual, a pureza vingativa das derrotas existenciais sofridas por princípio (...)26

Em 2006, a publicação de O riso escuro ou O pavão de luto:Um percurso pela poesia de Lúcio Cardoso, de Ésio Macedo Ribeiro, proporcionou aos leitores de Lúcio uma nova experiência. A de obter informações valiosas e uma análise consistente dos dois primeiros volumes de poesias de Lúcio, Poesias (1941) e Novas poesias (1944). Fato inédito na fortuna crítica sobre o autor.

Nesta obra, o que acrescenta ao objetivo deste trabalho são as considerações do autor sobre as variadas influências de correntes literárias que o poeta sofreu ao desenvolver a sua lírica. Porém, devemos deixar claro que Lúcio acabou por não adotar exclusivamente nenhuma destas tendências, trilhando um caminho todo seu. Do Romantismo, Lúcio adotou as metáforas, os amores irrealizados, a estranheza, e a morte. Além da melancolia, tema cardosiano por excelência. O subjetivismo, o individualismo, e, em menor escala, o misticismo do Simbolismo também estão presentes na lírica de Lúcio. Contudo, pensamos que a recusa ao Realismo e ao Naturalismo, por meio da revelação do outro lado da realidade e do uso de símbolos para sugerir objetos concretos, é a maior contribuição do Simbolismo à poética cardosiana. Já a expressão de emoções intensas, a visão pessimista da vida, a dor e a angústia, o deslocamento do poeta da realidade e a recorrência do tema da morte, são os elos de ligação entre a obra de Lúcio e o Expressionismo. Em tom menor e curioso, há também conexões – porém, não influências explícitas – com o Surrealismo. É aqui que encontramos o terreno do inconsciente e do onírico, além de uma atitude de rejeição aos paradigmas ditos burgueses. A escrita automática de Breton e seus seguidores possibilita uma exteriorização do que é reprimido na vigília diária. O Modernismo, tão combatido pela maioria dos escritores e críticos do “grupo” de Lúcio, está presente na sua lírica por meio da preferência pela presença de elementos urbanos. Assim resume o autor da obra em análise a poética de Lúcio:

Tendo bebido em tantas fontes estéticas, Lúcio Cardoso logrou produzir uma escrita poética única e singular, onde expressa o drama existencial de um eu dilacerado, que não encontra lugar no mundo e, por vezes, interpela a morte, como se fosse ‘velha amiga’. Nunca se filiou a grupos ou escolas, e o

26 MERQUIOR, J.G. A forma e a febre. In: _____ . O elixir do apocalipse. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. p. 151-155. p. 153-154.

individualismo observado em seus versos também norteou a busca solitária e intuitiva de soluções estéticas.27

Lúcio escreve para fugir da loucura. Este é o seu processo de libertação. Processo tal que surgirá na sua prosa, por meios pouco convencionais. Além disso, é por causa do tédio, do ódio, da revolta, da angústia, do remorso, e da loucura que Lúcio sabe que só há redenção no Deus que ele tanto rejeita.

No documento DIAS PERDIDOS (páginas 30-34)