• Nenhum resultado encontrado

Dramaturgia

No documento DIAS PERDIDOS (páginas 34-37)

1 O AUTOR E A OBRA

1.3.2 Dramaturgia

1.3.2 Dramaturgia

O teatro foi, provavelmente, a expressão artística (se desconsiderarmos a passagem meteórica e improdutiva pelo cinema) que mais frustrou Lúcio Cardoso. A crítica especializada é unânime em apontar as razões. Textos muito “literários” que pecam pela ausência de ação (característica que já está presente na etimologia do termo “drama” e que é fundamental para o texto teatral) sendo, conseqüentemente, de difícil adaptação para os palcos, e a aceitação problemática pelo público (o que ocasionou alguns fracassos que deprimiram Lúcio e o afastaram do meio).

Porém, ironicamente, seu teatro tem um certo aspecto de precursor da produção nacional subseqüente (sem ser necessariamente revolucionário). Como atesta o decano da crítica teatral brasileira contemporânea, Sábato Magaldi: “O escravo, (...), se apresentava como a primeira tentativa de renovação dos nossos processos dramáticos, dentro do espítiro sério que presidiria as conquistas posteriores.”28 Contudo, a respeito dos textos dramáticos de Lúcio, o crítico acrescenta: “Seu teatro acabou identificando-se mais a uma linha literária, que freqüentemente não fica à vontade em cena. O autor, temperado no trabalho novelesco, se compraz em pintar caracteres que dominam os demais, movidos por uma natureza especial.”29

Mario Carelli desenvolve um raciocínio que confirma o dito sobre os textos teatrais de Lúcio:

Nosso propósito geral nos leva, portanto, a privilegiar em Lúcio Cardoso mais a literatura dramática que o teatro propriamente dito. (...) Privilegiamos intencionalmente a ‘fábula’, isto é, a transformação do discurso em narrativa, ou a análise dos elementos em ação. Consideramos que as

27 RIBEIRO, É.M. O riso escuro ou O pavão de luto: Um percurso pela poesia de Lúcio Cardoso. São Paulo: Nankin / EDUSP, 2006. p. 59.

28 MAGALDI, S. Panorama do teatro brasileiro. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962. p. 248.

29 Idem. p. 248.

peças deixadas por Lúcio valem por sua problemática existencial, bem como por sua elaboração poética.30

O interesse de Lúcio pelo teatro se deu por duas circunstâncias: suas relações com pessoas do métier, tais como o cenógrafo Santa Rosa e o diretor Ziembinski; e as suas leituras incansáveis de vários dramaturgos, de variados períodos. Dentre os últimos, são fundamentais para a formação intelectual de Lúcio: os gregos clássicos, o teatro elisabetano, os clássicos franceses do século XVII, Paul Claudel, Jean Giraudoux, Jean-Paul Sartre, Albert Camus, e Jean Genet (que, ao desenvolver as suas tramas em meios quase que invariavelmente sórdidos, teria sido a grande revelação para Lúcio). Esta aproximação com o meio e a produção cênica fez com que Lúcio fundasse um grupo, o Teatro de Câmera, e começasse a escrever suas peças. Destas, as mais analisadas e valorizadas, pela crítica, são O escravo (1943), O filho pródigo (1947), A corda de prata (1947), e Angélica (1950)31.

Carelli e Magaldi parecem concordar na avaliação da primeira peça de Lúcio. Para eles, a ação de O escravo se passa em uma atmosfera sombria, na qual a doença, enquanto metáfora, tem um papel preponderante e os personagens são levados à reclusão, voluntária ou não. Os temas cardosianos reaparecem: a escuridão, o desespero da condição humana, a loucura, o inferno, a contestação direcionada a uma lucidez de aparência, o sangue, a morte, e as relações doentias entre os seres (como resultado das constantes forças invisíveis do destino). Magaldi ainda acrescenta o que para ele é a qualidade principal da peça, “o vigor literário”; enquanto Carelli, na mesma clave, destaca o papel central do tom da palavra e da voz.

O filho pródigo (como o próprio título indica) é uma peça bíblica de Lúcio. Décio de Almeida Prado reconhece as deficiências de Lúcio enquanto dramaturgo e, no calor do momento, faz uma crítica incisiva sobre a peça:

O filho pródigo, de Lúcio Cardoso, é bem um sinal dos tempos. Como pode um homem inteligente, sensível, escrever uma peça que é um monumento de literatice, em que não há um sentimento, uma

idéia, que não venha revestida de uma crosta espessa e impenetrável de literatura? (...) a insinceridade do pensamento – insinceridade no sentido de exercício literário – origina

inevitavelmente a insinceridade da maneira de escrever, atingindo agora a própria matéria artística.

30 CARELLI, M. Op. cit. p. 88.

31 As datas assinaladas correspondem aos anos das primeiras encenações das peças citadas.

Evitando os lugares comuns da vida real, O filho pródigo cai em cheio em todos os lugares comuns da literatura.32

O crítico questiona a verossimilhança da representação e da utilização literária do negro que Lúcio desenvolve na peça, afirma que não há qualquer elemento autêntico na ação, e reclama um texto mais comunicativo que o aproximaria do público, além de permitir uma encenação mais adequada. Décio questiona também a capacidade de Lúcio ter realizado uma obra de inspiração efetivamente bíblica: “O filho pródigo, se realizasse as suas altíssimas aspirações literárias, seria algo assim como as peças de Claudel, único autor em todo mundo, ao que nos conste, capaz de assumir o ar modesto de quem acabou de reescrever a Bíblia sem resvalar pelo ridículo ...”33

A corda de prata também é considerada por Mario Carelli uma peça bíblica, no que diz respeito à escolha do tema e às imagens criadas. Nesta obra, Lúcio inova, criando um clima mágico no qual discute os limites da loucura. O mágico é concretizado em um personagem não nomeado, a “mulher vestida de negro”, que funciona como uma espécie de personalidade paralela do personagem principal. Daí o mote para a discussão sobre a insanidade. O diálogo entre estes dois personagens contém alguns dos temas favoritos de Lúcio: o medo, a culpa, os sonhos, e a sensação da proximidade da loucura. Carelli considera que Lúcio atinge uma visão moderna e poética da loucura, utilizando o recurso da alegoria, além de acrescentar que não há julgamento moral sobre o crime.

Angélica não foge, tematicamente, da trajetória dramatúrgica de Lúcio. Angélica é uma criatura demoníaca, um anjo decaído. Novamente, as ressonâncias do texto bíblico se fazem presentes. Impossível não pensarmos em O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, pois Angélica suga a essência jovial das pessoas que hospeda, para permanecer jovem e atraente. É uma representação arquetípica do vampirismo. De acordo com Carelli, a questão da loucura continua em debate:

O tema da duplicidade leva Lúcio a retomar o tema da loucura, que freqüenta quase toda sua obra dramática. A máscara de mulher jovem oculta o rosto envelhecido de Angélica. E essa outra Angélica não compreende o que lhe ocorre. O duplo se torna preponderante. (...) o teor simbólico do personagem cardosiano que reatualiza mitos e suas representações literárias não nos deve fazer

32 PRADO, D.A. Apresentação do teatro brasileiro moderno. São Paulo: Livraria Martins, 1955. p.123-124.

33 Idem. p. 125.

esquecer outras ‘intenções’ do autor (...) De fato, o autor quer desmascarar essas forças obscuras que fazem com que a sociedade se nutra da juventude ...34

Concluímos esta parte do nosso trabalho em concordância com os críticos citados.

Afinal, o teatro de Lúcio não faz concessões ao público leitor ou espectador. As peças não são leves, e sim violentas. O tom e o ritmo nos conduz a um andamento alucinatório das tramas, além de nem sempre sermos capazes de discernir entre o sonho e a realidade. Lúcio jamais foi capaz de se completar como dramaturgo, apesar das inovações criadas por ele e que talvez devam ser reavaliadas sob um olhar crítico, visando sua reabilitação.

No documento DIAS PERDIDOS (páginas 34-37)