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II. PREÂMBULO CONCEPTUAL E TEMÁTICO

2. Clarificação de conceitos

A aproximação ao campo de estudo e a construção da dissertação obrigaram a um processo contínuo, por vezes retrospetivo, de clarificação conceptual. Mesmo correndo o risco de ocupar espaço argumentativo com a apresentação de definições que em parte já pertencem ao domínio público geral e ao subdomínio disciplinar, a experiência de elaboração desta dissertação obrigou efetivamente à construção de um pequeno dicionário terminológico, que se estabeleceu como uma bitola para a construção textual. Apresentamo-lo agora de forma mais resumida e em formato preambular. A sua utilidade é a de esclarecer o sentido e a filiação de palavras-chave que serão recorrentes ao longo do texto e que, pese embora sejam de uso corrente nas discussões sobre o ensino da Arquitetura e nas aulas de Projeto, verificamos empiricamente que não poucas vezes são utilizadas de uma maneira menos clarificada, correndo o risco de dificultar a delimitação das ideias convocadas.

• Projeto: “do latim ‘projectus’, ‘lançar para a frente’; 1. o que se pretende fazer, equivalente a intento, plano; (…) 6. Descrição e representação gráfica de uma estrutura que se pretende edificar”.40 Joaquim Vieira (1995:21) refere que “o Projeto é a proposição de novas

organizações e funções da forma, de conjuntos de formas materiais, sociais ou ideológicas através de métodos e sistemas convencionais”.41 O Projeto por conseguinte é um ato mental, tendencialmente interdisciplinar, onde “a intelectualização é a função mais dominante”.42 A finalidade do Projeto é uma transformação do mundo, corresponde ao planeamento executivo dessa vontade de transformação, tem implícita a valorização quer de situações existentes, quer dos meios e dos resultados da transformação.

• Projeto de Arquitetura: prosseguindo com Joaquim Vieira (1995), o Projeto de Arquitetura é movido por uma vontade de transformação, que é uma vontade “servir” a formulações e anseios sociais da encomenda, cujos valores “são premências, mais ou menos conscientes do grupo social a que o arquitecto pertence”.43 O Projeto de Arquitetura é uma técnica. Segundo Vittorio Gregotti “é o modo através do qual vêm organizados e fixados arquitectonicamente os elementos de um determinado problema. Estes foram seleccionados, elaborados, e intencionados através do processo da composição, até chegar a estabelecer entre

40 Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, 2001:2977 41 Joaquim Vieira (1995:21), O Desenho e o Projeto Saõ o Mesmo? Outros Textos de Desenho, FAUP 42 Idem.

si novas relações cujo sentido geral (estrutural) pertence, ao final à coisa arquitectónica, à nova coisa que construímos, por meio do Projeto”.44 Não obstante ser uma construção social e uma técnica, corresponde também a um desejo diferido dos seus autores (que os autores não constroem a obra), em que os aspetos quantitativos e executivos são associados a valores poéticos de qualificação, traduzindo tanto preconceitos sociais e de grupo, como os equacionamentos que os autores fazem para consigo próprios. Reside aqui a limitação do processo de Projeto como ação técnica, na medida em que a finalidade emana dos seus próprios meios e não tanto que os meios dependem da finalidade.

• Metodologia do Projeto de Arquitetura: observando a definição dada por Vittorio Gregotti (1972), considera-se que a metodologia do Projeto se desdobra em duas componentes: (1) uma metodologia de repetição (ou de representação) e (2) uma metodologia de solução de problemas. A primeira diz respeito à organização do Projeto ao nível da estruturação racional e económica das suas relações internas. A segunda a uma relação entre instrumentos preventivos de controlo e instrumentos de verificação de eficiência da solução projetada. Ambas correspondem ao esforço de proporcionar elementos de controlo preventivo que resultam de uma acumulação de experiência “disciplinar”.45No entanto, há aspetos do Projeto que não são determinados necessariamente por uma metodologia, ou melhor dizendo, o acaso também é decisivo na metodologia do Projeto. Fernando Lisboa (2005), recorrendo a Charles S. Pearce, observa que “o raciocínio não é um trabalho inteiramente cerebral”,46envolve os olhos e as

mãos, o corpo, a experimentação, e que este trabalho no Projeto de Arquitetura é feito sobre desenhos, que desta forma se transformam em matéria do processo do Projeto. As várias modalidades do desenho no Projeto configuram momentos diferentes de indução-dedução- abdução, que inclusivamente admitem o imprevisto, o imperfeito, o acaso, como pressupostos de verificação e como catalisadores de qualificação cultural.

44 Vittorio Gregotti 1972:12, em Território da Arquitetura.

45 Segundo Vittorio Gregotti, o “conjunto das operações projectuais tem sido objecto, ao longo da história, de uma contínua institucionalização, seja como summa concreta das experiências práticas do construir, seja como teorização tratadística. Aquela desenvolveu-se essencialmente segundo duas direcções: uma relacionada ao modo de conceber e conduzir a operação projectual; a outra, tendendo a utilizar a experiência arquitectónica precedente, racionalizando-a em esquemas que resumam e comuniquem teorias, formas, tipologias e técnicas enquanto regras gerais do construir, enquanto noções culturais semielaboradas através das quais se procura garantir previamente o resultado” (1972:35).

46 Fernando Lisboa 2005:279: “reasonning is not done but the unaided brain, but needs the cooperation of the eyes and the hands” (citando Pearce) e envolve, portanto, um trabalho de experimentação sobre e com as coisas. Em Arquitetura, esta cooperação dos olhos e das mãos, este trabalho de experimentação, é feita com e sobre os desenhos e os modelos. Neste caso, o desenho aparece como o meio ou, se quiser, a matéria do Projeto. Mas se assim é, então o Projeto configura um raciocínio cujo traço dominante e qualificante é o da abdução”.

• Desenho: regressando a Joaquim Vieira (1995), o desenho enquanto atividade “é a representação bidimensional de imagens, da maneira mais elementar, mais simples e mais complexa possível”.47 É uma tarefa eminentemente manual e subjetiva, por oposição ao Projeto que é mental e técnica. No desenho, não há necessidade do Projeto, muito embora por razões de estatuto e em benefício de um reconhecimento intelectual, possa envolver o Projeto como elaboração mental. O desenho é arte na medida em que “o centro da atividade do desenho é a estética que é aquele saber que qualifica e valoriza as formas nos seus aspetos poéticos e formais ou se se quiser inúteis ou não funcionais”.48 Pelo que o desenho como atividade de pesquisa individual, compositiva, estética e artística, pode ou não ser mais ou menos ignorado no Projeto. Todavia o desenho adquire outras dimensões no Projeto. Como refere Fernando Lisboa (2005), é matéria do processo de Projeto, o qual avança numa sucessão de movimentos circulares recorrendo a diferentes modalidades de desenho, que agora adquire um valor instrumental, de pesquisa intuitiva e consciente, de ordenação, de verificação, de alternativa, de comunicação, de ilustração, etc. 49A própria presença e desenvolvimento técnico do desenho

correm paralelo à afirmação da Arquitetura como “disciplina”, na medida em que a presença do desenho marcaria a “origem histórica da Arquitetura enquanto instituição social, isto é, enquanto disciplina profissional e académica”.50

• Disciplina: pressupondo o reconhecimento social como uma área de conhecimento, com uma dimensão simultaneamente académica e profissional. Situação que implica uma delimitação dessa área: um aparelho crítico, metodológico e uma linguagem comum entre uma comunidade. Implica a definição constante de objetos de estudos e uma diferenciação e complementaridade para outras áreas. Implica ainda uma definição de áreas de estudo, aparelhos de publicação, divulgação e discussão, e a criação de instituições de referência.

47 Joaquim Vieira (1995:21).

48 Joaquim Vieira (1995:51).

49 Fernando Lisboa 2005:257. Acerca dos tipos de Desenho em Arquitetura, Fernando Lisboa (p272) reporta para a classificação dada por Jorge Sainz (1990) El dibujo de Arquitetura. Teoria e historia de un lenguage grafico, em de que há oito tipo ideias no desenho de Arquitetura: Desenho de Projeto; Desenho de estudo; Desenho da utopia; Desenho da vista; Desenho do modelo; Desenho de levantamento; Desenho de reconstituição; Desenho de ilustração.

50 Fernando Lisboa 2005:29, “por um lado, se o desenho de Projeto não se confunde com o Projeto de Arquitetura, então talvez valha a pena rever as teses que identificam a origem histórica do Projeto de Arquitetura com a origem histórica do desenho de Projeto e talvez se conclua, no decorrer dessa revisão, que a presença do desenho no Projeto anuncia, isso sim, a origem histórica da Arquitetura enquanto instituição social, isto é, enquanto disciplina profissional e académica”

Críticos como Gerry Stevens (1998)51 argumentam que a Arquitetura tem dificuldade em se afirmar como disciplina académica, na medida em que a produção de conhecimento na academia é uma mera fração do conhecimento do campo disciplinar, e que este é um conhecimento diferido, isto é, a academia não produz Arquitetura. Ao mesmo tempo, o âmbito interdisciplinar, a amálgama entre respostas técnicas e culturais e a instituição do Projeto como processo metodológico, dificultam simultaneamente a delimitação do campo e o estabelecimento de metodologias que garantam uma correspondência biunívoca entre problemas-métodos-efeitos.

• Obra: propomos uma distinção entre obra construída, obra projetada e obra escrita ou discursiva. O texto tentará elucidar os domínios precisos a que se aplica a definição obra, no entanto, ressalva-se, propomos considerar três práticas arquitetónicas distinguidas por Stan Allen (2009):52 a construção; o projeto; e a construção textual.

• Prática: propomos a definição de problemas práticos oferecida por Ortega y Gasset (1957): “tentemos agora definir a atitude mental quando aparece um problema prático. (…) Subitamente sentimos que algo nos força ou um desejo de que, para se satisfazer, requer uma realidade envolvente diferente do que é: uma pedra, por exemplo, impede que avancemos ao longo do caminho. O problema prático consiste em termos um caminho com uma pedra – assim, algo que não é, passa a ser. O problema prático é uma atitude mental em que nós projetamos (design) uma modificação do real, onde premeditadamente damos sentido ao que ainda não é, mas que achamos necessário que seja”.53

• Teoria: propomos a definição de problemas teóricos oferecida por Ortega y Gasset (1957):”nada mais diverso nesta atitude do que quando um problema teórico se levanta. A expressão do problema na linguagem é a questão: “O que é esta ou aquela coisa?” Repare no que tem de especial este facto mental, de pesquisa equivalente. O que perguntamos a nós próprios: “O que é isso? Ele está lá, é – em ambas as direções – de outra forma, não nos ocorreria perguntarmo-nos acerca dele. Mas acontece que não estamos satisfeitos com o que é está lá – mas, pelo contrário, inquieta-nos o que é e que seja assim como é, irrita-nos o seu ser. Porquê? Obviamente porque aquilo que é, como é perante nós, não é suficiente para si,

51 Gerry Stevens (1998), The favored circle: The social foundations of Architectural Distinction, MIT, Massachusets.

52Baseado na distinção dada por Stan Allen (2009), em Practice: architecture technique+representation, pxiv, Routledge, Nova Iorque.

53 Ortega y Gasset citado por José Miguel Rodrigues (2013:253) in Design and research in architecture: commom points, in Joelho nº4, FCTUC-EDARQ, Coimbra, (tradução livre).

mas antes, observamos que lhe falta a razão de ser. (…) Segue-se que não há nenhum problema teórico se não começarmos de algo que é, que é inegavelmente lá, e apesar disso ou por causa disso, é pensado como não sendo, como não podendo ser. A Teoria – deve ser enfatizada a extravagância do facto – começa, consequentemente, pela negação da realidade, violentamente destruindo o mundo, aniquilando-o; (…) Assim sendo, o problema prático consiste em fazer ser o que não é – mas devia – o problema teórico consiste em fazer que não seja o que é – mas porque é assim irrita o intelecto com a sua insuficiência”.54

• Sistema Beaux-Arts: seguimos a definição proposta por Ignasi Solà-Morales (2013): “com o nome de Arquitetura académica temos de referir-nos a um tipo de sistema bem definido de procedimentos, para elaborar qualquer tipo de edifício, que se desenvolve em França ao longo do século XIX, com um método pedagógico preciso e com uma enorme influência na Europa e na América. A continuidade desta experiência prossegue muito claramente no século XX, tanto no que se refere à orientação da maioria das escolas de Arquitetura, como pela maneira de trabalhar de um número muito elevado de arquitetos, até meados deste século. Também se costuma designar este método com o nome de beaux-arts, precisamente pela sua relação com a École des Beaux-Arts de parisiense, que constituí o núcleo gerador da sua teoria e da sua prática ao longo deste dilatado período”.55

• Ensino Moderno: recorremos à definição dada por Gonçalo do Canto Moniz (2011), que ressalva que o conceito de ensino moderno56 é pouco utilizado no campo disciplinar da Arquitetura, mas a sua pedagogia “democrática” teria uma rápida aceitação no meio, dado se basear “na relação entre Educação e Experiência, sintetizada na expressão “aprender fazendo””, que “conceptualizava um método antigo e intemporal de aprender Arquitetura”.57 Deste modo, o ensino moderno da Arquitetura poderá ainda segundo o autor corresponde à ideia de um ensino focado no aluno e na construção de um método de Projeto. O ensino moderno é constituído como contraponto ao modelo Beaux-Arts: “na prática, o ensino moderno vai-se definindo por oposição ao academismo personificado na École des Beaux-Arts de Paris e, principalmente, por oposição aos seus estereótipos: os estilos, os modelos clássicos, a composição, os concursos de emulação, o esboceto (esquisse) ou o atelier”.58

54 Ortega y Gasset, citado por José Miguel Rodrigues (2013:253) , tradução livre. 55 Ignasi Solà-Morales (2013:146) (tradução livre).

56 Teorizado pelo pedagogo norte americano John Dewey (1859-1952).

57 Gonçalo do Canto Moniz (2011:24), O Ensino Moderno da Arquitetura. A Reforma de 57 e as Escolas de Belas Artes em Portugal (1931-69).

• Educação: entendida como o conjunto de processos e procedimentos que permitem a qualquer individuo aceder progressivamente à cultura, sendo que esta pode ser caracterizada por um sistema generativo de alta complexidade.59

• Ensino: entendido como uma manifestação possível da educação; corresponde a uma educação intencional, exercida explicitamente numa instituição, recorrendo a métodos mais ou menos codificados e que é assegurada por profissionais.60

• Instrução: entendido como uma manifestação possível da educação; transmitir uma estrutura pré-constituída, de base teórica e prática, para uma dada finalidade funcional. 61

• Formação: entendido como uma manifestação possível da educação; preparar intelectualmente e materialmente um individuo para uma determinada função, seja esta técnica ou profissional.62

• Investigação: tomamos como referencia, de modo provisório e com um sentido global, que extravasa a problemática das relações entre projeto e investigação, a definição dada pelo RIBA em 2005, da investigação como “uma pesquisa original tendo como objetivo ganhar conhecimento e entendimento”, e que a boa investigação poderá ser reconhecida pelo “triplo teste da originalidade, significado e rigor”.63

59 Marco Ginoulhiac (2009:97), O ensino do Projeto de Arquitetura: contribuições para um debate crítico em torno da prática contemporânea.

60 Idem. 61 Idem. 62 Idem.

63 RIBA/Jeremy Till (2005), What is architectural research? Architectural Research: Three Myths And One Model, documento do Research and Development Comitte, redigido por Jeremy Till (tradução livre).

3. Introdução ao Ensino da Arquitetura em Portugal