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Classes Sociais e o ponto de partida do mercado

CAPÍTULO 1. CLASSES SOCIAIS E MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA

1.1. Classes Sociais e o ponto de partida do mercado

As classes sociais não são um ponto de partida no presente trabalho, especialmente se tratamos de classes como no senso comum, ou na maneira como geralmente são definidas pelos aparelhos e institutos oficiais, um conceito geralmente baseado no nível de renda ou poder de compra. As relações sociais que se expressam na divisão de classes fundamental das formações sociais aqui estudadas, qual seja, a divisão de classes das sociedades cujo modo de produção predominante é o capitalista, tem sua raiz nas relações de produção, distribuição, troca e consumo articuladas enquanto totalidade concreta. A análise marxiana apreendeu os caracteres fundamentais para pensar essa relação e compreender seus fundamentos. Entretanto, seja por motivos políticos ou teóricos, esse corpo teórico tem sido criticado e rejeitado desde o século XIX por múltiplas e diferentes razões que são impossíveis de serem abordadas no presente trabalho. Nesse sentido, no presente trabalho nos ateremos a abordar a pertinência de tal análise para nossos objetivos, na medida em que expressa relações sociais efetivas, nos valendo do debate crítico apenas como ganchos para o desenvolvimento de nossa argumentação.

Assim, partimos de um ponto próximo ao senso comum, a economia vulgar e apologética. Ludwig von Mises (1996) ao definir que o “principal dogma de Karl Marx é a doutrina do conflito irreconciliável de classes econômicas”, o autor reclama que ele “nunca disse o que é uma classe social e o que ele tinha em mente quando falava em classes e antagonismos de classes e de relacionar classes a castas”, assim todos seus escritos estão centrados em “termos nunca definidos” (p. 101). Afirma ainda que “nem Marx ou ninguém do exército de autores marxianos poderia nos dizer o que uma classe social é, muito menos de que maneira as classes sociais realmente cumprem na estrutura social o papel destinado a elas pela doutrina”. Para Mises, essa ausência de explicação se dá porque uma definição clara do que são classes sociais revelaria a sua futilidade e falta de valor dos conflitos de classes para a análise dos problemas sociais e econômicos, já que para Mises é um absurdo relacionar classes com castas sociais, pois a característica principal de uma casta é sua rigidez. Diversamente, no capitalismo há uma “mudança perpétua na composição das várias classes” (p. 102) porque o “acesso às várias estações da moderna sociedade capitalista está aberta a todo mundo” (p. 102), diferente do que ocorre numa sociedade estruturada em classes sociais. O autor exemplifica que poderíamos chamar os senadores dos Estados Unidos de uma classe,

“mas seria um erro ligá-los a uma casta aristocrática hereditária, mesmo que alguns senadores possam ser descendentes de outros senadores de períodos anteriores” (p. 102). Ou seja, as classes sociais seriam um conceito inócuo e infrutífero para análise dos problemas sociais e econômicos por não serem definidoras das possibilidades concretas do que o indivíduo pode vir a ser numa sociedade capitalista, sendo o que realmente importa são as forças autônomas no mercado e a preferência dos consumidores “através de sua própria capacidade e esforço”. Assim, “no capitalismo todo mundo é o arquiteto da sua própria fortuna” (p. 103), basta atingir às expectativas dos consumidores, cuja decisão não passa por julgar a pessoa que vende o serviço, mas a qualidade deste, “trabalho bem feito e serviços bem prestados são os únicos meios para ser bem sucedido” (p. 103).

Mises, nessa breve exposição de seus argumentos, questiona a importância e a efetiva capacidade explicativa das classes sociais para explicar as relações sociais no capitalismo. Como, para o autor austríaco, não há mais uma sociedade baseada em castas ou estamentos, no capitalismo o que importaria seria o sucesso do indivíduo em corresponder às demandas, expectativas e percepções dos consumidores, algo que faria de cada indivíduo o responsável pela sua própria sorte, pouco importando sua origem. Assim, as classes sociais não comportariam antagonismos estruturais ou seriam nucleares na explicação dos conflitos sociais. Dois pontos principais da “crítica” miseana podem ser destacados. Primeiramente, qual a relação entre estrutura social e classes sociais? Segundo, como a flexibilidade interclasses inexistente em outras sociedades para os indivíduos, anula ou não anula a importância das classes sociais para a compreensão da sociedade capitalista?

Segundo Giddens (1975), um autor que “consegue o que está faltando em Marx: uma discussão explícita do conceito de classe” (p. 46) é Max Weber. Em outro nível teórico e crítico, a abordagem weberiana das classes sociais tem sido muito utilizada para complementar a abordagem marxista, formando o tipo de corrente teórica conhecida como webero-marxista, apesar de o resultado dessa combinação ser geralmente mais neoweberiano que neomarxista (CROMPTON; GUBBAY, 1978). A conceituação weberiana parte do pressuposto de que “classes”, junto de “estamentos” e “partidos”, “são fenômenos de distribuição de poder dentro de uma comunidade” (WEBER, 1982, p. 212). O “poder” é entendido como a possibilidade de que um homem ou um grupo tem de realizar “sua vontade própria numa ação comunitária até mesmo contra a resistência de outros que participam da ação” (p. 211). Weber se preocupa em deixar claro que o poder econômico não é idêntico ao poder enquanto tal, sendo que o poder existente por outras causas pode ser a raiz do poder econômico. Além disso, o poder econômico pode ser desejado muitas vezes não por si

próprio, mas pelo que pode acarretar, como as “honras sociais” ou o prestígio. A “ordem social” é conceituada como a forma em se distribuem as honras sociais, sendo ela condicionada em alto grau pela “ordem econômica”, mas não idêntica a ela. Assim, sendo a classe um fenômeno da distribuição de poder, aduz Weber que:

Podemos falar de uma “classe” quando: 1) certo número de pessoas têm em comum um componente causal específico em suas oportunidades de vida, e na medida em que 2) esse componente é representado exclusivamente pelos interesses econômicos da posse de bens e oportunidades de renda, e 3) é representado sob as condições de mercado de produtos ou mercado de trabalho (WEBER, 1982, p. 212, grifos nossos).

Central para o conceito de classes de Weber, o qual é entendido como bases possíveis de ação comunal, é a noção de “oportunidades de vida”. Estas oportunidades são determinadas “pelo volume e tipo de poder, ou falta deles, de dispor de bens ou habilidades em benefício de renda de uma determinada ordem econômica. Assim, “a palavra “classe” refere-se a qualquer grupo de pessoas que se encontrem na mesma “situação de classe” (p. 212). A situação de classe significa a “probabilidade típica de 1) aquisição de bens, 2. Atingir uma posição na vida e 3. Realizar satisfações interiores” (1978, p. 302). A noção de classe para Weber se relaciona diretamente à existência de um mercado, sendo este o espaço onde as pessoas competem com a finalidade de troca e lugar de mediação das oportunidades de vida. Assim, “o tipo de oportunidade no mercado é o momento decisivo que apresenta condição comum para a sorte individual. “Situação de classe”, nesse sentido, é, em última análise, “situação de mercado”. Por isso, para Weber, os escravos não seriam uma classe, mas sim um “estamento”, já que seu destino “não é determinado pela oportunidade de usar, em proveito próprio, bens e serviços no mercado” (1982, p. 214).

O objetivo da exposição de Weber é demonstrar que embora o fator que cria a “classe” se ligue a uma situação de mercado, a um interesse econômico, ela não tem relação a uma estrutura de classes determinadas num nível anterior ao mercado, de modo que um interesse de classe, ou “o aparecimento de uma ação societária ou mesmo comunitária, partindo de uma situação comum de classe, não é de modo algum um fenômeno universal” (p. 215). Há aqui um diálogo telegráfico de Weber com Marx, ou, melhor, com o “marxismo vulgar”. Giddens (1975) avalia que “a maior parte da sociologia de Max Weber constitui um ataque à generalização marxista de que as lutas de classes formam o principal processo dinâmico no desenvolvimento da sociedade” (p. 56-57). Há da parte de Weber a acusação de um certo determinismo econômico no entendimento marxista das classes sociais, esse economicismo

foi qualificado por Weber em outro texto como “materialismo histórico ingênuo” (2004a, p. 48). Assim, o sociólogo alemão questiona a validade da associação direta entre uma “situação de classe” e uma “ação de classe”. (1982, p. 215). Referindo-se (in)diretamente a um “talentoso autor” que faz o “uso pseudocientífico dos conceitos de “classe” e “interesse de classe”, Weber rechaça a noção de que “o indivíduo pode errar em relação a esses interesses, mas que a “classe” é “infalível” em relação a esses interesses” (p. 216). Diferente do que pensava Weber, essa percepção equivocada também é rechaçada por Marx, como veremos no próximo tópico.

Anteriores às classes, nós temos os “grupos de status” ou “estamentos”, os quais “dificultam a realização rigorosa do princípio de mercado puro e simples” (p. 217). Nesse debate crítico com o “marxismo vulgar”, Weber tenta demonstrar que além da existência das classes não levar necessariamente a ações de classes, elas podem ter sua determinação pelo mercado afetada e/ou dificultada pela existência dos grupos de status. Em contraste com as classes, os grupos de status são comunidades frequentemente de tipo amorfo. Assim, diferente da “situação de classe”, a “situação de status” é determinada por uma estimativa específica da honraria. “O lugar autêntico das “classes” é no contexto da ordem econômica, ao passo que os estamentos se colocam na ordem social, isto é, dentro da esfera da distribuição de “honras”” (p. 227). Essa “honra estamental é expressa normalmente pelo fato de que acima de tudo um estilo de vida específico pode ser esperado de todos os que desejam pertencer ao círculo” (p. 219). Essas características de prestígio, moda, estilo etc. passam até mesmo a determinar as oportunidades de emprego, conforme exemplifica com o que acontecia nos Estados Unidos. A relação de predominância entre estamentos e classes se media pela estabilidade e instabilidade. Em períodos de condições econômicas estáveis, os estamentos e sua ordem tendem a predominar e em períodos de transformações econômicas e tecnológicas, a situação de classe é colocada em primeiro plano.

Tendo em vista que classes significam todas as pessoas na mesma “situação de classe”, Weber estabeleceu três grandes tipos de divisão de classes: “a) uma “classe proprietária” é determinada por diferenças de propriedade, b) uma “classe comercial” pela negociabilidade de bens e serviços, c) uma “classe social” resume a totalidade daquelas situações de classe em que amobilidade individual e geracional é fácil e típica” (1978, p. 302). A partir dessas três categorizações ocorrem outras diferenciações. As classes proprietárias podem ser positivamente privilegiadas, como no caso de rentistas, ou negativamente privilegiadas, como no caso dos pobres. Entre elas, Weber afirma a existência das “várias “classes médias” (Mittelstandsklassen), que vivem de sua propriedade ou de suas habilidades

adquiridas” (p. 303). Algumas dessas classes podem ser “classes comerciais”, como empreendedores, mas muitos não são, como artesãos, funcionários públicos e oficiais. Assim, Weber argumenta que “a mera diferenciação das classes proprietárias não é “dinâmica”, ou seja, ela não resulta necessariamente em lutas de classe e revoluções” (p. 303). Assim, classes com diferenças de propriedade podem conviver sem antagonismos, e mesmo quando ocorre, elas não focam necessariamente numa mudança no sistema econômico, “mas objetivam primariamente a redistribuição da riqueza” (p. 304), como os conflitos entre patrícios urbanos e camponeses ou artesãos. As diferenças entre as “classes comerciais” privilegiadas positivamente e negativamente se dão pelas habilidades que permitem a alguns indivíduos adquirir muitos retornos no mercado aos que não tem retorno algum. Por fim, as “classes sociais” são “a) a classe trabalhadora como um todo (...), b) a pequena burguesia, c) a intelligentsia sem propriedade e especialistas (...), d) as classes privilegiadas através da propriedade e educação” (p. 305). Assim, as classes sociais comportam uma gama imensa de combinações relacionadas aos privilégios comerciais e de propriedade.

Portanto, Weber define que os elementos relativos aos privilégios de status, que podem ou não estar definidos por fatores econômicos, podem influenciar e até determinar completamente uma posição de classe. Assim nós temos a ambiguidade de que as oportunidades de vida podem ou não ser determinadas por fatores econômicos primeiramente. Destaca-se ainda, que as situações de classe são sempre definidas por fatores relacionados à aquisição de vantagens de mercado, sejam através de privilégios de propriedade ou de mercado. Por essa razão, Crompton e Gubbay (1978) criticam o ponto de partida da análise weberiana das classes sociais, qual seja, o mercado. Os autores argumentam que “a existência de um mercado de bens e serviços é simplesmente tida como certa, não como um fenômeno que necessita de uma explicação” (p. 17). Basicamente, não há um questionamento do porque bens e serviços assumem essa negociabilidade e o caráter de mercadorias, porque o mercado se torna essa necessária forma de mediação onde são medidos os privilégios de propriedade, habilidade e os fatores de status. Os autores não negam a importância do reconhecimento dos conflitos que são gerados a partir das diferenças de privilégios de acesso ao mercado, como os centrados na distribuição e redistribuição da riqueza, mas essa análise não é capaz de apreciar adequadamente os “conflitos e tensões mais fundamentais que são inerentes ao modo capitalista de produção” (p. 18). Ao defender a necessidade de se retomar a análise de Marx das classes sociais, os autores avaliam que as relações de produção não são devidamente levadas em conta em Weber, o que limita a compreensão da realidade que parte de sua categorização. Ao tomar o mercado como dado, a análise da estrutura de classes weberiana

foca na maneira como os bens sociais são adquiridos, diferentemente, a teoria marxiana “foca na maneira pela qual novos valores são criados e nas relações sociais que resultam e sustentam esse processo” (p. 16). Portanto, a análise marxiana, mesmo que em um alto nível de abstração, “provê um melhor entendimento da estrutura de classes das sociedades capitalistas que a análise weberiana” (p. 17). Crompton e Gubbay argumentam a necessidade de se ir para além dos processos de troca no mercado e compreender a natureza da exploração capitalista e relações de classes decorrentes. Marx (2013c) alerta o limite da compreensão das classes sociais pelo mercado, já que “como as compras e as vendas são efetuadas apenas entre indivíduos singulares, é inadmissível que nelas busquemos relações entre classes sociais inteiras” (p. 662). Nesse sentido, é necessário que passemos a uma breve exposição desse relacionamento entre classes sociais e relações sociais de produção.